Num encontro com jornalistas em Lisboa, o vice de Joe Biden para o Crescimento Económico, Energia e Ambiente comentou a participação da China em grandes empresas portuguesas, sublinhou o interesse dos EUA no lítio em Portugal e a importância de apostar em minerais críticos, e defendeu o impacto positivo do Conselho de Comércio e Tecnologia EUA-UE – que ajudou o Ocidente a “estar preparado” quando a Rússia invadiu a Ucrânia e que, assegura José W. Fernandez, “vai avançar para a segunda fase”
A visita “era esperada há muito” e José W. Fernandez parte de Lisboa para Madrid com “uma conclusão bastante simples” no que toca ao comércio bilateral entre os Estados Unidos e Portugal, que em 2023 atingiu um valor recorde, com os americanos a representarem o maior investidor extracomunitário em Portugal – e no ano em que as trocas já cresceram mais 25%, graças a “algumas oportunidades” nos setores da energia verde, tecnologia e centros de dados. “As nossas relações económicas estão numa trajetória ascendente e sinto que há otimismo, mas também um sentido de urgência entre as empresas portuguesas, porque hoje temos oportunidades em áreas em que podemos entrar e penso que chegou a altura de as aproveitar.”
Numa mesa-redonda com jornalistas portugueses na embaixada norte-americana, foi a China a ditar muitas das perguntas ao vice-secretário da administração Biden para o Crescimento Económico, Energia e Ambiente. “A China é o nosso terceiro maior parceiro comercial, temos uma relação comercial muito robusta com a China, mas estamos preocupados e já o referimos publicamente”, ressaltou mais do que uma vez. “Temos uma abordagem estatal não-mercantil apoiada pelo Governo da China, as empresas chinesas não pagam impostos, recebem subsídios, se abrem falência são salvas, e isto cria um campo de jogo desigual, em que as empresas privadas [fora da China] simplesmente não têm hipótese de competir.”
Fernandez dá como exemplo o caso do lítio, em que Pequim tem criado “sobrecapacidade no mercado”, uma questão que também abordou com empresas com as quais se encontrou durante a visita de dois dias a Portugal, como a Bondalti Lithium, Savannah Resources, Start Campus, Altice, Google, Equinix e Ericsson.
“Isto prejudica a capacidade de desenvolvimento das empresas portuguesas ligadas aos minerais críticos”, refere o responsável americano. “No caso do lítio, a China está a produzir muito mais do que as necessidades mundiais diretas, de longe, e o que é que se vê? Vê-se que o preço de mercado do lítio desceu de 80 mil dólares para 10 mil dólares, fiquei a saber hoje. Isso faz com que o investimento seja desencorajado e restringe a nossa capacidade de diversificar as cadeias de abastecimento a uma escala global alargada, para além de prejudicar os países que querem desenvolver estas indústrias, porque se o preço desceu 75% num ano, torna-se muito difícil encontrar investidores. As nossas empresas e as empresas portuguesas vão ter de sobreviver à difícil situação criada pela pressão predatória [da China].”
Mundo precisa de (muito) mais lítio
A questão do lítio é particularmente cara para Portugal, que segundo dados oficiais tem a maior reserva europeia do mineral crítico e a oitava maior do mundo, correspondente a mais de 60 mil toneladas. Segundo a Agência Internacional de Energia (AIE), se o mundo quer cumprir as suas metas ambientais até 2050, concretamente limitar o aquecimento global abaixo dos 1,5 graus centígrados nos próximos 25 anos, precisa de 42 vezes mais lítio do que aquele que é utilizado hoje, ressalta o oficial norte-americano.
“Isto significa que, a menos que se encontre esse lítio, a menos que se invista na mineração e refinação e processamento desse lítio, não vamos conseguir alcançar os nossos objetivos de energia limpa – que, como a administração Biden acredita desde o primeiro dia, é a crise existencial da nossa era. Se vamos precisar de 42 vezes a atual quantidade de lítio nos próximos 25 anos, vai haver um mercado – a questão é encontrar o mercado certo e a altura certa para avançar com projetos, e é do nosso interesse ajudar as empresas portuguesas a fazê-lo.”
