Antes de ser campeão nacional, europeu e mundial no bocha, David Araújo começou por ser um vencedor na vida. A paralisia cerebral que o confinamento a uma cadeira de rodas é encarada como um pequeno acidente de percurso, algo demasiado insignificante para travar uma existência plena. A força mental e a motivação usadas para driblar as dificuldades da vida são as mesmas que transporta para os treinos e competições. É também por isso que o sucesso de David não representa grande surpresa para quem o conhece.
“O cérebro não consegue mandar informações para o resto do corpo, tenho afetações nas mãos, braços e pernas e é por isso que não consigo andar. Mas sempre fiz um trabalho – e os meus pais tiveram um papel muito importante – para ser o mais autônomo possível. Hoje em dia, já consigo fazer tudo praticamente sozinho. É muito gratificante para mim porque a criança não consegue”.
Deitar-se na cama ou trocar entre cadeira elétrica e manual são tarefas que David Araújo aprendeu a aperfeiçoar sem ajuda. O desgaste físico e mental da fisioterapia intensiva é necessário para essas pequenas proezas do dia-a-dia surge na memória quando se lembra da independência conquistada, mas sabe que o esforço vale a pena.
Foi também esse esforço que se tornou possível arrecadar bolsas, medalhas, distinções e ainda um Dragão de Ouro reluzente que tem lugar de destaque no móvel do quarto, galardão que recompensa o facto de ter sido a revelação do ano para os portistas. E 2024 foi o mesmo ano de David Araújo, vencedor de uma medalha de ouro no World Boccia Challenger, campeão nacional sénior na classe BC2, e integrante da seleção portuguesa nos Paralímpicos de Paris.
“Achei o boccia uma seca”
O dia de David Araújo começa bem cedo, com uma viagem de metro entre Vila Nova de Gaia e o Estádio Dragão. Às 8h30, já está no ginásio do pavilhão do FC Porto a aquecer os músculos para o treino, partilhando o espaço com Pedro, outro dos atletas do boccia portista. Feito o aquecimento, mude-se para o local que acolhe os treinos desta modalidade. É tempo de começar a lançar as bolas.
A treinadora Joana Silva coloca um quadrado no chão. Os atletas têm de lançar a bola para que esta fique exatamente no centro da figura geométrica, num teste de força e destreza. São raras as vezes em que David não consegue este objectivo, mas, sempre que tal não acontece, solta um erro de frustração. É agora o tempo de adaptar o lançamento e segue-se a próxima bola, sob o olhar atento da treinadora.
“O David chegou ao FC Porto ainda sub-14 e era um jovem com muita energia, mais até do que o boccia necessita. Embora continue com muita energia, parece outro. Lembro-me perfeitamente que ele parecia uma máquina de lançar bolas, não havia segundos a passar. Hoje em dia, com todos os processos que foi aprendendo, já não é assim”, relembra a treinadora.
Durante aproximadamente duas horas são treinados diferentes cenários de jogo, ensaiando-se uma competição final entre David e Pedro. A boa relação entre jogadores e atletas é notória, com Joana aumentando constantemente a dificuldade entre jogadas.
À primeira vista, o boccia parece um esporte simples: quem se aproxima mais das bolas da sua cor à bola branca – a chamada bola alvo – é o grande vencedor. Contudo, as ramificações das estratégias são apenas perceptíveis para quem não quiser perder. Pode-se estragar o jogo ao adversário ao mudar de posição a bola alvo, formar-se uma muralha impenetrável ou jogar com precisão implacável. Não há dois jogos iguais e apenas um lançamento pode ditar uma vitória estrondosa ou uma derrota humilhante.
Mas o esporte esteve perto de perder um dos maiores prodígios da atualidade. “A primeira vez que experimentei o boccia encontrei uma seca”, confidencia David, revelando que, tal como muita gente, retomou o jogo ao lançamento de bolas. A estratégia escondida que foi aprendendo com o avanço do tempo acabou por levá-lo a mudar de perspectiva.
A tolerância ao risco
Tal como no futebol, estudar os adversários – outra obsessão de David – pode ser fundamental, de modo a identificar e explorar os pontos menos fortes. Para atletas com menos força nos braços, uma bola branca mais longa obriga a um lançamento mais rápido que, muitas vezes, pode sair com menor precisão. É precisamente neste tipo de jogo que David Araújo se sente confortável.
“Gosto de importar o meu estilo de jogo e obrigar o adversário a esse estilo. Quando ele começa a contrariar o meu jogo ou a fazer uma partida mais fechada, começa a atacar mais para o forçar mesmo a entrar no meu estilo. É algo que acaba por acontecer na maior parte das vezes. Sendo um jogo agressivo, é mais fácil ser dominante. A mensagem para os adversários é simples: “Gosto de vencer.”
Aos olhos da treinadora, David mostra uma tolerância ao risco fora do comum para a grande maioria dos atletas de boccia. Aliado a um estilo de jogo irreverente e forte preparação, esta diferença pode ajudar a explicar o motivo da ascensão meteórica recente.
