A propósito do Dia Europeu Contra a Exploração Sexual e os Abusos Sexuais, que esta segunda-feira se assinala, a Unicef sugere um verdadeiro sistema de avaliação prévia de idoneidade para quem trabalha com crianças, “a começar pela verificação do registo criminal”.
Desde 2009, o quadro legal português estipula que, “no recrutamento para profissões, empregos, funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolve contacto regular com menores, a entidade recrutadora está obrigada a pedir ao candidato a apresentação de certificado de registo criminal e ponderar a informação constante do certificado na aferição da idoneidade do candidato para o exercício das funções”. Em 2015, essa orientação foi reforçada, passando a ser obrigatória a todos os anos solicitar o documento.
“A idoneidade é mais do que o registo criminal, mas isso continua a ser importante porque o pedido de registo criminal nem sempre se verifica”, diz Beatriz Imperatori, diretora executiva da Unicef-Portugal. “Sendo obrigatório por lei, o pedido de registo criminal deve ser uma prática transversal, mas não é.”
A seu entender, falta “uma peça fundamental: um mecanismo de verificação” independente. “Devia haver uma entidade que regularmente se dirige às instituições que trabalham com crianças a pedir para verificar o perfil dos profissionais que ali trabalham.”
Quando se pergunta em que assenta este alerta para a falta de cumprimento da legislação em vigor, responde Imperatori: “Nos relatos que ouvimos no terreno. Há associações, colectivos, clubes desportivos, enfim, uma variedade de instituições que na realidade não tem esta prática.”
Então no ano passado, por exemplo, o Patriarcado de Lisboa passou a exigência de registo criminal a quem dá catequese.
Este pedido será tanto mais relevante quando os tribunais tenderem a não aplicar a pena acessória de destituição de exercício de actividade que implique contacto com menores de 18 anos. Entre 2018 e 2022, só o fez 13% dos condenados por abuso sexual de criança.
“Quando avaliamos a idoneidade temos de ir para além do registro criminal”, torna Imperatori. “Para trabalhar com crianças, o percurso profissional tem de ser isento de falha.” A natureza do trabalho é importante. “Uma pessoa que vigia o comportamento das crianças no parque infantil é diferente de um treinador que passa horas com as crianças e está com elas no balneário. Isso tem de ser feito em conta quando fazemos exigências.”
Alerta também para a necessidade dos profissionais serem capacitados para refletir os sinais e interagir com as vítimas. Afinal, a maior parte destes crimes ocorre dentro de casa.
As estimativas europeias são esmagadoras. Pelas contas do Conselho da Europa, “uma em cada cinco crianças é vítima de alguma forma de violência sexual, 70% a 85% conhecem os agressores, um terço nunca fala do abuso”.
A nível nacional, a situação não é melhor. O Instituto Nacional de Estatística estima que um quinto da população maior de idade sofreu violência na infância. Mais de 176 mil (2,3%) entre os 18 e os 74 anos foram vítimas de abusos sexuais.
Chegamos cada vez mais denúncias às comissões de protecção de crianças e jovens em risco espalhado pelo território nacional: 919 comunicações em 2021, 1009 em 2022, 1262 em 2023. Confirmaram-se 152 em 2021, 140 em 2022, 180 em 2023.
“Permanece uma cultura de silêncio”, sublinha a diretora da Unicef. “A primeira reação é desvalorizar, é dizer que a criança está fantasiando. Até por ser tudo muito difícil de provar, quase sempre vinga a narrativa do agressor. É preciso saber ouvir a criança.”
A Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Protecção das Crianças também está a tentar “abanar consciências”. Agregou dados, testemunhas de vítimas, sinais de alerta e recomendações. Um livro, intitulado O abuso sexual — Proteger as crianças competem a tod@sfoi lançado na sexta-feira e deverá chegar às comissões de protecção de crianças, escolas, organizações de solidariedade social, centros de saúde, hospitais, forças de segurança.