Disseram basta às horas extraordinárias e com isso paralisaram o INEM durante nove dias. A morte de sete pessoas por falta de atendimento levou os técnicos de emergência pré-hospitalar ao início a um processo negocial com o Governo, mas as reivindicações existem desde que a profissão foi criada
“Trabalhos à chuva e ao vento, 365 dias por ano. Trabalhamos com a vida e a morte dos cidadãos. O nosso trabalho é exigente, requer um esforço físico considerável, muito stress, e não somos sequer considerados profissão de risco e desgaste rápido”. Rui Lázaro, presidente do Sindicato dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (STEPH), é a voz do lamento dos profissionais que em nove dias de greve paralisaram o INEM, um lamento que chegou rápido e que mais rapidamente se alastrou por quem decidiu seguir esta profissão. E é o novo rosto de mais uma classe profissional de saúde a dar um “grito de revolta” por melhores condições.
Os baixos salários, a pressa em colocar no ativo quem ainda não completou a formação e o bloqueio à revisão desta carreira – exclusiva do INEM – são as principais queixas destes profissionais, mas foi a necessidade de colocar um travão às horas extraordinárias que paralisou o INEM e deixou a nu as dificuldades existentes neste instituto, além da “precariedade” pela qual passam estes profissionais. E o presidente da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar (ANTEPH) é uma prova disso mesmo. “Eu faço parte do universo de pessoas que saiu do INEM, tornou-se uma profissão desgastante e mal paga. Agora estou no privado e nos bombeiros”, conta à CNN Portugal Luis Canaria.
Neste momento, “muitos dos técnicos de emergência pré hospitalar são formados noutras áreas”, como é o caso do próprio Luís, licenciado em Organização e Sistemas de Informação, trabalhando como especialista em Informática. Mas decidem abraçar esta carreira “por gosto” e por acreditar na sua importância. É caso para dizer: até quem corre por gosto se cansa.
“Em início de carreira ganhamos 920 euros, demoramos cerca de 12 anos para progredir de carreira e termos um aumento de 50 euros, o que é muito desadequado. Somos responsáveis pela emergência médica e todo o stress que isso traz. Mas nem temos subsídios de apoio ou risco”, vinca Rui Lázaro.
A carreira de técnico de emergência pré-hospitalar foi criada em 2016 e é exclusiva do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM), mas em apenas oito anos viu “mais de 40%” dos profissionais a desistir. Dos “1.480” técnicos necessários no INEM, estão no ativo “pouco mais de 700”, diz-nos Rui Lázaro. Estes profissionais ora desempenham funções como atender chamadas de emergência e enviar meios de socorro nos Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU), como conduzem e prestam cuidados de emergência pré-hospitalar nas Ambulâncias de Emergência Médica (AEM) ou de Suporte Imediato de Vida (SIV), Motociclos de Emergência Médica (MEM) e Unidades Móveis de Intervenção Psicológica de Emergência (UMIPE).
A morte de sete pessoas por atraso no atendimento do INEM deixou a nu uma realidade sobre a qual estes profissionais de saúde há muito se queixam: “O INEM está preso por arames há anos”. E por arames, leia-se, horas extraordinárias, adianta Luís Canaria, na presidência da ANTEPH desde 2021, ano em que deixou o CODU. “Fiz CODU de 2018 a 2021 e tivemos situações em Lisboa de zero pessoas a atender à tarde”, relata, alertando que os problemas tanto no INEM como na classe “não são de agora, foram mediáticos agora porque afetaram serviços vitais”.
A situação de caos que a greve às horas extraordinárias causou foi amplamente criticada pelos partidos políticos de oposição e levou o primeiro-ministro Luís Montenegro e o Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa a pedir medidas imediatas. A primeira foi a chamada do sindicato ao Ministério da Saúde pela primeira vez desde a sua fundação. E de lá saiu uma promessa negocial com a primeira reunião marcada já para dia 21 de novembro e a desconvocação imediata da greve. A Inspeção-Geral de Atividades em Saúde já abriu um processo de inquérito às várias mortes por atrasos no atendimento de chamadas por parte do INEM.