“Ele arrisca, há outros atletas que não o fazem. Se não arriscarmos a jogar, por vezes, não conseguiremos ir buscar o que queremos. Às vezes dizemos o contrário, para não arriscar tanto. Mas é uma das características que o distingue de outros. O David é sempre igual, faz coisas diferentes no jogo que outros não conseguem fazer. A verdade é que tem muita força para os atletas da sua aula [BC2]algo que o ajuda e que permite que ele tenha uma tática de jogo diferente. Acaba por ser semelhante a atletas de outros países, algo que lhe dá motivação”.
David Araújo compete na categoria BC2, reservado a atletas com transtorno de movimento de alto grau nas pernas e de grau baixo a moderado no tronco. A referência máxima são os atletas tailandeses, mas o regime de treino não é motivo de inveja. “Eles vivem no centro de treinos, praticam umas 12 horas por dia”, explica David, excluído nos eliminatórias dos Jogos Paralímpicos por Watcharaphon Vongsa, o número 1 do mundo. A maior competição internacional ficou com a experiência, que o atleta portista tentará replicar daqui a quatro anos.
O roubo da cadeira
O dia 4 de Novembro começou como outro qualquer. Com o pequeno-almoço tomado e higiene feita, David desce de elevador com o pai, Rogério Araújo, até à garagem do prédio, local onde guarda a cadeira de rodas eléctrica necessária para as deslocações fora de casa. Quando os dois olham para o lugar vazio onde horas antes tinham deixado a cadeira, segue-se a confusão. Mas a realidade cai rapidamente, quando vê as marcas de arrombamento no portão da garagem. Um furto premeditado que deixou incólumes outros bens de valor que estavam na garagem.
“O David já tinha aquela cadeira há sete anos, é uma extensão dele. São as pernas dele! Sem ela, fica quase confinado a casa, usa a cadeira para ir aos treinos ou para a faculdade”, relembra o pai do atleta. “Foi um episódio bastante negativo”, resume.
Ao choque emocional inicial unido-se muito rapidamente a preocupação financeira. Repor a cadeira roubada implicava gastar um valor entre 20 a 30 mil euros, investimento impossível para a grande maioria das carteiras nos dias de hoje. Dinheiro à parte, David perdeu um acessório único, que foi desenhado propositadamente para suas especificidades.
“As cadeiras não servem para todas as pessoas. Uma que tenha sido feita para mim será muito difícil de usar por outra pessoa, tem as minhas medidas, os produtos que são precisos. São objetos muito pessoais, quase como se fossem um telefone. Outra pessoa que se sentasse lá não se sentiria bem, era feita para mim”, detalha o jovem.
Durante 48 horas, a independência duramente conquistada por David voltou a ser perdida. Impedido de se deslocar até a faculdade e aos treinos por meios próprios, ficou pelo quarto enquanto aguardava uma solução temporária para a situação. Algo que chegou pelas mãos do presidente portista, André Villas-Boas, que contactou a família de David e disponibilizou o apoio necessário para a compra de uma nova cadeira. Enquanto a definitiva não chega, a empresa Tsimetria disponibilizou uma cadeira temporária, escolhida pelo atleta com o apoio da terapeuta do FC Porto, Daniela Pinto.
“O FC Porto, o Comité [Paralímpico] e o senhor presidente André Villas-Boas disponibilizaram-se para ajudar a comprar uma cadeira. Entrei em contato com a empresa que me emprestou esta cadeira temporária para adquirir outra. Já fiz o processo todo com a ajuda do FC Porto, experimentei várias cadeiras e escolhi uma. Está feito à minha medida e espero comprar-la por volta de Janeiro”.
Sócio desde o nascimento
David Araújo chegou ao FC Porto apenas em 2019, mas já fazia parte do clube antes disso. Sócio desde o primeiro dia de vida, à semelhança dos irmãos, por influência do tio e padrinho, ia à loucura com as vitórias dos “azuis e brancos” e perdia o sono com as mais exibições. Foi por isso que Rogério, também ele simpatizante do FC Porto, olhou para a “transferência” de David para o boccia portista com orgulho redobrado.
“Eu e o meu irmão, padrinho dele, metemos o David um sócio desde a nascente para não haver nenhum desvio (risos). A família é todo portista. Obviamente que no boccia não há tantos clubes quanto isso… Na altura, ele saiu da APPC quando eles terminaram com o boccia jovem, deviam ter uns 12 ou 13 anos Recorremos ao FC Porto, eles aceitaram e são atletas do clube desde essa altura – e continuarão a ser Claro que para quem é portista como eu, ele representa. ó O FC Porto é uma satisfação muito grande”, admite. Pouco depois, tira uma capinha de uma gaveta e puxa os cartões de sócio das crianças.
Em lugar de destaque no quarto está o reluzente Dragão de Ouro conquistado em Novembro. David foi considerado a revelação do ano no universo “azul e branco”, depois de um ano recheado de títulos. Agora, está já de olhos postos no segundo galardão, desta vez enquanto atleta do ano, prometendo tudo fazer para o conseguir.