O início da visita guiada estava marcado para as 10h30. É domingo, e cerca de 20 pessoas esperam o arranque. O grupo, composto na sua maioria por jovens curiosos, vai passar as duas horas seguintes a explorar corredores do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. É uma visita especial: uma visita guiada à exposição Às Armas ou às Urnasonde jovens pesquisadores compartilharam perspectivas sobre as histórias queerglobal (especialmente focado nas ex-colónias) e rural (sobretudo sobre a reforma agrária) que marcaram o processo de democratização em Portugal.
Este é o tipo de iniciativa que pretende “aproximar os jovens à Revolução dos Cravos”, explicou o curador Gonçalo Margato na recepção deste domingo. Foi organizada pela Comissão Comemorativa dos 50 anos do 25 de Abril e poderá ser visitada até ao dia 16 de fevereiro de 2025. A entrada é livre.
A exposição, que explora a A complexa relação entre militares e civis durante o período revolucionário e a transição para a democracia, é guiada por um conjunto de três investigadores. Rita Lucas Narra debruça-se sobre os movimentos de libertação africanos que surgiram com a democratização, dando destaque a Amílcar Cabral, um dos fundadores do Movimento Popular de Libertação de Angola. Já Leonardo Aboim Pires abordou o período do Verão Quente e a prometida reforma agrária — a aproximação ao modelo dos países latinos, dos movimentos agrícolas no Norte e no Centro de Portugal e da institucionalização das zonas agrárias.
É Joana Matias, investigadora de história queer na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, que tem a sua carga uma das pastas fundamentais deste projeto: a vida das pessoas LGBTQIA+ no período pós-revolucionário.
E a história começa logo nos primeiros dias depois da Revolução. Dizia o membro da Junta de Salvação Nacional e deputado conservador da Assembleia Constituinte Galvão de Melo, 27 de Maio de 1974: “Estamos atentos, também nós, provavelmente antes de quaisquer outros, e em breve nos daremos conta do mau uso que se vem fazendo da liberdade oferecida ao povo de Portugal”. Estava a falar das pessoas queer e responde, na altura a uma carta que “escrita por um só português, poderia ter sido escrita por todos os portugueses autênticos”.
Essa carta fora-lhe dirigida para denunciar a “transcrição ignóbil, em jornais que estão ao alcance de qualquer criança, do comunicado das prostitutas e dos homossexuais, numa demonstração de amoralidade sem precedentes em qualquer país em que a família e a moral existem ainda como valores ”.
A acusação teria como ponto de partida o manifesto Liberdade para as Minorias Sexuaispublicado nos jornais da época pelo Movimento de Acção Homossexual Revolucionária. E foi recebido como fazendo parte de “uma série de excessos da revolução”, ilustra Joana Matias, ao longo da visita. Nesse pós-25 de Abrilhanteonde “a sociedade portuguesa ainda era muito homofóbica”, as pessoas LGBTQIA+ resguardavam-se em grupos pequenos e privados. Isto porque tNão tenho medo de perder o trabalho e de sofrer consequências sociais, fatores que “pesam muito” na decisão de falar publicamente sobre o assunto.
Foi isso que se viu nas décadas de 1970 e 1980. Ao longo da visita, Joana Matias afirma que o activismo queer dessa época se pautava pea falta de experiência partidária e de mobilização dos seus participantes, que se justifica como sendo uma consequência da ditadura, onde “qualquer sexualidade que não fosse a heterossexual não existia no espaço público”.
O que mudou mesmo foram os hábitos de consumo: o fim da censura tornou-se possível, por exemplo, ter acesso a livros e filmes que antes eram proibidos. No que toca aos costumes, e embora houvesse no país algumas associações como a gay Internacional Os direitos, pois as mudanças foram mais lentas.
A sida
Em 1983, uma revisão do Código Penal descriminalizou a homossexualidade em Portugal. Hum “interlúdio de liberdade”, descreveu Joana Matias, apenas interrompida pela epidemia da SIDA, um dos pontos de inflexão da lenta conquista pelos direitos das pessoas queer. Isso trouxe “mais uma camada de estigma” e disse o desaparecimento de alguns grupos, como foi o caso do gay Clube de Lisboa“em larga forma, porque muitas das pessoas que estavam envolvidas faleceram como resultado do vírus”.
Foi aí que a imprensa dotou mais atenção à comunidade. Foram “picos de interesse” e até de “fascinação”, descreve a investigadora. Outros temas, como o transformismo e as marchas gay (sobretudo as norte-americanas) serviram para alimentar esta curiosidade.
Com a descriminalização da homossexualidade, como afirmam as pessoas queer mudaram-se para o espaço público: marcaram-se encontros, promoveram-se uma maior educação sexual e pediram-se o fim da violência sexual sobre homens gays e pessoas transgêneros.
“O ponto onde vejo [mais] estas ligações é no grupo Trabalho Homossexual, que nasceu em 1991, um grupo que surge dentro do Partido Socialista Revolucionário e que é uma das primeiras — se não a primeira — organização portuguesa para homossexuais mais visíveis”, acrescenta.
Apesar de tudo, nem todos os grupos e coletivos se quiseram associar ao LGBTQIA+: é o caso do movimento feminista, aponta a investigadora, onde a simbiose era “limitada” e a interseccionalidade ainda era uma miragem. “Do lado das feministas heterossexuais, havia uma certa excluída porque não queria ser vistas como lésbicas, não queria associar-se ao estereótipo de que as feministas são todas lésbicas.”
“Entre as pessoas mais velhas com quem falo e as pessoas que deixaram as suas vozes na imprensa que estudam, existe um travo amargo. Foi um momento em que tudo era possível, mas que deixou algumas liberdades por concretizar. Ouvimos falar sobre a reforma agrária e sobre tantas coisas que tiveram um horizonte de possibilidade e que, de repente, foi encerrado”lembra a investigadora.
Texto editado por Inês Chaíça