Gente obrigada a comer roupa íntima para evitar ser esfaqueada; 16 tiros nas costas de um alegado violador; um homem furado por uma serra elétrica depois de ser espancado quase até à morte; dois avós armados num funeral para abater o tarado-raptor do neto; uma mãe que põe Pepsi no biberão de um bebé, a mesma mãe que um dia pára o carro para bater no filho até à morte, essa mesma mãe que usa a urina do filho para não perder um emprego: J.D. Vance, candidato de Trump a vice-presidente da América, vem de um lugar de violência e de repúdio por ricos e foi parar a um sítio onde defendia Obama e questionava a retórica conservadora. No fim veio dar a esta corrida eleitoral para se posicionar ao lado do milionário Trump vs. Kamala e Walz. Esta é a história de J.D. Vance, contada em sete breves e alucinantes episódios – contém linguagem e descrições explícitas, sujas, brutais, está feito o aviso. “Quase todas as pessoas nesta minha história estão cheias de defeitos. Algumas tentaram assassinar outras pessoas e umas poucas foram bem-sucedidas. Algumas abusaram dos filhos, física ou emocionalmente. Muitas usaram (e ainda usam) drogas. Mas amo estas pessoas”
1. Vais comer as cuecas
Teaberry tem uma irmã, um dia Teaberry está num sítio, nesse sítio um homem diz “quero comer as cuequinhas da tua irmã”, Teaberry ouve isso e a seguir sai daquele sítio; Teaberry vai a casa, procura umas cuecas da irmã, encontra-as, Teaberry deixa a casa e volta ao sítio de onde aquele homem não saiu, “agora vais ter de comer as cuecas” – Teaberry tem uma faca e o homem ou opta pela ofensa corporal ou pela ofensa ao seu orgulho, opção 2, come as cuecas. Teaberry não é um homem metafórico, a faca dele é literal, homem que quer comer as cuecas da irmã de Teaberry ou as come de facto ou morre mesmo.
Teaberry é do condado de Breathitt, que fica na cidade de Jackson, estado do Kentucky, Estados Unidos, entretanto em Breathitt um homem é acusado de violar uma rapariga, vai ter de responder em tribunal por isso, aliás: devia ter de responder em tribunal por isso mas a justiça popular antecipa-se à justiça oficial, por isso antes do julgamento aquele homem é encontrado de bruços num lago com 16 buracos de balas nas costas. O assassínio nunca foi investigado, a única menção pública ao caso apareceu no jornal do dia seguinte com este título, “Homem encontrado morto. Provável crime”.
“– Provável crime? – urrou a minha avó. – Podes crer. Breathitt deu cabo daquele filho da puta.” Esta avó é a dona das cuequinhas que o homem do parágrafo inicial comeu à força de uma faca, portanto a avó é a irmã de Teaberry, adiante daremos explicações sobre o neto – neto que chama “tio” aos irmãos da avó porque este é um neto que fez mãe da avó. “Algumas pessoas podem concluir que venho de um clã de lunáticos”, escreve o neto. Escreve isso sem ironia – e com orgulho.
2. Passou-lhe uma serra elétrica pelo corpo
Um dia um camionista foi entregar coisas a uma das empresas do tio Pet, se é tio já sabemos que relação tem com avó e neto, retomando: o camionista foi entregar coisas e diz ao tio Pet “descarrega lá isso, ó filho da puta”, o tio Pet é um homem literal como Teaberry, se é literal já sabemos que relação vai ter com o agressor; o tio Pet responde ao camionista “ao falar assim estás a chamar puta à minha querida mãe, por isso peço-te delicadamente que tenhas mais cuidado com o que dizes”, o camionista é conhecido por uma alcunha curiosa, “Big Red”, big por ser grande-forte, red pelo cabelo ruivo, o Big Red insiste, “descarrega lá isso, ó filho da puta”, o tio Pet descarrega sim mas não a mercadoria, descarrega no Big Red: tira-o à força de dentro do camião, espanca-o quase até o matar, a seguir passa-lhe uma serra elétrica pelo corpo, o Big Red quase morre de hemorragias severas. O tio Pet nunca foi para a prisão, o Big Red recusou-se a falar com a polícia sobre o que aconteceu e nunca quis apresentar queixa, Breathitt é uma terra de gente com um código de honra peculiar, “o tio Pet fez o que qualquer empresário racional teria feito”, elogia o neto. Escreve isso com ironia – e com orgulho.
