Nestas eleições, o Partido Democrata quer repetir os ganhos alcançados nas intercalares de 2022 graças ao aborto, mas é impossível prever se vai conseguir a dobradinha. “Ter o aborto no boletim de voto pode ser uma simples chamada de atenção para o que está em jogo nas eleições, num momento crucial em que uma pessoa está a votar, levando-a a votar nos democratas”
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Quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos suspendeu a lei federal que garantia o direito à interrupção voluntária da gravidez (IVG) desde 1973, conhecida como Roe v. Wade, a ira que se instalou entre uma parte do eleitorado norte-americano, em particular entre jovens mulheres, potenciou grandes vitórias do Partido Democrata nas eleições intercalares para o Senado e para a Câmara dos Representantes.
Estávamos em junho de 2022 e, mais de dois anos depois, quando faltam poucos dias para as eleições presidenciais, Kamala Harris e a sua campanha estão apostados numa dobradinha, sobretudo tendo em conta que o direito ao aborto vai estar a votos em 10 estados, incluindo dois dos sete mais decisivos nestas eleições, Arizona e Nevada – precisamente os dois estados onde, segundo recentes inquéritos de intenção de voto, divulgadas pela CNN a 30 de outubro, Kamala Harris e Donald Trump estão mais empatados. Isto depois de estados tradicionalmente conservadores, como o Ohio e o Kansas, terem obtido maioria nas urnas a favor do direito ao aborto nos últimos dois anos.
Abolida a lei federal de acesso ao aborto, 13 dos 50 estados norte-americanos têm atualmente em vigor proibições quase totais à IVG com exceções limitadas ou sem exceções – incluindo em casos de violação, incesto e riscos para a vida da mulher grávida – e outros 28 proíbem o aborto com base na duração da gestação. Mas apesar das restrições, mais de um milhão de IVG terão sido realizadas em 2023 a nível nacional, com dados do Instituto Guttmacher a mostrarem que, até maio deste ano, houve um aumento de 11% no número de abortos em relação a 2020, o último ano com dados totais disponíveis antes de a Roe v. Wade ter sido anulada pelo Supremo de maioria conservadora.
A tendência está mais do que comprovada, com outra investigação a mostrar que, na primeira metade deste ano, foram feitos cerca de 587 mil abortos em todo o território norte-americano, um aumento de mais de 12% face ao mesmo período do ano passado. “O número de abortos está no nível mais alto em décadas”, refere à CNN Portugal Aziza Ahmed, codiretora do Programa de Justiça Reprodutiva da Faculdade de Direito da Universidade de Boston. “Quanto mais não seja, este é um sinal de que o acesso ao aborto seguro é desejado e necessário. Não podemos deixar que as mulheres que precisam de aceder a um procedimento de saúde se desenrasquem sozinhas.”
A aposta do Partido Democrata pode não ser descabida se se considerar que, nas últimas semanas, o tema ultrapassou a imigração como o segundo tópico que mais mobiliza os eleitores a seguir à economia – e se se considerar também o que Ron Brownstein, editor de política da CNN Internacional, destacava esta semana, a dias da ida às urnas: se Kamala Harris derrotar Trump, essa vitória vai dever-se sobretudo às mulheres dos chamados estados-swing, ou estados-pêndulo, os tais sete onde todas as atenções vão estar focadas no próximo dia 5 de novembro.
“As mulheres correspondem à maioria dos eleitores em cada um dos estados-pêndulo e também a nível nacional e as taxas de participação eleitoral das mulheres são superiores às dos homens, uma diferença que é particularmente ampla entre mulheres e homens jovens”, sublinha Brownstein. “Se Harris ganhar a corrida, será graças ao apoio das mulheres nesses estados, em particular nos subúrbios de grandes cidades onde tradicionalmente se vota mais nos republicanos.”
Muitas mulheres dessas áreas suburbanas continuam a pender para os republicanos em questões como a imigração e a economia. Mas, segundo o especialista da CNN Internacional e outros analistas, muitas podem estar suficientemente preocupadas com a eliminação do direito ao aborto e com o futuro em risco dos direitos reprodutivos na América – o que pode empurrar este grupo demográfico para Kamala Harris.
“A questão não é se o aborto vai orientar os votos nesta eleição, é qual será o impacto disso, quão profundo e abrangente será”, diz Jessica Mackler, presidente do grupo Emily’s List, que trabalha para eleger mulheres democratas que apoiam o direito à IVG. “Em cada distrito eleitoral, em cada estado, esta é a questão que está a impulsionar a coligação democrata de uma forma verdadeiramente notável. Sempre que o aborto vai a votos, sob qualquer forma, tende a ser um fator de vitória para os democratas.”