Uma carreira que nasceu torta
Em abril de 2016 foi publicado o Decreto-Lei n. 19/2016 que procedeu à revisão da carreira de técnico de ambulância de emergência do INEM e criou e definiu o regime carreira especial de técnico de emergência pré-hospitalar. Nascia assim uma nova carreira profissional médica, mas que iria – e continua – a ser exclusiva do INEM, o que a Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar critica.
“A ANTEPH com o anterior sindicato [o STAE – Sindicato dos Técnicos de Ambulância de Emergência, que passou a STEPH depois da criação da carreira] desenvolveu um trabalho para criação da profissão, mas o anterior presidente deste sindicato rasgou o acordo e diz que fica apenas uma carreira especial só para o INEM”, conta Luís Canaria, defendendo que esta exclusividade é um “desperdício”, uma vez que a formação que estes técnicos recebem para trabalhar no INEM pode ser uma mais-valia noutros setores, como bombeiros, para onde muitos acabam por ir em regime de part–time depois de abandonarem a carreira. E uma vez fora do INEM, deixam de ser técnicos de emergência pré-hospitalar, o que nos leva a questionar: então que cargo assumem quando saem? “De bombeiro”, exemplifica Canaria, atirando que “o INEM é um gastador de dinheiro por formar estes profissionais e não conseguir retê-los” ou permitir que sejam válidos noutros locais.
“Se a pessoa sair do INEM até para ir para os bombeiros não pode aplicar as coisas que aprendeu no INEM e não pode ser técnico de emergência pré-hospitalar num corpo de bombeiros porque a carreira é exclusiva da função pública”, explica Luís Canaria.
O facto desta carreira ser exclusiva do INEM é para os profissionais do setor um dos grandes calcanhares de Aquiles, uma fraqueza até para o próprio INEM, diz o presidente da ANTEPH, que desde 2021 defende que a carreira saia da alçada do INEM e abranja os cerca de 30 mil elementos dos bombeiros e Cruz Vermelha – que são responsáveis por 90% do socorro prestado em Portugal – e passe a ser lecionada “em universidades, escolas” para que possa ser mais abrangente. “Há funções específicas do INEM, ainda assim. OINEM não forma médicos, farmacêuticos, psicólogos, se não os forma e os tem nos seu cargos, porque carga de água tem que tem de formar os técnicos de emergência pré-hospitalar?”, questiona.
A carreira de técnico de emergência pré-hospitalar está dividida em três categorias: começa como técnico de emergência pré-hospitalar, passa para coordenador operacional e pode chegar a coordenador-geral. Mas esta progressão é lenta, pode levar mais de dez anos, e financeiramente pouco cativante: são apenas mais 50 euros mensais. E este é mais um dos aspetos que fazem desta profissão torta desde nascença, o que para o sindicato pode ser resolvido com o alargamento da carreira para cinco categorias e com mais facilidade de progressão.
Apesar de “haver mercado” para esta carreira, Canaria atira que não é de todo apelativa pelo salário que oferece e pela dificuldade de progressão, em particular, salarial. Mas os profissionais do setor apressam-se a ecoar uma coisa que o próprio INEM diz e que, pela sua importância, tem de ser paga: “São peças-chave na rede de emergência médica nacional e podem fazer a diferença na sobrevivência de vítimas de doenças súbitas ou traumas”.
Os técnicos estão cansados de tudo: salário, carga de trabalho, falta de reconhecimento e do próprio INEM
A greve destes profissionais de saúde começou a 30 de outubro, mas o alerta para uma possível paralisação já tinha sido dado em pleno verão: o estado do INEM e a gestão do seu orçamento foram, na altura, alvo de duras críticas por parte deste sindicato (o único da classe), que já ponderava com uma greve por falta de recursos humanos, pelos atrasos no envio de ambulâncias e pelas “dezenas” de chamadas em espera naquela que é já por si uma das alturas mais críticas para o Serviço Nacional de Saúde.