Diz ainda o neto: “Estas histórias faziam com que eu me sentisse parte da realeza saloia porque eram histórias clássicas do bem contra o mal e a minha gente estava do lado do bem. A minha gente era radical mas ao serviço de alguma coisa – defender a honra de uma irmã ou assegurar que um criminoso pagasse pelos seus crimes. Os homens Blanton, assim como a sua irmã mais nova [a minha avó], a quem chamo mamaw, eram executores da justiça saloia e, para mim, esse era o melhor tipo de gente possível”. Neto: J.D. Vance, candidato a vice-presidente dos EUA, número 2 de Trump. Um neto a descrever códigos de honra.
Outro código de honra: “A mamaw dizia que não existe nada mais vil do que um pobre roubar outro pobre. A vida já é dura o suficiente. Não precisamos de a tornar mais dura uns para os outros”. Mais código de honra: “Aqui as pessoas cumprimentam-se todas na rua, deixam de boa vontade o seu passatempo favorito para desenterrar da neve o carro de um estranho e – sem exceção – saem dos seus automóveis e ficam de pé, em sentido, sempre que passa um carro funerário. ‘Porque é que’, perguntei à mamaw, ‘toda a gente fica parada de pé quando passa um cortejo fúnebre?’, ‘Porque, meu querido, somos gente do interior. E respeitamos os nossos mortos’”. E o neto respeita os seus vivos: “Eu amava e venerava os irmão da minha mamaw”. E o neto venerava e amava ainda mais a sua avó-mãe.
E adorava as histórias dela: há um dia em que a mamaw sai de casa para fazer coisas, a mamaw tinha mais ou menos 12 anos nesse dia, portanto ainda nem era mamaw nem J.D. Vance era nascido, ela sai de casa e vê dois homens a roubar a vaca da família – uma vaca vale sempre bastante mas vale ainda mais para uma família como a da mamaw, uma família que nem sequer tinha água em casa –, aqueles dois homens estavam a empurrar a vaca para a traseira de uma carrinha; a mamaw vê aquilo, volta para dentro de casa, pega numa espingarda, começa a disparar, acerta na perna de um dos homens, lembrem-se que a mamaw tinha 12 anos neste dia, o homem baleado cai e o outro está aos gritos enquanto salta para dentro da carrinha, o ladrão caído mal se mexe, a mamaw chega junto dele, aponta-lhe a espingarda à cabeça, prepara-se para o tiro fatal mas o tio Pet tinha chegado entretanto e salvou a vida do ladrão e a humanidade da irmã.
“A mamaw vinha de uma família que preferia disparar primeiro em vez de trocar argumentos. O pai dela era um velho saloio bronco e assustador com a boca suja e ostentando medalhas de guerra da Marinha. Os feitos criminosos do avô dela eram suficientemente impressionantes para aparecer nas páginas do New York Times. E apesar de a sua linhagem ser já de si assustadora, a própria mamaw Bonnie era tão aterrorizadora que, muitas décadas depois, um recruta dos Marines virou-se para mim e disse que o campo de treino iria parecer-me mais fácil do que morar em minha casa. ‘Os instrutores são maldosos’, disse ele. ‘Mas a tua avó…’ Essa maldade toda não foi suficiente para desanimar o meu avô. A mamaw e o papaw casaram-se ainda adolescentes, em 1947. Ela tinha 14 anos e ele 17.” Antes disso ela tinha engravidado, tiveram de fugir dos “defensores da honra da mamã” porque aqueles irmãos sem regras não iriam abençoar aquele adolescente-pai de 17 anos, a mamaw e o papaw fugiram mas a criança morreu seis dias depois de nascer, perderam mais oito filhos depois disso.
