Terça-feira, Novembro 26

Pedalar na cidade do Porto é uma aventura, um tango entre o corpo, o velocípede, as ruas e o caos, um diálogo de reflexos e olhares esguios, uma coreografia onde o asfalto é sempre mais traiçoeiro.

E se pedalar por gosto, o gosto vem a par com a necessidade, na ausência de um veículo de quatro rodas mais o motor de combustão.

Nesta posição, outra opção não tenho diariamente senão a de subir a bom subir para o selim do meu corcel numa pega de frente ao palco irregular de pedras, curvas e ladeiras do Porto.

E se já tive sustos suficientes para um manual de sobrevivência em duas rodas, ao mesmo tempo insisto, não por insensatez mas por ter uma bicicleta como a minha arma secreta contra o ruído do mundo.

Lembro-me como se fosse ontem e o frio ainda no peito ao subir a Avenida da Boavista onde os carros disparam como balas invisíveis. Ia ao meu ritmo entre o pulsar das pernas quando, de repente, uma carrinha surge de uma lateral e o condutor sem olhar a pontos de obrigar quem pedala e quem vos escreve a uma curva apertada o suficiente para travar conhecimento com a parede.

O motorista em frente como se nada fosse, protestando a sua prioridade entre buzinadelas mais um gesto feio com os dedos e eu na certeza de a carrinha ficar na mesma em caso de acidente e o motorista também.

Noutra ocasião, ao fim do dia, quando as luzes amarelas dos candeeiros são fracas e as sombras ganham vida, uma senhora, talvez apressada, talvez apenas negligente, resolveu mudar de faixa sem sinalização. Estava eu ​​a descer a Avenida dos Aliados, embalado pelo vento quando a dita manobra, obrigando-me a uma daquelas travagens capazes de um voo por cima do guiador e eu lá do cimo a poder ver a minha casa.

A respectiva senhora, na placidez de quem comanda o trânsito, nunca se apercebeu, continuando o seu caminho, independente do acidente por incidente não ter os reflexos e guinadas nos dias feitos de um acúmulo de pequenas mortes evitadas.

Como o dia não qual, ao atravessar a ponte Luís I, um motociclista resolveu ser o seu veículo o prioritário, encostando-me à berma ao ponto de me obrigar a saltar para o passeio. Ainda trocámos olhares e o motociclista sobranceiro e superior, num misto de desprezo e condescendência quando se tem a força de um motor ao seu dispor face a quem apenas tem força nas pernas apesar dos mesmos direitos e vontades e porque não coexistir.

A última vez foi perto da Foz. Um taxista, irritado talvez pelo congestionamento, resolveu superar este ciclista numa curva cega, empurrando-me para o meio da faixa conjunta com outro carro em sentido oposto e como ainda tive tempo para pensar “É agora”, tive igualmente tempo para voltar à minha faixa atrás do taxista a reclamação a razão no meio dos impropérios de quem amaldiçoa os ciclistas na estrada.

Sejamos claros: a cultura da estrada vê os ciclistas não apenas como irresponsáveis ​​por se atreverem à estrada, mas também como uma praga e se a cidade não é feita para o ciclista então a culpa é sua e tão-somente sua.

O oposto? O oposto é este desejo e vontade de viver a mesma cidade, longe do ruído constante dos motores mais o fumo negro a engolir os edifícios na pressão sem sentido de quem vive com o coração fora do corpo.

Assim, andar de bicicleta não é apenas um ato de rebeldia, mas uma afirmação política e a cada pedalada a certeza de uma pegada de carbono a menos e um pouco mais de ar para a cidade e para quem me rodeia.

Por isso a minha bicicleta é uma bandeira, a Mãe Gaia em duas rodas na luta pela justiça ambiental, um ciclista de cada vez à procura de um amanhã de muitos milhões de ciclistas na estrada, contra o distúrbio climático, a destruição dos ecossistemas, a poluição das éguas e do ar, à procura de um futuro longe de garantido e como nada está garantido continuamos a pedalar.

Ainda temos muitos quilômetros pela frente.

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