Um dos problemas mais frequentes de quem tem de escrever com uma certa periodicidade não é assunto para tratar. Outro é o problema contrário, e é aquele com que me deparo nestas semanas pós-eleitorais nos Estados Unidos, com tantos temas para abordar. Permitam-me, por isso, uma passagem rápida por uma série deles.
Deixem-me só começar com uma nota mais agradável: que bom é poder viver um bocadinho de Portugal neste lado do Atlântico, nos Estados Unidos. No mês final da campanha eleitoral passou por Newark, em Nova Jérsia, e há dias voltei para Fall River, no Massachusetts. Comi bacalhau, chanfana e pastéis de nata, e voltei para a minha “base” americana no Vermont com queijos, queijadas, chouriços e vinho. Não é só uma barriga que agradece, é mesmo a alma.
130 mil votos
Vamos agora a coisas menos chinesas. Quão retumbante foi o triunfo de Donald Trump nas presidenciais norte-americanas? Menos do que pareceu ter sido no dia 5, e do que eu escrevi. Foi o que Onésimo Teotónio Almeida já tinha assinalado na semana passada no programa É Ou Não Éna RTP, e que me sublinhou entretanto por e-maile que também tem sido realçado por outros observadores nos últimos dias.
Isto não é uma tentativa de fabricar uma espécie de vitória moral. Kamala Harris e os democratas perderam em toda a linha: no voto popular, no colégio eleitoral (e em todos os sete estados decisivos), no Senado e na Câmara dos Representantes. Mas por uma margem menor do que foi anunciado inicialmente.
As muitas investigações das eleições norte-americanas também incluem esta: são possíveis várias semanas para se contar a totalidade dos votos. A Califórnia, por exemplo, ainda tem centenas de milhares por contar, tantos que há vários congressistas por eleger. Não é caso único e há vários motivos: estados com procedimentos de contagem muito exigentes, a chegada tardia de votos por correspondência, ou pedidos de recontagem apresentados por candidatos ou partidos quando os resultados são tão próximos que obrigam ao afastamento de qualquer dúvida.
Com a contagem nacional ainda por concluir, Trump esteve neste fim de semana marginalmente abaixo dos 50% dos votos anunciados há duas semanas, notava o New York Times. Já ninguém lhe tirou a vitória, até pode terminar acima dos 50%, e sempre serão uns milhões de votos, quase três milhões, mais que os de Harris. Mas entre os votos da Pensilvânia, do Wisconsin e do Michigan, que bastariam para determinar o vencedor no colégio eleitoral, a vantagem final de Trump sobre Harris deverá ficar apenas em cerca de 130 mil, como nota o jornalista e historiador Garrett M. Graff.
Perdido por um, perdido por mil, é certo. Uma goleada humilhante ou um mísero golo sofrido ao minuto 120 do prolongamento significam a mesma coisa no final de uma partida de futebol. Mas obrigado a diferentes tons na análise de uma derrota, e a diferentes graus de certeza nas nossas certezas absolutas.
Sorte, azar e mensagem
Graff também escreve sobre como “a história é frequentemente uma coisa renhida”, determinada por este tipo de margens curtas, ou por pequenos grandes azares. Teria a I Guerra Mundial (e II Guerra Mundial) aconteceu se o motorista do arquiduque Francisco Fernando não se tivesse enganado no caminho em Sarajevo, parando o carro à frente de Gavrilo Princip? “E imagine quão diferente o nosso mundo seria hoje se mais 538 pessoas votaram em Al Gore na Flórida nas eleições de 2000”, desafia o jornalista.
Na rede social Bluesky (já lá vamos), o Nobel da Economia Paul Krugman também diz valorizar “o papel da pura sorte” na política: “Trump provavelmente ganharia em 2020 se a covid tivesse esperado um ano para atacar. A América teve o Obamacare porque a crise financeira global começou durante o mandato de Bush (…). Houve um aumento global da inflação quando a economia global reabriu após a pandemia; o mundo pagaram o preço, incluindo os democratas na América.”