3. Parto-te o pescoço
Mas o menino Jimmy nasceu e sobreviveu, é um dos filhos da mamaw e do papaw, um dia foram os três comprar presentes de Natal a um centro comercial ao ar livre: os pais deixaram Jimmy à vontade durante uns minutos para ele ir procurar o que queria – um brinquedo de plástico que simulava o painel de instrumentos de um jato de combate, aquilo acendia umas luzes e disparava uns dardos, Jimmy queria sentir-se um piloto de guerra, então o menino vê o brinquedo numa loja, entra nela e começa a explorar o cockpit; o vendedor não gosta, diz à criança para largar o brinquedo e sair da loja, Jimmy obedece, fica à porta, está ao frio, entretanto chegam os pais, perguntam se ele não quer entrar na loja, afinal está ali o brinquedo, “não posso”, diz o Jimmy, “não podes?, admira-se o papaw, “não posso”, repete o Jimmy, “não podes porquê?”, chateia-se o papaw, “porque não”, lamenta o Jimmy, o papaw exige saber o que se passa, exige imediatamente saber o que se passa, é um imediatamente que parece uma faca ou 16 balas ou uma serra elétrica à procura do agressor do filho, o Jimmy explica que “aquele homem dentro da loja ficou zangado comigo e mandou-me sair, não posso entrar outra vez”, o papaw e a mamaw entram loja adentro, pedem explicações, o vendedor responde que a criança pegou no brinquedo e mexeu nele, que não é permitido, blá blá blá, o papaw pega no brinquedo, “é este brinquedo?”, é é, o papaw atira o brinquedo para o chão, espatifa-o, parte-o, o jato despenha-se mas o piloto-Jimmy fica a salvo no paraquedas tumultuoso dos pais, a seguir o papaw pega noutro brinquedo e atira-o, entretanto avança ameaçadora e triunfalmente na direção do lojista, a mamaw está a partir ao acaso objetos que vai tirando das prateleiras e diz ao marido “dá-lhe um pontapé no cu”, repete “dá-lhe um pontapé no cu”, o papaw está cara a cara com lojista, “se dizes mais uma palavra ao meu filho parto-te o caralho do pescoço”, o lojista está aterrorizado, pede desculpa e imediatamente a seguir a isso os Vance deixam a loja e continuam as compras de Natal como se nada tivesse acontecido.
“Quase todas estas minhas pessoas estão cheias de defeitos. Algumas tentaram assassinar outras pessoas e umas poucas foram bem-sucedidas. Algumas abusaram dos filhos, física ou emocionalmente. Muitas usaram (e ainda usam) drogas. Mas amo essas pessoas, mesmo aquelas com quem evito falar para preservar a minha sanidade”, escreve o neto no seu “Hillbilly Elegy”, livro que em Português é “Lamento de uma América em Ruínas” e que se tornou um filme de Ron Howard.
4. Pistolas no funeral – porque “há tarados que nos queriam enfiar paus no rabo”
E um dia J.D. Vance nasce filho de Beverly que é filha da mamaw, quatro ou cinco anos depois desse dia J.D. Vance está sentado num banco de igreja para o funeral de um tio-avô: o pastor pede aos presentes para baixarem a cabeça em sinal de respeito pelo morto, J.D. Vance cumpre o pedido cristão mas adormece durante aquele ato solene, J.D. Vance está sentado junto ao tio Pete, que é irmão da mamaw, entretanto a cerimónia acaba e o tio Pete pega numa Bíblia e coloca-a por baixo da cabeça de J.D. Vance, a Bíblia é uma almofada com centenas de histórias nem todas confortáveis; o tio deixa o sobrinho ali a dormir e vai circular pela igreja, entretanto as pessoas começam a sair do interior do edifício, a mamaw e o papaw estão à porta a ver a multidão sair mas começam a desconfiar, onde está o menino?, onde está o menino?, “havia tarados até mesmo em Jackson, diziam o papaw e a mamaw, tarados que nos queriam enfiar paus no rabo e ‘soprar-nos o pirilau’”, escreve o neto no seu livro enquanto conta esta história sobre o seu desaparecimento no funeral. O papaw e a mamaw combinam então um plano para encontrar o neto: só havia duas saídas da zona onde ficava aquela igreja e ainda ninguém se tinha ido embora, estavam todos à porta nas últimas conversas, então o papaw corre para o carro, pega numa Magnum .44 e numa .38 Special para a mamaw, cowboy e cowgirl ficam a controlar as saídas e examinam com as suas pistolas cada carro que sai: se fosse um carro de gente conhecida explicavam a situação e deixavam seguir, se fosse gente menos conhecida revistavam o carro “como se fossem agentes da polícia federal”, entretanto o tio Pete aparece, está irritado, pergunta-lhes porque estão atrasar a saída de toda a gente, ouve a explicação e começa a rir-se, depois explica que “deixei-o a dormir no banco da igreja, venham, vou mostrar-vos”, o papaw e a mamaw fazem como naquela história de Tomé sobre ver para crer que é contada na Bíblia-almofada de J.D. Vance, entram na Igreja armados de pistolas e a criança está mesmo lá.