Harris com vantagem de 14% entre as mulheres
Com as sondagens nacionais a mostrarem consistentemente desde 2022 que uma maioria dos americanos se identifica como pró-escolha, por oposição à barricada pró-vida que apoia as restrições ao aborto impostas pelos republicanos em vários estados, este é o tema que mais afasta os dois candidatos à presidência neste ano eleitoral – e, sem dúvidas, um dos mais fraturantes entre o eleitorado.
Kamala Harris e os democratas estão investidos em repor o direito das mulheres a decidirem sobre o seu próprio corpo – numa altura em que estudos mostram que as restrições conduziram também ao aumento da taxa de mortalidade infantil e a mais dificuldades de acesso a cuidados de saúde por mulheres que sofrem perdas gestacionais precoces. Como aponta Aziza Ahmed, “a mortalidade infantil está a aumentar no Texas, o que se deve, em parte, ao facto de as mulheres serem obrigadas a levar até ao fim gravidezes em que existem deficiências congénitas – isto é pedir às mulheres que assumam o fardo da mortalidade infantil”.
Do outro lado da barricada, os republicanos basearam a sua campanha em promessas de mais restrições ao aborto, aos níveis estatal e federal, para além de prometerem restringir severamente, a nível nacional, o uso de mifepristona, usada para induzir abortos medicamentosos, no que Ahmed diz que “irá mudar a natureza da assistência ao aborto nos EUA”. Mas essa postura nem sempre tem encontrado respaldo na retórica do seu candidato presidencial.
Ao longo dos últimos meses, vários inquéritos sugeriram que Kamala Harris, que promete proteger o acesso à mifepristona e reporto o direito ao aborto, tem uma vantagem de cerca de 14 pontos percentuais entre as eleitoras do sexo feminino em relação a Donald Trump, o que deixou a descoberto uma das maiores vulnerabilidades do candidato republicano. Apesar da postura oficial do partido que representa, Trump tem enviado mensagens contraditórias sobre o aborto nesta campanha, o que poderá ter afastado dele parte de um importante grupo demográfico que sempre o apoiou – os evangélicos.
Foi no início de setembro que aquele que, ao longo dos anos 1990, se declarou ferozmente pró-escolha até se mudar para o extremo oposto duas décadas depois cometeu o que muitos analistas disseram corresponder a um pecado capital aos olhos do eleitorado evangélico. “Acho que seis semanas é demasiado cedo”, disse sobre uma proposta que foi a votos na Flórida para proibir o aborto após as seis semanas de gestação – quando a maioria das mulheres ainda nem sequer sabe que está grávida.
“Ele já teve mais posições quanto aos direitos reprodutivos do que teve mulheres”, disse na altura Ana Navarro, famosa personalidade televisiva do Partido Republicano que apoia o direito à IVG, num comício de campanha dos democratas. Os factos mostram que Navarro tem razão. Numa aparição no programa Meet The Press em 1999, Trump disse ser “muito pró-escolha” – mas quando alguns republicanos trouxeram essa declaração a lume durante a última campanha presidencial, respondeu que a sua posição “evoluiu”.
Em fevereiro de 2016, um mês depois de tomar posse, elogiou a Planned Parenthood, a maior organização de apoio ao planeamento familiar dos EUA – mas disse que iria retirar-lhe financiamento por facilitar o acesso ao aborto. Um mês depois, disse que “tem de haver algum tipo de castigo” para as mulheres que interrompem gravidezes – mas quatro anos depois, e contra todas as declarações anti-aborto que proferiu, houve vezes em que pareceu moderar a sua postura quanto ao limite gestacional para uma mulher ser autorizada a abortar.
Quando os republicanos perderam muitos assentos no Congresso nas intercalares de 2022 no rescaldo da reversão da Roe v. Wade (e embora se congratule por ter sido ele a conseguir esse feito no Supremo Tribunal), Trump recorreu à sua Truth Social para dizer que a culpa foi “do tema aborto”, na sua opinião “mal gerido por muitos republicanos, especialmente aqueles que insistem firmemente no mote ‘Sem Exceções’, até em caso de violação, incesto e [riscos para] a vida da mãe”. Quatro meses depois, sugeriu que, se for eleito, apoiará uma lei federal para proibir o aborto após as 15 semanas.
Como apontava a MSNBC há menos de dois meses, o aborto está a provar-se o grande dilema de Trump nestas eleições. “Ele sabe que as políticas draconianas da sua base evangélica não são populares, o que o levou a dizer, de forma pouco convincente, que uma ‘administração Trump vai ser ótima para as mulheres e os seus direitos reprodutivos’. Mas precisa desses eleitores brancos evangélicos ao seu lado [para ganhar]. As frenéticas mudanças de Trump sobre o assunto não têm a ver com falta de conhecimento. Têm a ver com desespero.”
