No espírito de lhe poupar 40 euros (150 se quiser uma cópia autografada), revelamos-lhe o bom, o mau e o feio do novo livro da antiga (e possivelmente futura) primeira-dama dos EUA. É difícil terminar a leitura sem pensar que a cebola Raka do avô Ulčnik de Melania conterá mais camadas do que aquelas que se tentam descascar sem sucesso ao longo destas tão curtas mas intermináveis 182 páginas
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O livro arranca com uma espécie de carta ao leitor na qual Melania sublinha que, “enquanto pessoa privada que tem sido frequentemente objeto de escrutínio público e de deturpações”, sente “a responsabilidade de esclarecer as coisas”. Mas qualquer pessoa que venha com sede de esclarecimentos não vai ficar saciada com estas páginas.
Em vez de contar tudo, Melania conta apenas algumas coisas, numa espécie de inventário meticulosamente preparado e organizado sem direito a comentários esclarecedores. Para a Economist, estamos diante de uma “impressionante proeza feita de nada”. Nas palavras do New York Times, o trabalho que a mulher de Trump diz ser “profundamente pessoal” corresponde simplesmente a “um abjeto nada”. A dada altura, Melania diz sobre uma experiência menos positiva enquanto modelo, antes de ter conhecido Trump: “A desonestidade não tem espaço na minha vida, nem nunca terá.” Mas toda a desonestidade do futuro marido não merece uma linha de condenação – sem surpresas, dirão alguns.
Num “branqueamento descarado” da primeira administração Trump, assim definido pelo NYT, Melania é um livro com algumas (poucas) coisas a seu favor. É de leitura curta – 182 páginas com grande espaçamento entre linhas, largas margens, cópias integrais de discursos do casal Trump e direito a um enorme acervo de fotografias pessoais – e tem uma capa elegante, que fica bem em qualquer prateleira. A capa, poderão dizer os que admiram a beleza da terceira mulher de Donald Trump, condiz com a sua figura. E o que consta no seu interior, dizemos nós, parece condizer com o conteúdo (ausência dele?) da eslovena tornada americana e que chegou a primeira-dama dos Estados Unidos.
Na página 10, Melania conta sumariamente em dois parágrafos como o avô, Anton Ulčnik, “um habilidoso sapateiro e um inovador agricultor”, criou uma “obra-prima da culinária” em Raka, a pequena aldeia eslovena para onde regressou após a II Guerra Mundial e onde investiu na sua “paixão pela agricultura”, cultivando um “famoso” tipo de cebolas que “rapidamente se tornou uma das favoritas entre o povo esloveno”. É difícil chegar ao fim deste livro sem pensar que a cebola Raka do avô Ulčnik terá mais camadas do que aquelas que se tentam descascar sem sucesso ao longo destas intermináveis 182 páginas.
Cheio de contradições por resolver, é logo na página 24 que, sem saber, a autora nos oferece uma boa descrição da leitura da sua autobiografia: “uma experiência banal”. Ou assim seria, não se tratasse ela da mulher de um dos mais contestados presidentes da história moderna dos Estados Unidos – um Donald bem diferente daquele que é pintado em Melania. Quando conheceu o empresário com quem viria a casar – “ele era um pouco mais velho do que eu” (ela tinha 28 anos, ele 52) – a modelo percebeu “rapidamente que o público só via uma ínfima parte do Donald, [que] em privado se revelou um cavalheiro, demonstrando ternura e atenção”.
Embora refira pelo menos quatro vezes ao longo do livro que nem sempre partilha dos pontos de vista do marido, é difícil não ler nestas páginas uma carta de boas intenções do novamente aspirante a Presidente dos EUA, um testamento sobre tudo o que fez de bem e tudo o que queria ter feito e não pôde – acima de tudo, por culpa do “escrutínio, logro e maus-tratos dos meios de comunicação social”.
Foi por culpa dos jornalistas, esse grupo monolítico e homogéneo unicamente motivado por um desejo de causar danos à sua família, que ninguém percebeu porque é que Melania escolheu usar um casaco com a frase “I Really Don’t Care, Do U?” após uma visita a um centro de detenção de crianças migrantes separadas das suas famílias na fronteira com o México (era uma mensagem para os media, não para as crianças que a administração Trump decidiu retirar às famílias, assegura).
Foi culpa dos jornalistas ter sabido pelos jornais que o governo do marido estava a forçar essa separação de famílias, apesar de ter sido o próprio governo a anunciar essa política de “tolerância zero” em abril de 2018 (“Fui apanhada de surpresa pelas notícias publicadas nos meios de comunicação social sobre as políticas de imigração da administração […] Fui inundada por um sentimento de frustração face à propagação incessante de falsidades e negativismo por parte dos meios de comunicação social […] Mas estava determinada em não deixar que as falsas narrativas dos media afetassem a minha missão de ajudar as crianças e as famílias na fronteira.”)
Novamente culpa dos jornalistas que o safanão que deu na mão do marido durante uma visita do casal a Israel tenha sido interpretado como sinal de problemas maritais. (“A obsessão dos media com a sensacionalização de gestos triviais ficou evidente quando distorceram um momento simples entre mim e o meu marido. […] Foi um pequeno gesto inocente, nada mais.”)