“O papaw era um saloio amedrontador que se encaixava num outro tempo e noutro lugar. Durante uma viagem de um lado ao outro do país com a tia Wee eles pararam numa área de serviço na autoestrada de manhã cedo. A tia Wee resolveu pentear o cabelo e escovar os dentes e passou, por isso, mais tempo na casa de banho do que o papaw considerou razoável. Ele abriu a porta ao pontapé, empunhando um revólver carregado, como uma personagem de um filme de Liam Neeson. Explicou-lhe que pensava que ela tinha sido violada por algum tarado. Anos mais tarde, quando o cão da tia Wee rosnou para o bebé dela, o papaw disse ao marido, o Dan, que ou ele se livrava do cão ou o papaw iria dar-lhe um pedaço de carne coberto de anticongelante. Não estava a brincar: três décadas antes, ele tinha feito a mesma promessa a um vizinho quando um cão esteve a ponto de morder a minha mãe. Uma semana depois, o cão estava morto.”
O papaw era democrata porque acreditava que era o partido que defendia os trabalhadores, “todos os políticos podiam ser vigaristas mas, se houvesse algumas exceções, estariam sem dúvida entre os membros da coligação do New Deal de Franklin Delano Roosevelt”, dizia o papaw, ele que numa véspera de Natal regressa bêbedo a casa, exige que lhe façam comida imediatamente, quando este homem pede coisas imediatamente é porque a seguir vai agir com outro advérbio, um pior, ele faz isso mesmo, reage violentamente quando não lhe fazem a refeição no tempo que ele quer, pega na árvore de Natal da família e atira-a pela porta das traseiras, no ano seguinte cumprimenta as pessoas na festa de aniversário da filha a escarrar nos pés de toda a gente e depois sorri enquanto se serve de outra cerveja. A mamaw era politicamente mais complexa, “dependendo do seu estado de espírito era uma conservadora radical ou uma social-democrata ao estilo europeu”, “nos seus momentos de maior compaixão questionava o facto de o nosso país ter condições para custear porta-aviões mas não para financiar clínicas de tratamento de toxicodependentes – como a que a minha mãe frequentou – para todos os que precisassem”, às vezes “a mamaw criticava os ‘ricos’ como uma entidade que não estava disposta a carregar a sua justa parte do fardo social” – e era precisamente por isto que a mamaw e o papaw viam filosoficamente o mundo da mesma maneira: “Para eles, nem todos os ricos eram maus mas todos os maus eram ricos”.
