A memória é um fenómeno interessante, mas também arriscado. Enquanto um indivíduo registra momentos através de experiências próprias, as sociedades constroem memórias coletivas que moldam integradas, identidades e narrativas nacionais. Mas a memória não é história e essa diferença é crucial.
A história, enquanto ciência humana, busca compreender o passado metodologicamente através da análise de fontes e evidências, entendendo especificamente o evento e a sua complexidade. Já a memória, individual ou coletiva, é seletiva, emotiva e propícia a interesses, organizada para legitimar ideias, ações e até regimes políticos.
Podemos dizer que é um poderoso cimento social, no entanto, vulnerável a perturbações. Aqui, o historiador tem uma responsabilidade: esclarecer essas deturpações, esclarecer que o passado é feito de vários tons de cinza – não apenas preto ou branco – e dialogar de forma responsável com o público.
Um dos aspectos mais duvidosos da memória colectiva é o papel dos “heróis”. Na narrativa nacionalista, os “heróis” têm um papel fundamental. Enaltecidos como símbolos de virtude e coragem, especificamente são representados com as complexidades de qualquer ser humano. Criados, não apenas para celebrar feitos do passado, mas também para moldar ideais do presente e do futuro. O mesmo acontece com a utilização de “nós, portugueses” numa alusão a outros tempos. É um erro anacrônico comum, intencional ou não, de criar uma conexão com um passado “glorioso”, como se fôssemos de um estirpe raro e excepcional.
Em Portugal, os discursos oficiais oferecem-nos uma série de “heróis” históricos: D. Afonso Henriques, Infante D. Henrique, Vasco da Gama… Cada um deles é apresentado como um ícone de feitos grandiosos — o fundador da nação, o visionário dos Descobrimentos e o navegador que abriu novos mundos. Mas será essa visão imparcial? Será produtivo?
Os “heróis”, conforme apresentado, são criações políticas e culturais. Os feitos atribuídos a estas figuras costumam ser romantizados ou ampliados, enquanto as falhas e controvérsias são omitidas. Tomemos, como exemplo, o Infante D. Henrique, celebrado como o “Navegador”. É descrito como o arquiteto de uma “era de ouro”, como se tivesse planejado toda a expansão que se desenrolaria nos séculos seguintes. Ou então D. Dinis, que mandou ampliar o Pinhal de Leiria já a pensar na necessidade de madeira para construir as embarcações que o período de expansão exigiria. Como é claro, está fora do alcance humano prever as necessidades dos séculos seguintes, a não ser que acreditemos em profecias fantasiosas.
A questão vai mais além: a existência de “heróis” implica a presença de “vilões”. Este maniqueísmo básico — o bem contra o mal — empobrece a história, ignorando que os acontecimentos do passado são moldados por interesses, contradições e perspectivas. Não há personagens intrinsecamente bons ou mais na história; há ações, contextos e consequências.
Os “heróis” servem interesses políticos, culturais ou sociais de quem os promove. Procurem criar um sentimento de orgulho nacional, mas também para aplicação de políticas de exclusão ou violência. Consideramos o Infante D. Henrique um visionário, contudo, esquecemo-nos das consequências que as expedições marítimas realizadas para os povos africanos. Celebramos Vasco da Gama como “herói” nacional, mas ignoramos os actos de brutalidade que o acompanharam até à Índia. Tal como não nos compete julgar o passado, também não nos cabe glorificá-lo.
A história não deve servir para promover agendas, mas para compreender os enredos do passado e a sua complexidade. Isso inclui dar voz às histórias marginalizadas, considerar consequências de determinadas ações e desafiar os mitos das narrativas simplistas. Num mundo polarizado, onde a memória é frequentemente usada como arma política, o historiador tem um papel fulcral.
Para isso, é necessário um diálogo aberto entre a história e a sociedade. Não se trata de destruir mitos heróicos ou apagar memórias que enriquecem a identidade coletiva, mas de promover um conhecimento crítico. D. Afonso Henriques e Vasco da Gama podem continuar a ser figuras centrais da história portuguesa, mas as suas ações devem ser contextualizadas, discutidas e até problematizadas.
O desafio para os historiadores e para a sociedade é conjugar a memória com a história e a celebração com a crítica. Assim, poderemos realmente honrar o passado e promover um entendimento mais justo e inclusivo do mundo que nos precedeu.