Tal como a AIE, também o Banco Mundial referiu recentemente que é preciso investir 1,7 biliões de dólares no setor dos minerais críticos até 2050 para apoiar a transição para uma economia com baixas emissões de carbono. Mas há preocupações ambientais e de sustentabilidade relacionadas com a exploração desses minerais, em particular de lítio – preocupações que, assegura Fernandez sobre potenciais investimentos nas minas em Portugal, são o “cartão de visita” dos Estados Unidos.
“Queremos partilhar informação entre os investidores e temos salientado que queremos fazê-lo de uma forma que beneficie as comunidades, que beneficie os países, proporcionando bons empregos e não obrigando os países a escolher entre danos ambientais e crescimento económico”. Mas com muitas comunidades a oporem-se a projetos desta natureza “porque não veem os benefícios”, como é que isso se alcança?
“Garantindo que as empresas seguem as normas corretas na resposta às necessidades de minerais essenciais”, responde o responsável da administração Biden. “Conversámos com duas empresas portuguesas e elas disseram-nos quais são as suas necessidades. Têm grandes fábricas, acreditam que existem depósitos substanciais em Portugal na esfera do lítio e vão procurar financiamento, vão procurar fornecedores, vão procurar clientes e nós queremos ajudá-las e achamos que podemos fazê-lo, de uma forma que beneficie as comunidades e que acrescente bons empregos e tecnologia a Portugal e ao setor.”
China, temos um problema? “A segurança de Portugal impacta a segurança dos EUA”
Passaram seis anos desde que o então embaixador norte-americano em Lisboa, George Glass, manifestou preocupações com a entrada de empresas chinesas em Portugal e fez uma espécie de ultimato a Portugal, entre escolher fazer negócios com Pequim ou com Washington. Em causa estavam uma série de empreendimentos, incluindo a entrada da China Communications Construction Company na Monta-Engil, a tentativa de controlo da EDP pela China Three Gorges (CTG), a construção e gestão do Novo Terminal de Sines e o leilão 5G.
José W. Fernandez escusa-se a comentar a postura de Glass e de outros oficiais em visitas anteriores a Portugal, mas salienta que, no que toca ao 5G, “a segurança de Portugal impacta a segurança dos EUA”, porque “só somos tão fortes quanto o nosso elo mais fraco”, e que Portugal tem sido “um líder” no setor a nível europeu. “As vossas propostas têm sido amplamente apoiadas e, em muitos casos, seguidas pela União Europeia. Não estou a par dos detalhes, mas quer os EUA quer a UE promulgaram regulamentos que exigem que os fornecedores sejam de confiança e têm alguns requisitos – não estamos a fazer isto para beneficiar as nossas empresas, até porque não há nenhuma empresa americana no 5G, e aplaudimos os esforços de Portugal para dar o exemplo ao resto da UE.”
Sobre o envolvimento da CTG, o maior conglomerado chinês de energia limpa, na EDP, onde detém cerca de 21% do capital social, o responsável da administração Biden opta por deixar uma sugestão a Portugal e a todo o bloco comunitário. “Nos EUA temos um sistema para rastrear alguns investimentos estrangeiros, o CFIUS, que se foca em investimentos críticos, tendencialmente em infraestruturas e tecnologia, e que faz uma análise caso a caso. Por vezes, diante desses investimentos, o CFIUS impõe certas restrições, que dependem de critérios e salvaguardas específicos”, diz Fernandez.
“Não posso comentar casos específicos, são processos protegidos pela lei que não posso sequer reconhecer que existem, mas temos discutido com os europeus e já discuti também com portugueses que deveriam ter o mesmo, um sistema de revisão de investimentos estrangeiros muito específicos, para nos proteger a todos, para proteger a nossa segurança” – como, por exemplo, quando há aquisições de imobiliário próximo de instalações militares ou negócios envolvendo equipamento portuário.
No que toca aos investimentos chineses em particular, reforça Fernandez, os EUA “não estão a pedir aos países que façam uma escolha”, até porque “já deixámos claro que não estamos a desvincular-nos da China, estamos a reduzir os riscos” com aquele que, reforça, é o terceiro maior parceiro comercial dos EUA. “Aquilo que estamos a dizer é que existem certas questões que impactam a nossa segurança coletiva. Essa vulnerabilidade pode diferir em termos específicos, mas em termos gerais toda a gente reconhece que há aqui uma questão que tem de ser abordada. E é por isso que a UE fez o que fez em relação ao 5G e também noutros casos.”