5. Vou espancar-te até à morte
Entretanto: é preciso voltar àquele trovão no parágrafo anterior, “clínicas de tratamento de toxicodependentes – como a que a minha mãe frequentou”: Beverly, a mãe de J.D. Vance, deixou a escola quando engravidou aos 18 anos, foi quando nasceu Lindsay, irmã do agora número 2 de Trump, Beverly decidiu casar-se logo a seguir mas aos 19 anos já estava divorciada, depois veio o segundo marido, Don, J.D. Vance nasceu desse relacionamento e foi quando começou a caminhar que o pai deixou a família para ir formar outra, teve dois filhos pequenos que preferiu a J.D. Vance. Beverly casa-se uma terceira vez: Bob “era um estereótipo ambulante de um saloio”, tinha dois filhos com os quais raramente estava, metade dos dentes de Bob tinha caído e a metade que sobrava tinha cores desoladas, eram de cor “preta, castanha e estragada, consequência de uma vida inteira de consumo de Mountain Dew e provavelmente de poucas idas ao dentista”, Mountain Dew é um refrigerante.
“Em 2009, a ABC News fez uma reportagem sobre a América dos Montes Apalaches, que chamava a atenção para um fenómeno conhecido localmente como ‘boca de Mountain Dew’: dolorosos problemas dentários em crianças pequenas, geralmente causados por excesso de refrigerantes”, quando J.D. Vance tinha nove meses de idade a mamaw viu Beverly “a pôr-me Pepsi no biberão”, Beverly fez outras coisas piores, por exemplo: um dia disse ao filho que lhe ia comprar cromos, J.D. Vance adorava cromos, entram os dois no carro, conduzem rumo a um centro comercial, a meio do caminho J.D. diz algo que irrita a mãe, ela começa a acelerar e avisa que vai bater com o carro e matá-los aos dois, J.D. salta para o banco de trás, acredita que se usar dois cintos de segurança tem uma probabilidade maior de sobreviver ao embate, a mãe fica ainda mais furiosa e ameaça parar o carro, ameaça que vai espancar o filho até à morte, pára mesmo e J.D. abre a porta e foge, estão numa zona rural, ele corre pelo campo, vê uma casa com uma piscina, entra nela, “a dona da casa – uma mulher obesa, mais ou menos da mesma idade da minha mãe – estava a boiar de costas, desfrutando do calor agradável de junho”, J.D. está em pânico, pede àquela mulher para chamar a mamaw, “por favor, ajude-me, a minha mãe quer matar-me”, a mulher sai da piscina, leva a criança para dentro de casa e deixa que ligue para a mamaw, a mamaw atende, J.D. pede-lhe “por favor, vem depressa, a minha mãe vai encontrar-me”. E encontrou mesmo: bate à porta daquela casa, J.D. implora à dona que não a abra, a dona não abre, ameaça a mãe de J.D., diz-lhe que há dois cães dentro de casa que a vão atacar se ela entrar por ali adentro, J.D. olha para os cães e vê que não são maiores que gatos, por isso fica ainda mais apavorado com o tamanho da ira da mãe, Beverly arromba a porta, arrasta J.D. para fora, os gatos-cães ficam a ver, a dona da casa também.
“Odiei a dona da casa por não fazer nada”, escreve J.D. no seu Hillbilly Elegy, “mas ela de facto tinha feito alguma coisa: entre a minha chamada para a mamaw e a chegada da minha mãe, a mulher tinha aparentemente ligado para a polícia”, dois carros-patrulha chegam entretanto, os polícias veem a mãe a arrastar o filho, intercetam-na, algemam-na, ela ainda tenta resistir mas fica mesmo detida, J.D. é colocado no banco de trás de um dos carros a esperar pela mamaw, “já tinha arranjado com que me distrair, a sonhar acordado, quando a porta do carro se abriu e a Lindsay entrou e me abraçou com tanta força que eu mal conseguia respirar”, não choraram nem disseram nada, “fiquei apenas ali, a ser espremido e sentindo que estava tudo bem no mundo”.
“A minha mãe foi posta em liberdade mediante fiança e acusada de violência doméstica. O caso dependia totalmente de mim. Entretanto, durante a audiência em tribunal, quando me perguntaram se a minha mãe me havia ameaçado, eu disse que não. O motivo foi simples: os meus avós estavam a pagar uma batelada de dinheiro ao advogado mais poderoso da cidade. Eles estavam furiosos com a minha mãe, mas também não queriam a filha na cadeia. O advogado nunca incentivou explicitamente a mentira, mas deixou claro que o que eu dissesse iria aumentar ou diminuir as hipóteses de a minha mãe passar mais tempo na prisão. ‘Não queres que a tua mãe vá presa, pois não?’, perguntou-me. Por isso menti mediante o acordo de que, embora a minha mãe ficasse em liberdade, eu podia ir morar com os meus avós durante o tempo que quisesse.”
