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Na quinta-feira (01/02), por volta das 18 horas, a brasileira Adriana Müller, de 41 anos, estava no carro com seu filho mais velho no caminho da academia na cidade do Porto, quando eles erraram o trajeto. “Ó Waze [aplicação que sugere percursos] nos colocamos numa rua errada e acabamos fazendo uma pequena contramão”, conta Adriana, que é esposa do jogador Lincoln Henrique, ex-Red Bull Bragantino e atualmente no Fenerbahçe da Turquia.
Com a ideia de que tinha atrapalhado uma pessoa, quando estacionaram ela baixou o vidro do carro para pedir desculpas. “Enquanto eu estava falando, ela abriu a porta do carro com força e quase me derrubou no chão. E saiu gritando comigo coisas como: ‘Vocês trazem podridão para o meu país. Volta para sua terra’”, disse ao PÚBLICO Brasil um influenciador , que se emocionou ao telefone ao falar sobre o caso.
No carro, também estavam o marido, a nora e dois filhos pequenos do casamento atual, de seis e três anos de idade. “Ficamos com medo de ela tentar bater nos meninos. Eles ficaram e ainda estão muito assustados”, conta Adriana, que mora com a família há cinco anos em Portugal.
Com cicatrizes e marcas no rosto e no pescoço, quando conta a respeito da agressão e do tratamento xenófobo que sofreu, Adriana diz que tem dificuldade em acreditar no pesadelo que sobreviveu. “Há momentos em que eu fico muito triste. É uma situação muito delicada, que ninguém merece passar. Não estou bem”, relata Adriana.
Gaúcha, Adriana afirma que foi a primeira vez que foi atacada por ser brasileira. “Sinceramente, até pensei que isso não existia, que as pessoas colocavam essas histórias nas redes sociais em busca de gosta”, admite ela, que não pensa em deixar Portugal. “Não podemos generalizar. Encontrei pessoas incríveis aqui. Mas também não posso ficar calada”.
No dia seguinte, Adriana fez o exame de corpo de delito no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses do Porto e registou um boletim de ocorrência. “Agora é com o meu advogado e a justiça portuguesa.”
Questão estrutural
Segundo a psicanalista Fernanda Hamann, a xenofobia é uma questão estrutural humana, mas também é um sintoma social. “Quando a sociedade está em crise, ela quer encontrar um problema. E estamos em crise: crise do capitalismo, guerras. Essas declarações sociais são combustíveis para a xenofobia”, explica.
Um especialista em comportamento humano enfatiza a necessidade de uma ocorrência da sociedade. “Embora a xenofobia seja crescente nesses momentos de crises globais, é mais importante do que nunca que as sociedades se esforcem para cultivar a tolerância às diferenças. Se queremos sobreviver como humanidade, precisamos fortalecer nossos laços democráticos e diplomáticos. E isso só é possível a partir da acessibilidade de valores como a diversidade e a pluralidade humana”, acrescenta.
Fernanda cita a Alemanha nazista para falar sobre o assunto. “Quanto mais eu discrimino o outro, o diferente, mais eu me sinto igual aos meus. O povo alemão fez isso com os judeus como uma forma de se sentirem mais fortes, mais coesos, mais unidos”, explica.
E a xenofobia, lembra Fernanda, não existe só em território luso. “Os portugueses sofrem em Luxemburgo, por exemplo, assim como os venezuelanos sofrem no Brasil. É preciso haver uma educação para inibir esse tipo de violência, que pode gerar vários traumas”, assegura.
Um psicanalista enfatiza a importância de considerar também os casos velados de xenofobia. “Aquela que é implícita, de pequenos comportamentos, de olhares. Uma pessoa sente que não é bem recebida, mas, ao mesmo tempo, não consegue se defender porque nem está entendendo a situação”, sustenta Fernanda.
Outro ponto importante, segundo Fernanda, é o imigrante não cair na armadilha do xenófobo. “Há pessoas que acreditam neles, que sentem vergonha, que acham que valem menos por ser imigrante, que o ideal é ser europeu. É a famosa síndrome de vira-lata que o Nelson Rodrigues conhecia”, avalia, citando o escritor, dramaturgo e jornalista brasileiro, falecido em 1980.
Ela também recorreu a Freud, pai da psicanálise, para falar sobre a versão ao que é estrangeiro. “Ele criou um termo chamado narcisismo das pequenas diferenças, que é uma tendência de o ser humano atacar o outro, mesmo que esse outro seja só um pouco diferente dele”, diz.
Crime
Se a agressão a Adriana pode ser considerada um crime, há uma questão jurídica a respeito da xenofobia. Segundo a advogada Helena Neves, o artigo 240 do Código Penal português trata dessa questão. O texto da lei prevê que quem “incita à discriminação, ao ódio ou à violência contra pessoa ou grupo de pessoas por causa de sua origem étnico-racial, origem nacional ou religiosa, cor, nacionalidade, ascendência, território de origem, religião, língua , sexo, orientação sexual, identidade ou expressão de género ou características sexuais, deficiência física ou psíquica é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos”.
No entanto, o ataque pode até ficar impune. “É difícil enquadrar o ato de xenofobia. Por isso encontramos poucas condenações. Atualmente, há uma discussão que envolve vários juristas, no sentido de inscrever no código penal o crime de xenofobia. Há muitos casos em Portugal, mas sem a aplicação efetiva da lei”, afirma.