Para alguns, contudo, a jogada política é óbvia. “Há alguém que não veja através disto?”, questiona em tom retórico Amy Weintraub, diretora de programas da Progress Florida, uma das organizações que conseguiu levar o direito ao aborto a votos naquele estado, em entrevista ao FT. “Ele só está a fazer aquilo que precisa de fazer em termos políticos.”
Aborto pode fazer pender a balança não apenas na presidência
Com as atenções particularmente focadas em sete estados-chave, destacam-se as propostas de lei relacionadas com o aborto que, na próxima terça-feira, vão a votos no Nevada e no Arizona – estados onde não é só a corrida presidencial que está renhida, mas também as corridas ao Senado, quando os democratas correm sérios riscos de perderem a maioria que detêm atualmente.
No Arizona, os eleitores vão ser chamados a decidir se querem alterar a atual lei estatal em vigor para permitir interrupções da gravidez após as 15 semanas de gestação; no Nevada, onde o aborto é legal até à viabilidade do feto (24 semanas), o objetivo imediato do projeto-lei nos boletins de voto “parece ser puramente político”, refere o New York Times. “Ter o aborto no boletim de voto pode ser uma simples chamada de atenção para o que está em jogo nas eleições, num momento crucial em que uma pessoa está a votar, levando-a a votar nos democratas”, denota Aziza Ahmed, da Universidade de Boston, à CNN.
Isso pode, ainda assim, não bastar para fazer pender a balança a favor dos democratas, em particular na disputa pelo Senado. Para manterem a atual maioria na câmara alta do Congresso, e numas eleições em que 33 dos 100 assentos do Senado estão em disputa, os democratas precisam de vencer em todas as corridas nas quais estão a defender os lugares que já detêm, no Maryland, Ohio, Pensilvânia, Wisconsin, Montana, Arizona e Nevada – e conquistar também a presidência, para manterem o voto de desempate no caso de o Senado ficar 50-50.
Para além disso, vários analistas têm destacado que muitos eleitores dos estados onde o aborto vai a votos poderem votar a favor de menos restrições à IVG e, ainda assim, darem o seu voto a Trump nas urnas. Isto apesar de o reforço das políticas identitárias e da polarização política ter vindo a tornar cada vez mais raros os casos de eleitores com voto dividido nos EUA, sendo cada vez mais comum um eleitor votar sempre no Partido Republicano ou no Partido Democrata de uma ponta à outra (leia-se, da presidência às eleições para as duas câmaras do Congresso).
“Com o dia eleitoral a aproximar-se”, apontava há uma semana o NYT, “há sinais de que um segmento pequeno mas crucial de eleitores pode vir a apoiar os direitos ao aborto e os candidatos republicanos, uma dinâmica que pode prejudicar a vice-presidente Kamala Harris nos estados-pêndulo e outros candidatos democratas em corridas decisivas [ao Congresso]”.
Uma sondagem da Sienna College para o jornal mostra que cerca de 12% dos eleitores do Arizona, por exemplo, dizem que vão votar a favor do aborto no referendo e em Donald Trump para a presidência. O resultado poderá ser um “estranho ecrã dividido”, em que os eleitores optam por proteger o direito ao aborto nos seus estados, mas também elegem senadores que têm apoiado as restrições, bem como o antigo Presidente Donald J. Trump, que assume o crédito pela anulação da Roe v. Wade.
Para além disso, é preciso não esquecer o peso que o aborto não vai ter noutros estados decisivos, como o Michigan, onde não haverá nenhuma proposta de lei relacionada com IVG a votos nestas eleições. Apesar de todas as propostas de lei estatais para proteger o direito ao aborto que já foram a votos desde a reversão de Roe v. Wade terem saído vencedoras, esses referendos coincidiram com intercalares ou tiveram lugar fora de anos eleitorais.
Em ano de presidenciais, contudo, todos são chamados a votar e isso torna o ambiente político menos previsível em todo o espectro, incluindo na disputa pela Casa Branca. “É difícil prever o que as pessoas vão fazer nas urnas”, diz Aziza Ahmed. “A questão do aborto é importante para Kamala Harris e é provável que atraia as mulheres para o seu campo, é possível que haja famílias divididas em que a mulher apoie Kamala Harris e o homem apoie Trump. [Mas] penso que as pessoas que dividem o seu voto desta forma, pró-escolha e republicano, estão a subestimar seriamente o que o governo federal tentará fazer sob Trump para impedir o acesso ao aborto. Isso terá certamente impacto nas mulheres, independentemente do estado onde vivem.”