6. “Mijo limpo”
Beverly voltou a divorciar-se, teve outros homens e outros casamentos, incluindo um que aconteceu uma semana depois de se envolver fisicamente com um homem que era patrão dela, Beverly bebeu demasiado e tornou-se toxicodependente, o filho ficou temporariamente à guarda dos avós e isso salvou-lhe os estudos além de provavelmente a própria vida, não necessariamente a vida no sentido físico mas no sentido da boa vida, que foi isso que J.D. Vance teve – estudou até ao fim, cumpriu serviço militar, formou-se em Yale, enriqueceu -, mas pelo meio J.D. e a mãe ainda tiveram outros episódios, este: um dia a mãe vai ter com ele, pede-lhe urina limpa, isso mesmo, a mãe era enfermeira mas o histórico de dependência dela era conhecido, tinha de fazer análises regularmente para manter o emprego, Beverly pede a urina do filho porque a urina própria estava viciada de drogas, na verdade Beverly não estava bem a pedir a urina do filho, estava a exigi-la, “recusei”. A mãe muda de tática, substitui a agressividade pela fragilidade, chora e implora, “prometo que vou melhorar, prometo”, J.D. explodiu, “disse à minha mãe que, se ela quisesse mijo limpo, devia parar de foder a vida dela e obtê-lo da sua própria bexiga”, a mãe vai contar à mamaw, a mamaw cede ao desespero da filha e pede a J.D. para ele próprio ceder ao desespero da mãe, “disse à minha mãe que ela era uma mãe de merda e disse à mamaw que ela também era uma mãe de merda, a mamaw empalideceu, nem sequer me olhou nos olhos, o que eu disse atingiu-a claramente num ponto fraco”. “Apesar de ter falado a sério, eu também sabia que a minha urina talvez não estivesse limpa”, escreve J.D. Vance, que contou à mamaw que tinha fumado erva duas vezes nas últimas três semanas, a mamaw tranquiliza o neto-filho, goza até com ele, “algumas baforadas não acusam no teste, além disso provavelmente não soubeste fazer nada dessa merda, não travaste o fumo mesmo que tenhas tentado”.
O episódio da urina transformou em definitiva a vida temporária de J.D. Vance à guarda dos avós, “nunca mais voltei para as casas da minha mãe e dos seus homens”, a avó-mãe tornou-se mãe a tempo inteiro, Beverly “não pareceu importar-se” mas pelo menos passou no exame da urina. “Hoje, lembrar-me dessa época para escrever provoca uma ansiedade intensa e indescritível em mim. Há não muito tempo, notei que uma amiga do Facebook (uma conhecida de colégio com raízes saloias semelhantes) mudava constantemente de namorado – terminava e iniciava relacionamentos, publicava fotos de um homem numa semana e de outro três semanas depois, e entrava em conflito com o seu novo companheiro nas redes sociais até a relação ruir publicamente. Ela tem a minha idade e é mãe de quatro filhos, quando ela disse nas redes sociais que tinha finalmente encontrado um homem que a trataria bem (um estribilho que eu já tinha ouvido muitas vezes antes), a filha dela, de 13 anos, comentou: ‘Pára com isso. Peço-te que pares com isso’. Gostaria de poder abraçar essa menina porque sei como ela se sente.”
