O jornal Guardião do Reino Unido oferece terapia aos seus jornalistas envolvidos nas eleições americanas depois da vitória “devastadora” de Donald Trump. Trata-se, ironicamente, de uma opção que as televisões portuguesas deveriam fornecer uma boa parte dos repórteres e comentaristas que têm feito uma cobertura emocional e militante da eleição, sem distanciamento e capacidade de análise fria das causas do fenômeno e dos seus impactos.
Anjos e demônios na desagregação da velha ordem internacional. Sentenciou o Tempos Financeiros que “a liderança dos Estados Unidos pós-II Guerra Mundial foi desestruturada com a vitória de Trump”, tendo Michael Strain escrito que se encontra em causa a ordem internacional que trouxe ao mundo “paz e borboletas”.
Sucede que essa “ordem” está em estado de coma e pesando responsabilidades na sua desagregação, as que cabem a Trump são bem menores, se comparados com os seus antecessores e sucessores: para além da destruição do Estado Islâmico, Trump não desencadeou guerras de agressão ; os Estados da NATO foram obrigados a gastar mais com a defesa; A Ucrânia ficou mais bem armada do que no período anterior. Sopesando factos, o legado internacional de Obama para Trump foi pesadíssimo. Na sequência do colapso das primaveras árabes instigados pelos EUA, França e Reino Unido, assistiu-se ao arrastamento da ocupação do Afeganistão, à guerra civil da Síria, ao colapso do exército do Iraque, à criação do Daesh com a expansão do terrorismo islâmico para ocidente, à guerra civil na Líbia, às migrações afro-asiáticas em massa para a Europa, e, finalmente, à anexação russa da Crimeia.
Mas a herança de Biden para o segundo Governo Trump consegue ainda ser pior. Os EUA e a NATO saíram em desgraça do Afeganistão, com um cenário idêntico ao da evacuação de Saigão em 1975. A Ucrânia foi invadida pela Rússia em 2022 e, no contexto da guerra russo-ucraniana, Moscovo e Pequim costuraram uma aliança tácita e, sob a sua liderança, os BRICS alargaram-se como bloco económico. Biden também lega a guerra em curso no Médio Oriente, sem que os Estados Unidos tenham logrado conter o aliado israelense e, em África, o Ocidente perde influência com os regimes francófonos do Mali, Alto Volta, Níger e República Centro-Africana caindo em domínio sob influência russa.
Os abalos sísmicos da eleição de Trump na Europa. A União Europeia será um bloco regional mais específico pela eleição, num momento crítico de crise de liderança, em que o motor franco-alemão está gripado.
De um lado, está a França, com um Governo minoritário e sujeito a uma duração voluntária de um ano (até novas eleições) e com o primeiro-ministro Barnier marcado por uma taxa de eliminação de 62%, luta com medidas impopulares contra um déficit de 6,1%. Quanto ao Presidente Macron, que quer liderar a Europa tornando-a não herbívora mas onívora, fá-lo no seu pior momento, com uma taxa de coleta de 75%, depois de duas derrotas eleitorais. Por outro lado, vacila uma Alemanha em recessão, cuja indústria automóvel está em crise, com despedimentos massivos e com um governo demissionário. Se é certo que os democratas-cristãos serão os vencedores da próxima eleição, é duvidoso que formem um governo maioritário: a ultradireita da AfD está em segundo lugar nas sondagens, não é certo que os liberais ultrapassem a “cláusula barreira” da representação parlamentar e o SPD, se entrar no Governo como parceiro menor, arrisca-se a uma irrelevância idêntica ao PS francês.
O aumento em 10% das tarifas que Trump ameaçou colocar em produtos europeus agravaria de sobremaneira as indústrias alemãs e francesas já em dificuldades. Uma guerra econômica com os EUA numa Europa já sobrecarregada de impostos deitaria por terra as ambiciosas metas de investimento público propostas pela Comissão e alimentadas pelo Relatório Draghi. Para isso seria necessário que a Alemanha pudesse aumentar o déficit público, ou que a Constituição não consentisse.
Trump será, por outro lado, tentado dividir as lideranças europeias, desvalorizando Macron, Von der Leyen e Sanchéz, privilegiando alemães ciosos da sua indústria automobilística, namorando os Estados frugais, mimando aliados como Orbán e Meloni e estimulando outros partidos da direita soberanista galvanizados pela sua eleição. Comprimido entre o “aliado” Trump e o inimigo russo, elegendo a China como seu adversário comercial, com uma perda crescente de influência em África, irrelevante na guerra do Médio Oriente, sem hipóteses de celebrar um acordo económico com o Mercosul por causa da oposição dos Agricultores, a União Europeia experimenta dificuldades geopolíticas e geoeconómicas que a eleição de Trump irá explorar.
Ó“enigma”da Ucrânia. Trump pretende forçar a Ucrânia a ceder algum território, sem que tenha, todavia, margem dentro do estabelecimento militares, diplomáticos e do Partido Republicano para cessar todo o apoio a esse país. O Presidente eleito quer um cessar-fogo acompanhado de garantias, mas as condições dos dois lados parecem inconciliáveis. Zelensky pretende a retirada das tropas russas de 20% do seu território e a adesão à NATO. Tirando, quiçá um acordo híbrido sobre a Crimeia, qualquer outra solução que envolva a cedência do Donbass implicaria a sua queda política e uma rotura política no poder em Kiev. Os ucranianos interrogam-se-iam sobre muitas as razões do seu sacrifício de sangue para se chegar a uma quase capitulação que premiaria o invasor. Putin, que está em clara vantagem no terreno, jamais aceitará menos do que a conservação do Donbass e da Crimeia, o termo das avaliações americanas contra a Rússia e a preclusão de entrada da Ucrânia na NATO.
Tal como anunciou Orbán, o tempo corre contra Kiev. Se como todo o apoio recebido, a Ucrânia falhou a operação de Verão no sul, tem um adicional de 160 milhas do seu território ocupado durante o último ano por ataques russos em progresso em toda a linha da frente e vê o seu avanço em Kursk travado , como poderá almejar uma vitória, se os EUA, enviar, reduzir ou retardar apoios futuros?
Se bem que o Reino Unido e a União Europeia tencionem manter o apoio económico e militar (o que monta até ao presente em 11,1 mil milhões de euros) e Biden garanta uma injeção de 20 mil milhões de dólares, esse apoio só por si será insuficiente para Kiev manterá as linhas de defesa até o final de 2025.
Os próximos meses serão mais difíceis graças à destruição das infraestruturas de energia em pleno inverno, ao aumento das deserções e aos novos ganhos militares da Rússia no Donbass. Com a União Europeia marcada por um défice de liderança até às eleições alemãs, o poder ucraniano será confrontado com escolhas trágicas: i) um cessar-fogo a curto-prazo que, mesmo sem renúncias territoriais, mantenha o “status quo”da ocupação russa, com uma moratória sobre a adesão à OTAN e uma promessa de entrada na União Europeia; ii) ou um cessar-fogo a médio prazo, já num quadro de derrota potencial e com ocupações territoriais mais profundas.
Entre um cenário mau e outro péssimo, é difícil antes, depois da vitória de Trump, um sucesso eficaz da NATO e da União Europeia nesta guerra por procuração, a qual o Presidente eleito continua a jurar que jamais teria ocorrido na sua presidência. Ver-se-á qual o seu talento negocial para que se alcance a menos das soluções possíveis, num universo em que as relações de força entre blocos mudaram durante a Presidência de Biden em desfavor do Ocidente.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico