Num país que sente de forma cada vez mais intensa os impactos das alterações climáticasestamos preparados para defender o direito a um clima estável e à ação climática? A conferência “A litigância climática em Portugal: os primeiros passos” reuniu nesta quarta-feira, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), magistrados, advogados e académicos para refletir sobre a justiça climática nos tribunais portugueses e encontrar respostas para este problema complexo, cada vez mais presente na vida das pessoas, mas para o qual ainda não existem respostas claras do ponto de vista judicial.
Antes de mais, faltam leis especificamente aprovadas para lidar com este problema, o que faz com que sejam temas de difícil aplicação. O conjunto de normas jurídicas criadas específicas para lidar com as alterações climáticas é ainda “insuficiente e incipiente”, explica Heloísa Oliveira, professora da FDUL e investigadora do Centro de Estudos de Direito Público de Lisboa.
“São poucos e têm uma regulação muito genérica que dá margem para muita discussão sobre a sua juridicidade” (ou seja, sobre se têm valor de lei vinculativa) — o que é importante para ponderar o que é possível exigido perante um tribunal.
Que leis?
Mas… a que tribunal? Olhemos, por exemplo, para o processo que a associação Último Recurso, ao lado da Quercus e da Sciaena, moveu contra o Estado português pelo cumprimento da Lei de Bases do Clima, actualmente pejada de prazos ultrapassados.
O tribunal de primeira instância decidiu inicialmente apreciar o caso, o que motivou o recurso diretamente para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), que por sua vez acabou por devolver o caso à primeira instância, exigindo às associações que apresentassem medidas concretas em que o O Estado estava em falta na regulamentação da Lei de Bases do Clima.
Uma das grandes questões levantadas por quem tem o caso é a jurisdição escolhida para apresentar o processo. Muito do que falta para cumprir a Lei de Bases do Clima são normas administrativas, como a aprovação de planos, e não necessariamente jurídicas, explica Heloísa Oliveira. Serão os tribunais judiciais o lugar certo para litigar contra o Estado?
“O Estado não poderia estar sentado naquele banco dos réus, teria de estar noutra jurisdição”, afirmou Carla Amado Gomes, uma das maiores especialistas portuguesas em direito do ambiente, referida pela agência Lusa.
Heloísa Oliveira esclarece ainda que em Portugal não está previsto o controlo da “omissão inconstitucional” — ou seja, o controlo que o Tribunal Constitucional faz é de leis que sejam inconstitucionais, e não da ausência de leis. Além disso, a Constituição da República Portuguesa protege o direito a um ambiente saudável, mas não existe um direito específico para as alterações climáticas.
O que faz falta
“O sucesso de casos de litigância climática nos outros países resultou do seu elevado profissionalismo”, explica ainda o docente da FDUL, referindo-se a escritórios de advogados ou organizações altamente especializadas, como a ClientEarth, que movem processos com “níveis de sofisticação muito elevados”.
O caso das KlimaSeniorinnen, as “avós pelo clima” às quais o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos deu razão num processo contra o Estado suíço, é um dos exemplos dessa disciplina jurídica, tendo começado a nível nacional uma batalha judicial que aprimorou os passos e argumentos do caso Urgênciaque em Dezembro de 2019 teve uma das maiores vitórias da justiça climática junto do Supremo Tribunal dos Países Baixos.
Seria possível replicar este tipo de processos em Portugal? Sim, e talvez ainda mais: “Portugal tem algo único na Europa, que é a legitimidade popular”, explica Heloísa Oliveira, referindo-se à possibilidade de mover ações populares, que é rara na Europa. Paradoxalmente, contudo, “temos uma sociedade civil pouco litigante em matéria de interesse público”.
A litigância climática na Europa tem muitas vezes dado razão a quem defende que os tribunais nacionais também são tribunais de aplicação do direito internacional. Mas é preciso ir mais longe: “Não temos em Portugal a massa crítica nem nas universidades, nem escritórios de advogados, nem juízes com conhecimento especializado nas leis sobre alterações climáticas”, conclui a investigadora. Entre aqui a importância de conferências para reunir estes diferentes atores: “A universidade deve ter aqui um papel essencial de pensar nas questões mais complexas.”
Para que servir?
Entre os propósitos da litigância climática é o seu papel importante “para que se retire a ideia de que as questões do clima são apenas políticas”. “Tem a virtude de esclarecer que há um dever jurídico, e não apenas discricionariedade política”, esclarece Heloísa Oliveira.
Nenhum campo de direito internacional, por exemplo, existe o Acordo de Parisque é um tratado vinculativo, mas as suas obrigações jurídicas são procedimentais, ou seja, “não são obrigações de atingir resultados, apenas comunicar objectivos e pôr em prática medidas para atingir esses objectivos”. Tal como se tornou claro ao ouvir as intervenções dos países desenvolvidas nos procedimentos que decorrem no Tribunal Internacional de Justiça, “o Acordo de Paris está redigido de forma a reduzir as obrigações juridicamente vinculativas”, explica o docente da FDUL.
Em Portugal, para mais, ainda há poucas pessoas especializadas em direito do ambiente, descreve Heloísa Oliveira. Apesar de muitas sociedades de advogados já terem departamentos de direito do meio ambiente, mais aspectos para questões como avaliações de impacto ambiental ou outras áreas mais ligadas ao direito administrativo, ainda são poucos os atores preparados para lidar com a complexidade (tanto científica como legal) das alterações climáticas.
A projeção mediática também significa que as alterações climáticas “deixaram de ser um tema de nicho”, com consequências diretas na vida das pessoas que são cada vez mais evidentes: desastres naturais, ondas de calor, incêndios florestais, “as pessoas começam a sentir o impacto de forma mais direta”.
Interesses económicos
“O clima é uma matéria que tem também um grande interesse económico”, nota ainda a investigadora. A transição energética e a aposta nas energias renováveis trouxeram temas do ambiente para um lugar mais central, algo que “não vai voltar para trás”. Isto pode levar a uma atenção desproporcional do direito a temas como a segurança energética e aspectos econômicos associados, ignorando outros aspectos relacionados com o clima, como a biodiversidadea protecção do solo ou dos direitos humanos.
“Os interesses financeiros e económicos podem subverter os objectivos ambientais”, alerta Heloísa Oliveira. “É algo que francamente me preocupa um pouco.”
Um dos aspectos que levanta preocupações é a “financeirização dos aspectos ambientais”, acrescenta ainda a investigadora, dando o exemplo de instrumentos “à partida positiva, mas com risco de fraude elevado” como a criação de fundos “verdes” ou os mercados de carbonoque promete em troca a protecção da biodiversidade mas nos quais se tem constatado “uma sobrevalorização do impacto ambiental positivo”.