7. Meu Deus, que idiota
Entretanto a vida faz o mesmo de sempre, que é tirar-nos gente que haverá de nos fazer falta todos os dias até ao dia que for o nosso último, a vida é saudade a amontoar-se consecutivamente porque essa é a maneira dolorosa de a vida nos provar a gente boa que nos deu, o papaw morre, a mamaw também, J.D. Vance torna-se ele também um adulto a acumular saudade, depois amigos e familiares começam a enviar-lhe emails, esta é uma época em que Obama é presidente, um desses emails vem de Alex Jones, locutor de rádio de direita – é assim que o próprio J.D. o apresenta -, Alex manda um email no décimo aniversário do 11 de Setembro, alega que o Governo americano “desempenhou um papel no massacre dos seus próprios cidadãos”; num outro dia J.D. recebe “uma corrente de emails” que denuncia que o Obamacare exige a implantação de microchips nos novos pacientes, J.D. Vance acha isto “indigesto”, termo dele, “indigesto por causa das implicações religiosas: muitos acreditam que a ‘marca do demónio’ anunciada na profecia bíblica será um dispositivo eletrónico, alguns amigos meus alertaram-se uns aos outros sobre essa ameaça através das redes sociais”.
Outros emails: recebe um texto do WorldNetDaily, ao qual J.D. Vance chama “site popular”, nesse artigo é dito que um massacre à mão armada numa escola primária nos EUA ocorreu com a benção do governo federal com o propósito de mudar a opinião pública sobre o controlo de armas; outro email socorre-se de “muitas fontes da Internet” para provar que Obama vai implementar uma lei para ter um terceiro mandato presidencial; ainda sobre Obama: “Percentagens significativas de eleitores brancos conservadores – cerca de um terço – acreditam que Barack Obama é muçulmano. Numa sondagem, 32% de votantes conservadores declararam que acreditam que Obama tenha nascido no estrangeiro e outros 19% disseram que não tinham a certeza – o que significa que uma maioria de brancos conservadores não tem a certeza de que Obama seja sequer americano. Ouço frequentemente conhecidos ou parentes distantes dizerem que Obama tem laços com extremistas islâmicos ou que é um traidor ou que nasceu em algum canto distante do mundo”.
Portanto: “É impossível saber quantas pessoas acreditam numa ou em muitas destas histórias. Mas se um terço da nossa comunidade questiona as origens do presidente Obama – apesar de todas as provas em contrário –, pode apostar-se que as outras teorias têm um alcance maior do que gostaríamos que tivessem”, escreveu o J.D. Vance de outrora porque o J.D. Vance de agora admite estar disponível para difundir histórias falsas que possam beneficiar Trump. De novo o J.D. Vance de antigamente: “Eis onde a retórica dos conservadores modernos (e eu falo como um deles) fracassa em atender aos verdadeiros desafios da maior parte dos seus integrantes: em vez de incentivarem o envolvimento, os conservadores cada vez mais fomentam o tipo de desapego que exauria a ambição de muitos dos meus amigos”. E ainda: “Muitos tentam associar a raiva e o ceticismo dos brancos da classe trabalhadora à falta de informação. É verdade que há uma indústria de teóricos da conspiração e lunáticos que escrevem uma série de idiotices, desde as supostas inclinações religiosas de Obama até à origem dos seus antepassados”. E a indústria lunática tinha outra deriva sensível, “só 6% dos americanos acreditam que a imprensa é confiável”, para a maioria do país “a imprensa livre é um monte de merda” e o J.D. de outrora temia as consequências disso, “quando se confia pouco na imprensa ninguém pode verificar as teorias da conspiração da Internet que povoam o mundo digital”, o J.D. de agora usa literalmente uma parede humana constituída por apoiantes republicanos para vaiar os jornalistas que lhe fazem perguntas, o J.D. de outrora lamentava a existência de “um pequeno movimento cultural na classe trabalhadora branca para culpar o Governo ou a sociedade por todos os nossos problemas, um movimento que conquista adeptos todos os dias”, conquistou-o a ele próprio, ele que agora responsabiliza as mulheres que têm gatos em vez de filhos de estarem a colocar em risco o futuro do país. Ele que escolheu a via de Trump, a quem chamou outrora “Hitler americano” e “inapto para governar” e “imbecil igual a Nixon”, em vez da herança de Obama.