Imposição de tarifas são uma resposta “lógica”
A reação da UE à influência chinesa nas economias nacionais do bloco não tem sido unânime. Em agosto, uma fonte da Comissão Europeia adiantou à Euronews que 11 Estados-membros, menos de metade do total de 27, já impuseram restrições a fornecedores da área das telecomunicações considerados de alto risco, como a Huawei e a ZTE, envolvidos em infraestruturas de 5G. Isso difere da postura assumida pela UE há poucos dias, com o anúncio de que vai mesmo avançar em bloco, apesar de algumas vozes dissonantes, com tarifas aos carros elétricos importados da China, num passo que José W. Fernandez vê com bons olhos.
“Voltamos à questão da sobrecapacidade e da injusta margem de manobra” para as empresas de outros países, refere o responsável norte-americano. “Nos EUA também estamos a impor tarifas aos veículos elétricos da China e vemos isto como uma resposta lógica para nivelar as condições de concorrência e também, mais uma vez, de encontrar formas de diversificar as nossas cadeias de abastecimento.”
Sem margem para perguntas mais latas sobre política externa, não foi possível apurar qual a posição oficial da administração Biden sobre a possibilidade de Donald Trump vencer as presidenciais de novembro – em concreto sobre a promessa dos republicanos de voltarem a impor tarifas a uma série de exportações europeias, numa altura em que a UE se debate sobre a melhor forma de proteger as relações transatlânticas e criar mecanismos “à prova de Trump”.
Aqui destaca-se o chamado Conselho de Comércio e Tecnologia UE-EUA (TTC), um fórum diplomático baseado em reuniões ad hoc que envolveram a criação, em 2021, de 10 grupos de trabalho para coordenar políticas em várias questões tecnológicas e económicas, a que a atual administração democrata quer dar continuidade. Em 2022, Fernandez desmentiu aqueles que questionavam o real alcance do TTC e que sugeriam que se tratava apenas de “um branqueamento que não vai de encontro ao cerne dos interesses comuns” – uma posição que mantém, agora que estão em curso discussões sobre “a segunda fase” do conselho.
“Estamos muito satisfeitos com o sucesso do TTC e entusiasmados com a oportunidade para a próxima fase do TTC”, indica Fernandez, citando algumas das conquistas do fórum transatlântico, nomeadamente a “colaboração em controlos de exportações, por um grupo que já estava a trabalhar vários meses antes da invasão russa da Ucrânia”.
“Se olharmos para a rapidez com que conseguimos reagir em matéria de controlo das exportações após a brutal invasão russa, isso deve-se ao facto de que já estávamos à mesa a trabalhar em conjunto, estávamos preparados. Também fizemos muito em matéria de controlo de investimentos, fizemos muito no que respeita às cadeias de abastecimento de semicondutores, por exemplo, criámos sistemas de alerta precoce que funcionaram, poderia dar uma lista exaustiva. Mas dito isto, há muito mais que poderíamos fazer.”
Concluída a primeira fase do TTC em abril deste ano, quando fontes oficiais assumiram que precisa de ser repensado, Fernandez adianta que conversou com os homólogos europeus há duas semanas para debater “como passar ao nível seguinte”, sem comentar os pedidos feitos por alguns dos envolvidos para que o TTC passe a ter um enquadramento mais formal e deixe de ser apenas ad-hoc, como já acontece com outros países. “Estamos a trabalhar em conjunto com os europeus sobre como melhorar o TTC que, se bem se lembram, começou quando, em 2021, estávamos atolados numa série de disputas comerciais, por exemplo com a Airbus.”
Foi nessa altura, adianta o responsável, que UE e EUA decidiram “que tinha chegado o momento de olhar para a frente”, após “passarmos demasiado tempo a discutir questões do passado sem nos concentrarmos nas novas tecnologias”.
“Foi isso que fizemos, por exemplo com a inteligência artificial, que será também um dos objetivos do próximo TTC”, reforça José W. Fernandez. “E estamos agora no processo, em conjunto, de descobrir o que isso significa exatamente. Os europeus acabaram de ter eleições e alguns dos atores mudaram, mas o desejo é mais forte do que nunca.”