O vinho entrou-lhe na vida como curiosidade. Acontece que Gonçalo Patraquim, palavras de um amigo seu, tem um problema: “Quando gosto de alguma coisa, não sei fazer a brincar.”
Era militar da Força Aérea quando se pôs a estudar o vinho, depois geriu um bar de vinhos em Setúbal, cidade onde nasceu e cresceu, e daí saiu para “estagiar em alguns sítios”. Entre eles o Alma, no Chiado, onde chegou “para ficar umas semanas” e acabou por encontrar um lugar na equipa que ganhou a primeira estrela Michelin. É nessa altura que os vinhos ganham em definitivo na vida militar.
Na verdade, viva na Quinta do Anjo, “a cinco minutos a pé de grandes produtores da região” da Península de Setúbal, e é diretor de vinhos da Plateform, grupo detentores do Alma (mas também do Rocco, da Sala de Corte e do Brilhante), onde tem a sua carga 30 restaurantes e uma equipe de 17 sommeliers.
Se lhe é pedido para indicar cinco vinhos que desenvolvem para a transformação de militar em sommelierarranja maneira de medir mais uns quantos, quase sempre com um fator em comum: o tempo de estágio. “Um bom vinho, com a idade, fica muito bom. Um excelente fica inesquecível.”
Cova da Ursa 2005 a 2009, Bacalhôa
O meu avô alentejano fazia questão de ter alguém a beber com ele à refeição. Isso fez-me começar a gostar de vinho. Foi nessa altura que comecei a provar vinhos da região de Setúbal, e este era já diferenciador. Não era de alta gama qualitativa, mas era algo que eu bebia com mais atenção, com mais gosto. Algo que me foi fazer tomar mais atenção ao vinho, mais do que apenas beber à refeição ou acompanhar o meu avô. Despertou a minha curiosidade para o vinho. Hoje chama-se Bacalhoa Chardonnay. Já não o bebo regularmente, porque vamos descobrindo outras coisas e apurando o gosto. Mas foi realmente diferenciador e mudou a minha forma de ver o vinho.
Alfaiate / Galego Dourado 2016 (?), Herdade do Portocarro
Já a trabalhar com o vinho, conheci a Herdade do Portocarro, no Torrão, muito próximo do limite entre a Península e o Alentejo. É um produtor muito pequeno, que tinha um vinho fantástico, o Alfaiate, que por sua vez deu origem a outro vinho.
Era um mistura de várias castas, entre elas galego dourado, que eu desconhecia na altura. Foi um dos primeiros vinhos que provou com mineralidade marcada – aromas de pederneira, de pólvora. Um vinho que me dava muito prazer servir e provar, e um dos que me fez tomar mais atenção aos brancos em Portugal e na região.
Por volta de 2016, o Alfaiate originou um monovarietal de galego dourado. Provei-o ainda sem rótulo, à mesa com o produtor, José Mota Capitão, e uns amigos. Um vinho fenomenal que mostrou ainda mais a qualidade desta casta, nesta zona, feita por esta pessoa.
Periquita 1964, José Maria da Fonseca
Tive a sorte de me oferecer uma garrafa, que abriu numa noite de Inverno com amigos, em casa, em 2015. Mostrou-se fantasticamente bem. Já com notas terciárias de couro, de chão de bosque, mas ainda tinha fruta, o que é incrível. Ainda tinha aromas de fruta silvestre, de menta. Era altamente prazeroso, o que é muito difícil para um vinho com esta idade. Esse foi o meu primeiro castelão. Ficou-me na memória.
O Periquita foi o vinho que mudou o paradigma do que é um castelão bem feito, com muito cuidado na vinha para evitar a sobreprodução. Hoje o Periquita normal já não é um vinho de guarda, mas o Superyor ainda é um óptimo exemplo do que é um castelão. Ficaria curioso por provar um daqui a 40 anos.
Garrafeira 2012, Quinta do Piloto
É de vinhas muito velhas. Esteve 16 meses em barrica, cinco anos em garrafa, e foi lançado em 2019. Um bom castelão – em paralelo com muitas boas castas – ganha seu potencial máximo com o tempo em garrafa. Em 2019 estava numa forma soberba. Na altura foi uma grande surpresa, os monovarietais de castelão eram bons, mas ainda não me tinham descoberto tanto assim. Estava a provar um vinho com sete anos cheio de vida, cheio de fruta, parecia ter sido engarrafado há um ano ou dois. Isto é normal dos grandes, grandes vinhos. Tanta jovialidade, tanta fruta, tanta intensidade, mas já com toques que não aparecem quando o vinho é muito novo.
A Quinta do Piloto apostou num vinho que decidiu guardar e levou-o para o mercado já guardado. É um factor muito importante, porque nem o cliente nem os restaurantes têm oportunidade de guardar vinhos. Ou já vem com alguma idade, e o cliente paga essa idade, ou é consumido muito jovem e nunca chega a mostrar todo o seu potencial.
Trilogia / Torna-Viagem, José Maria da Fonseca
No Moscatel, como em qualquer bom fortificado, a idade é importante. O trabalho feito por José Maria da Fonseca é de extrema importância para a prova da capacidade de envelhecimento e para o incremento da qualidade.
Há dois que me marcaram imenso. O Trilogia, que é um mistura de 1900, 1934 e 1965. Custava cento-e-tal euros, mesmo assim muito barato para o vinho que era, hoje ronda os 300, altamente justificáveis. É um vinho que muda completamente o paradigma do que pode ser um moscatel de Setúbal.
O outro é o Torna-Viagem, que só o provei duas vezes. É um nicho dentro dos moscatéis, poucas pessoas o provaram. Inicialmente nasceu por ter sido transportado para o Brasil e regressado a Portugal. A ida e a volta mudaram não, não apenas as diferenças de variação, de temperatura, mas o fato de estar em constante movimento no barco. Décadas mais tarde, estava fantástico. Hoje continua a haver vinhos que vão e voltam, para que esta história se continue a contar.
É claro que existem outros moscatéis importantes e não precisamos de gastar 300 euros numa garrafa para ter um moscatel extraordinário. Há moscatéis com 5, 10, 20 anos que são fenomenais e que custam bem menos.
Depoimento recolhido e editado por João Mestre
Este artigo foi publicado no n.º 8 da revista Solo.