“Barack Obama atinge o cerne das nossas mais profundas inseguranças. Ele é um bom pai, enquanto muitos de nós não somos. Ele vai trabalhar de fato, enquanto nós usamos macacões, isso se tivermos a sorte de ter um emprego. A esposa dele alerta-nos para não darmos certas comidas aos nossos filhos e nós odiámo-la por causa disso – não por acharmos que ela está errada, mas por sabermos que tem razão.” É uma escolha: é mais fácil odiar do que admirar, odiar é uma decisão, odeia-se e já está, admirar é aceitar o que nos falta, o que queremos e não temos, admirar é um confronto delicado com as fraquezas próprias; é uma escolha: é mais é mais fácil maldizer as virtudes alheias do que trabalhar para ter pelo menos igual ou eventualmente melhor, é mais fácil pregar conspirações do que compreender a ciência dos factos, é mais fácil destruir do que edificar e é tão difícil aceitar o sucesso dos outros quando só temos o insucesso dos nossos, “Barack Obama atinge o cerne das nossas mais profundas inseguranças”, reparem que J.D. Vance usa a primeira pessoa do plural mas ele exclui-se do grupo, J.D. Vance é dos que trabalham de fato, é dos que têm a sorte de ter emprego – um bom emprego, daqueles que fazem enriquecer -, portanto este nós que ele usa é na verdade um eles, eles os “teóricos da conspiração e lunáticos que escrevem uma série de idiotices” e que J.D. Vance criticou no passado e acolhe no presente.
Os inseguros são eles porque J.D. Vance é de outra categoria, J.D. Vance nasceu sob a lei das facas, dos tiros, das agressões, de crianças de 12 anos a apontar armas à cabeça de ladrões, de avós armados de Magnum .44 que ameaçam partir “o caralho do pescoço” ao lojista que diz a uma criança para não mexer num brinquedo, das mães que pedem mijo limpo aos filhos e que os arrastam pelo chão depois de ameaçarem matá-los à pancada, dos 16 tiros nas costas de um homem para evitar que a justiça o liberte por um qualquer erro processual, J.D. Vance vem do abismo, “nada em Obama se parece com as pessoas que eu admirava quando cresci: o sotaque dele – limpo, perfeito, neutro – parece estrangeiro; as suas credenciais são tão impressionantes que chegam a ser assustadoras; ele construiu uma vida em Chicago, uma metrópole; e transmite uma confiança que advém do facto de saber que a meritocracia americana moderna foi feita à sua medida”, mas J.D. Vance conseguiu vencer o faroeste da sua infância para procurar ser limpo, perfeito e neutro como Obama, “na Faculdade de Direito de Yale senti-me como se tivesse caído com a minha nave espacial num planeta estranho. As pessoas diziam com a cara mais séria do mundo que, tendo uma mãe cirurgiã e um pai engenheiro, eram de classe média. Em Middletown, 160 mil dólares é um salário inimaginável; na Faculdade de Direito de Yale, as pessoas esperam ganhar isso no primeiro ano após a formatura. Muitos deles até receiam que não seja o suficiente”, e depois de J.D. Vance descobrir também ele que a meritocracia americana moderna foi feita à sua medida, “quando penso hoje na minha vida e no quanto ela é incrível – uma companheira de vida linda, gentil e brilhante; a segurança financeira com a qual sonhei durante toda a infância; amigos maravilhosos e novas e incríveis experiências –, sinto uma imensa gratidão por estes Estados Unidos. Sei que é piroso, mas é como eu me sinto”, depois de J.D. Vance ter descoberto isto tudo, depois de ter escrito este livro e de ter feito críticas a Trump durante a digressão publicitária de Hillbilly Elegy, depois de ter chamado “Hitler americano” e derivados a Trump, depois de J.D. Vance se ter designado a si próprio “um gajo ‘nunca-Trump’”, depois de ter até admitido preferir votar Hillary em vez de Trump em 2016, depois disto tudo Donald Trump Jr. gostou tanto de ler Hillbilly Elegy – “eu li o livro e…”, e agora o resto da frase vai em Inglês porque tem outro poder, “… and I really fucking like that guy” -, gostou tanto que contactou J.D. Vance, tornaram-se amigos e J.D. Vance apagou um tweet em que escreveu “Meu deus, que idiota”. Referia-se a Trump.