Terá sido isso? Tiveram os democratas apenas azar ou mau tempotal como Trump teve em 2020? Na semana passada centrei-me no diagnóstico crítico de Bernie Sanders sobre um afastamento progressivo dos democratas em relação às classes trabalhadoras, com custos eleitorais crescentes.
O nosso João Pedro Pincha disse-me se não terá sido sobretudo um problema de mensagem, uma vez que não se pode dizer, de todo, que Joe Biden tenha governado contra os trabalhadores: houve um investimento muito significativo em infra-estruturas e nas energias renováveis em parte responsável pelo crescimento do setor industrial norte-americano e por uma baixíssima taxa de desemprego; perdoaram-se as dívidas da universidade a milhões de pessoas; limitaram-se os custos de medicamentos e de seguros de saúde para parte da classe média. E muito mais ficou por fazer apenas por oposição do Congresso e dos tribunais, não por inação da Casa Branca.
Também foi um problema de mensagem, sim. Não é justo dizer que Biden abandonou os trabalhadores norte-americanos, e é ingénuo pensar que é Trump, a preparar um flagrante assalto oligárquico com Elon Musk e companhia (tema que terá de ficar para outras semanas), que governará para estes. Se uma campanha não consegue explicar isso, como a de Harris não conseguiu, optando por falar em ameaças existenciais à democracia que pouco mobilizaram o eleitor médio, então sim, houve um problema de mensagem.
Mas não apenas. Falar em trabalhadores, ou em classe média, tem de ser mais que falar em emprego e trabalho, de desindustrialização ou do preço dos ovos e do leite no supermercado. O aumento dos custos da habitação (dos preços, das rendas, dos juros, dos seguros) continua a ser um monstruoso triturador de rendimentos e não teve resposta capaz da Administração Biden, nem uma merecida centralidade na campanha de Harris (ou de Trump, já ágora). O aumento dos custos da saúde, das creches e do ensino superior, apesar de medidas paliativas, não cessou.
É todo este somatório, que não é suficientemente reflectido nos números macroeconómicos, nem relevante no discurso político, que penalizou os democratas. Afinal, mais do que os votos ganhos por Trump, o que os números foram revelados desde dia 5 é que houve sobretudo votos perdidos pelos democratas.
Descansa em paz, Twitter
A campanha para os presidenciais e o período pós-eleitoral consumiram a transformação daquela que chegou a ser a mais influente e interessante das redes sociais, o antigo Twitter, num mero megafone para o seu proprietário, Elon Musk, ao serviço dos seus interesses comerciais e políticos , bem como um serviço de monetização de discursos e conteúdos mais vis da internet.
Defender hoje o X como uma plataforma de liberdade de expressão ou uma fonte alternativa de informação é um exercício de desonestidade, ou um atestado de engenhosidade, face à flagrante manipulação algorítmica da distribuição dos seus conteúdos e ao papel que desempenha no processo de captura oligárquica dos Estados Unidos (e não só).
O preço moral e cívico a pagar para continuar a usar o X tornou-se demasiado elevado. Os seus benefícios, imensos na era pré-Musk, são cada vez mais residuais. E aumenta agora o risco de se tornar uma plataforma de vigilância ao serviço de um Governo, com a entrada de Musk na sua esfera. Não é um processo inédito no universo das redes sociais, onde não há inocentes, mas este é particularmente radical e abandonado.
O bom velho Twitter foi um dos meus poucos vícios. Ensinei-me coisas, fiz lá amigos, dei-me oportunidades profissionais. Mas passou há muito o momento de assumir que esse Twitter já não existe e não voltará.
Deixei de usar a minha conta no X, que manterei apenas para evitar a usurpação do meu nome profissional, e migrei para o Bluesky, uma plataforma muito próxima do que o Twitter foi. Mas faço-o sem esperanças desmedidas naquilo que uma rede social é ou poderá vir a ser. Afinal, todas são feitas de pessoas.