Ah, ó Natal! Uma época mágica, muito mágica, aliás, em que as luzes brilham de forma diferente e as decorações impecavelmente dispostas nas ruas e nas lojas fazem-nos acreditar que tudo à nossa volta é perfeito, vive-se em harmonia… Até entrarmos num centro comercial. E, então, tal como numa caverna, deixamos vir ao de cima os nossos instintos mais básicos.
Lá dentro, a música altíssima ressoa como um despertador que acaba com um sonho bom e remete-nos para uma corrida desalmada aos consideráveis presentes sobre os quais não pensam em momento algum, tendo apontado simplesmente o nome das pessoas, numa lista infindável de propósitos de agradecimentos, comprando coisas que de tão inúteis que nem sequer queremos dar, e pior, não temos dinheiro para comprar!
E o que dizer sobre os golpes para esticar mais o braço para chegar sincera caixinha antes de qualquer outro esperalhão, porque se pode haver alguma nessa loja, que sejamos ridicularmente nós a somar depois dos empurrõezinhos estratégicos na fila da caixa? Nada como uma cotovelada discreta e um ar implacável de “cheguei primeiro… estou a avisar-te” para logo de seguida, mais afincadamente nos lábios e no olhar darmos o ar da nossa graça do verdadeiro espírito de Natal: “Se me passas à frente nem sabes o que te acontece!”
Mas voltamos aos presentes. Sejamos sinceros, o Natal não seria mágico sem aquele momento clássico: comprar algo totalmente inútil, repetindo a ideia já identificada de que sentimos a obrigação de dar alguma coisa, afinal, porque fica mal ou as pessoas vão comentar se não dermos nada… É o espírito das meias com renas e borbotos que vieram de fábrica, dos bombons, das velas com cheiro a banana da Madeira, e dos pacotes com caixinhas e frasquinhos de tudo o que se pode imaginar, inclusive de sais de banho para quem não tem banheira ou até um belo pente para o tio que sempre convivem careca.
Escolhido o mono, até reclamamos com a menina que está a fazer os embrulhos a correr, porque a fila vai longa: “O laço não está impecável como deveria!” É que ao menos isso tem de ser bonito, já que é certo que quem recebe o presente dentro do embrulho cuidado vai querer trocar o que está lá dentro.
E os gastos? Passar carrinhos mais ou menos dourados é tão fácil! É um gasto invisível: sai da carteira, passa, volta intacto à carteira. E, afinal, quem precisa de gerenciar as compras quando há crédito? Nesta época, até quem anda o ano inteiro a contar os tostões e a esquivar-se a pagar um mísero café transforma-se em verdadeiras mãos largas — “Ponha tudo no cartão de crédito (em janeiro logo se vê!)”
Já em casa, a curar as pisadelas nos pés e a dizer mal da senhora à nossa frente na fila da loja gourmetque demorou um tempo infinito para decidir se levava patê ou foie grasolhamos para o monte de caixas, caixinhas e sacos agrafados com e sem laçarotes e prometemos a nós mesmos: “No próximo ano, vai ser diferente, vou planejar tudo com mais cuidado, com a devida antecedência.” Até dezembro chegar outra vez… E entraremos exatamente na mesma roda viva.
E a conclusão torna-se indiscutivelmente óbvia: há mesmo algo de mágico no Natal! Entre a correria, a Mariah Carey e os brilhos conseguiram, mesmo assim, sobreviver ao caos das compras apressadas e amontoadas e acabamos por fazer sempre o mesmo, ano após ano.
As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990