“Tem falhado sobretudo a falta de valorização deste profissional e a ausência de estratégia para o INEM. O que houve nos últimos oitos anos da presidência do conselho diretivo do INEM foi inércia e empurrar problemas com a barriga”, atira o dirigente sindical Rui Lázaro, apressando-se a dizer que os problemas “não são de agora”. As críticas a Luís Meira são também tecidas por Luís Canária, que o acusa de “mentir a todos ao dizer que ninguém iria trabalhar sem ter as competências todas”, mas que a verdade é que, mesmo a formação sendo de seis meses, “assumiu que ao fim de dois podem trabalhar”.
“As pessoas vão ficando cansadas”, lamenta Luís Canaria, que, por mais do que uma vez vincou que o trabalho no CODU ou nos veículos de emergência “é extenuante”. “As pessoas gostam daquilo que fazem, mas não conseguem é tolerar tanta precariedade, o INEM não retém talentos, deixa-os sair, nem os médicos consegue reter”, atira.
Os técnicos de emergência pré-hospitalar são 80% dos quadros de pessoal do INEM e ainda assim “pouco valorizados”. Para além dos salários baixos, “pouco mais do que o salário mínimo”, atira o presidente do sindicato, a carga de trabalho é tal que o serviço quase sempre está refém de horas extraordinárias, fator que, para a Ministra da Saúde é o mote do caos que se vive no INEM, mas que Rui Lázaro diz que se não fossem as horas extraordinárias que fazem diariamente muitos mais condicionamentos iriam existir. “Não temos ainda contabilização” do total de horas extra feitas, mas que “a maior parte dos técnicos, este ano, já realizou mensalmente o limite do trabalho, que é 60% da remuneração”, diz.
Sobre a desvalorização da carreira, Luís Canaria aponta o dedo à incapacidade do INEM em reter estes profissionais que existem exclusivamente para o próprio INEM e de tapar buracos com mão de obra ainda mais precária do que aquela que já está no ativo, revelando que não é incomum as chamadas do CODU serem atendidas por profissionais que “têm apenas dois meses de curso” e ainda não concluíram a formação.
“Nos últimos anos, quando o INEM tem falta de profissionais porque estão a fazer greve, como os que andam nas ambulâncias, sobrecarregava-se os corpos de bombeiros e a coisa ficava diluída. E também não havia a paralisação do CODU porque havia precariedade, porque as chamadas eram atendidas pelos que tinham dois meses de formação e esses não fazem greve, os CODU nunca paravam”, critica o presidente da Associação Nacional dos Técnicos de Emergência Pré-Hospitalar.
A Liga dos Bombeiros Portugueses avisou na terça-feira que “o colapso” do sistema de triagem de doentes gerido pelo Instituto Nacional de Emergência Médica está a criar uma “pressão extraordinária” nas corporações de bombeiros.
O envelhecimento da classe não é, para já, um problema, embora Rui Lázaro diga que é algo que já se começa a notar. “Tendo em conta que a profissão é recente e que os primeiros técnicos eram muitos novos, a idade não era um problema que se levantava, mas começa-se agora a notar”, sobretudo devido à intensidade física e emocional do trabalho. “Vai ser um problema quando chegarmos aos 50 anos, não vamos estar em condições”, adianta. Além disso, acrescenta Luís Canária, se nada for feito para melhorar a carreira e as condições, é bem possível que a a incapacidade de contratação torne rapidamente esta classe numa classe envelhecida. “As pessoas já sabem para o que vão, são contratadas para vir para o INEM e até há um meio [central] na sua terra, mas ficam deslocadas, vão para Lisboa, não conseguem pagar casas com o que ganham. Tentam que a coisa seja atrativa a estar numa ambulância ou mota, mas como só têm formação em CODU, ficam meses e meses até acabar a formação, acabando por sair”, lamenta Canaria.