“Estamos a viver tempos perigosos no que toca ao jornalismo”, diz a dado momento, ao bom estilo da cartilha populista de Trump. “Hoje em dia, a maioria dos jornalistas acredita que o seu objetivo principal é criar uma narrativa em vez de noticiar os factos. O resultado é que a integridade jornalística colapsou.”
Após ter sido acusada de plagiar o discurso que proferiu na Convenção Nacional Republicana de 2016, uma falha detetada por esses famigerados media e ao qual dedica um capítulo inteiro, fica bem claro que Melania não gosta de delegar tarefas – e não havendo qualquer menção a coautores deste livro, poder-se-á assumir que terá sido a antiga primeira-dama a escrevê-lo (da mesma forma que é seguro assumir que Donald não leu o livro, apesar de o ter aprovado, porque como disse no passado dia 19 de setembro num comício de campanha: está “demasiado ocupado”.)
No arranque do livro, somos apresentados a uma Melania quando ainda era apenas Knauss, aquando da sua aterragem em Nova Iorque para um novo capítulo na carreira de modelo depois de se ter lançado na Europa. Cerca de 60 páginas depois, Trump anuncia a sua primeira candidatura à presidência: “Finalmente, um político que não lhes mentia, que lhes dizia a verdade, por mais difícil que fosse aceitá-la. […] Ele não dizia às pessoas apenas aquilo que elas queriam ouvir. Ele dizia às pessoas o que elas precisavam de ouvir.”
Entre uma coisa e outra, e depois disso, apenas um rol de chavões, lugares-comuns e momentos “despreocupados”. Ficamos a saber que Melania não gosta de sushi; que o seu chapéu quase foi levado pelo vento quando foi recebida pela Rainha Isabel II em Londres; que o seu marido atribuiu uma medalha de honra ao cão Conan pelo papel que desempenhou na captura de Abu Bakr al-Baghdadi, então líder do autoproclamado Estado Islâmico; que num encontro “emocionante” não percebeu quando o Papa lhe perguntou sobre o que dá de comer ao marido (Francisco perguntou se é potica, uma sobremesa típica eslovena – Melania ouviu pizza).
Chega a parecer que se posiciona a favor do aborto – postura contrária ao baluarte da campanha republicana, que quer impor ainda mais restrições às interrupções voluntárias da gravidez – quando escreve que a mulher deve ter o direito a decidir sobre o seu próprio corpo, para logo a seguir sublinhar que esse direito também consiste em decidir levar uma gravidez a termo. Chega a parecer que apoia as comunidade LGBT, para logo a seguir dizer que as diferenças entre as mulheres biológicas e as mulheres trans têm de ser acauteladas no desporto.
Pelo contrário, nem sequer chega a parecer que aceita a eleição do democrata Joe Biden nas últimas presidenciais – aí, não deixa margem para dúvidas quanto à retórica do marido, que mantém até hoje que as presidenciais lhe foram roubadas. “Não se pode continuar a contar votos durante vários dias, algo que eles fizeram. Foi uma confusão. Muitos americanos ainda têm dúvidas sobre estas eleições até hoje. Eu não sou a única pessoa a questionar os resultados.” (Para esclarecer: os votos por correspondência, a que cada vez mais eleitores norte-americanos recorrem e a que um número sem precedentes recorreu em pleno ano da pandemia Covid-19, demoram sempre mais tempo a contabilizar – é um mero facto do processo eleitoral num país com mais de 400 milhões de votantes.)
Numa leitura tão insípida, já na reta final do livro, avançamos na leitura com alguma esperança e energia quando Melania relata o episódio em que o FBI leva toda a família Trump para o bunker da Casa Branca. Finalmente, um momento de ação, pensamos, aquele que teve lugar na última semana de maio de 2020, quando ativistas do movimento Black Lives Matter tentaram invadir o edifício presidencial em protesto contra mais um episódio de brutalidade da polícia que culminou na morte de um afroamericano em Minneapolis – que, ao contrário do cão-herói do episódio Al-Baghdadi, Melania não nomeia (chamava-se George Floyd).
A antiga primeira-dama dedica seis páginas a este evento, um que não degenerou em violência e que merece de Melania a seguinte consideração: “Este nível de agressividade e insistência em aceder ao gabinete do Presidente era altamente invulgar e alarmante. O ar crepitava de tensão; uma visão rara e inquietante estava a desenrolar-se diante dos nossos olhos.”
Não sem algum espanto avançamos algumas páginas para perceber que a invasão do Capitólio por apoiantes do marido, que culminou na destruição parcial do Congresso e na morte de quatro civis e de cinco agentes da polícia, num episódio sem precedentes na história da América que já conduziu a acusações formais contra Donald Trump, merece uma única página – com Melania, que se encontrava então ocupada a registar todo o seu trabalho de redecoração da Casa Branca, a culpar os próprios assessores por “não saber” do que se estava a passar.
“Se eu tivesse sido informada de todos os detalhes, naturalmente teria imediatamente denunciado a violência que ocorreu no edifício do Capitólio. […] Embora reconheça que muitos indivíduos sentiram que a eleição foi mal gerida e que o vice-presidente deveria ter suspendido o processo de confirmação [de Biden], não devemos nunca recorrer à violência.” Fim de capítulo.