Terça-feira, Abril 1

A palavra-chave deste episódio é florilégio e Francisco Louçã vai falar sobre o armamento na Europa. Fernando Alves vai procurar similitudes entre arranjos florais e ténues propostas de arranjinhos ao centro. Rita Taborda Duarte vai procurar um florilégio de poemas de poetas contemporâneos, alguns poemas com que podemos resistir face aos dias de hoje.


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Ep. 27: Florilégio

Em baixo, pode ler três excertos do episódio desta semana.


Notas para uma antologia florida

Fernando Alves

A palavra florilégio sugere, num primeiro impulso, buquês de flores, pensamentos floríparos, ramalhetes rubros de papoilas. Assim soubéssemos ir colhê-los, com a arte de Cesário, “a um granzoal azul de grão-de-bico”. Cesário escreve “papoulas”.

Já Ricardo Reis, à la manière de Caeiro, deixa que “a mão invisível do vento” roce por cima das ervas, desvendando, nos intervalos do verde, “papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos / e outras pequenas flores azuis que se não vêem logo”.

Esta ideia de florilégio pode abraçar um ramalhete de versos com perfume de flores ou iniciar uma antologia de hastes e corolas. Pode chamar-nos para o Cancioneiro de Resende. Ou para as buganvílias que crescem no escuro, num poema de Adélia Prado.

Podemos deixar-nos ir pelo Campo de Flores de João de Deus, o poeta pedagogo, silabando pétalas a uns olhos azuis (com aqueles versos que fazem cair “a folha da rosa pudibunda”). Podemos sentir o “cheiro áspero das flores” que leva os olhos de Cecília Meireles para dentro das suas pétalas.

Possa, nestes agitados dias, florescer em nós uma ideia não meramente ornamental. Um ramalhete delas. Um florilégio é também, pode ser também, uma flórida colectânea. E se fossemos ao jardim da Celeste colher mais do que um giroflé, muito mais do que um giroflá? Não com a ideia de fazer flores, mas de floretear, de usar o florete com a minúcia de um floricultor, do mesmo modo que, numa tocante prosa de Almada Negreiros, a palavra flor anda por dentro da cabeça de uma criança, quando ela se põe a desenhá-la?

Que flores, mesmo se apenas de estilo, embelezam o noticiário de pré-campanha destes dias?

Aquele “mas” com que, na entrevista de domingo ao PÚBLICO, Negrão aprecia a insistência de Montenegro é, para o ainda presidente do PSD, mais ou menos venenoso que um lírio-do-vale? Capucho e Carreiras, apoiando o almirante, dão a cheirar a Marques Mendes um subtil, mas perigoso aroma de dedaleira?

Aquela sonsa insistência de Leitão Amaro na exigência de uma retratação de Pedro Nuno Santos terá a eficácia carnívora da erva pinheira orvalhada, também conhecida como pinheiro baboso?

O acordo de estabilidade entre PSD e PS defendido por Marques Mendes e o de entendimento explícito proposto por Ferro Rodrigues transportam o perfume pacificador da lavanda e contemplam o desígnio de serenidade da flor de lótus?

O entendimento que Rui Rocha admite com o PSD contempla rosas vermelhas, mesmo rejeitando “cheques em branco”?

Possam desse lado do jardim cuidar de seus arranjos florais resguardando-se da flor-cadáver que expande sem descanso o fétido pecíolo.

Nesta campanha, quem colherá a flor das pedras? Quem encontrará a palavra justa e certeira, a pedra que se abre em flor?

Ou, como no poema de Drummond, a flor ainda que feia, capaz, contudo, de furar o asfalto e o tédio?


Um florilégio poético, requiem para estes dias

Rita Taborda Duarte

A palavra-passe para o episódio do podcast de hoje é florilégio. Preferimos esta palavra, florilégio, a outras congéneres, que poderiam ser até mais adequadas aos tempos de vertigem, que hoje vivemos; por exemplo, miscelânea, amálgama, salada, ou salganhada, até se chegar a confusão, mistela ou mesmo mixórdia. Florilégio, no entanto, melhor serve para resistir a isso tudo; e ainda permite reunir um punhado poemas, de livros recentemente publicados. Poemas que importam para todos os dias, os de hoje, como os de amanhã, que quase lembram um ontem que nos vai roendo as canelas.

As palavras são seres mutantes que não se têm quietos. Florilégio, vindo do latim, enlaça a palavra flor na palavra legere, que significa, originalmente, colher ou juntar. É daí que, depois, deriva o verbo eleger, assim como a palavra eleição, que ao arrepio do que temos visto, em Portugal e no resto do mundo, tem a mesma raiz – imagine-se – da palavra inteligência: ou seja capacidade de interligar e relacionar o que se vai colhendo de várias partes e latitudes. Palavra irrequieta, legere passa a significar ler. E faz sentido, porque, antes de tudo, ler é recolher, para si mesmo, letras e palavras, para, a partir daí, formar bouquets de significados e sentidos. Depois, foi só pensar-se em cada texto como uma flor, para florilégio passar a significar selecta, compêndio, antologia. Não está mal pensado: afinal, a literatura, assim como a arte, a cultura, é o que nos vai colorindo a vida: importante é não a deixar murchar.

Assim para trazer um pouco mais de azul a estes estranhos tempos de um cinzento estremunhado, proponho uma mão cheia de versos de alguns livros de poesia portuguesa que acabaram de sair: Recurso e Pobreza, de Tatiana Faia; As manhãs que Não Conheces, de Luis Filipe Castro Mendes; Uma Casa faz-se por Dentro, de João Pedro Mésseder e Chuva de Jasmim, de Shahd Wadi, poeta e activista palestina exilada em Portugal.

Assim, tentarei compor o florilégio para este podcast; palavra selecta e segura. Fosse o caso de querer dar nota das notícias que nos vão chegando do mundo, a palavra moxinifada melhor serviria – que nem luva – à actualidade, e à forma tiktokeada, como se vai assistindo às novelas Trump e Putin; ou Gaza sendo pulverizada; a febre em armar o mundo de cabo a rabo. Também por cá a vida política vai passando em caleidoscópio de um mosaico grotesco; das empresas trapalhonas do Montenegro; a entrega da Madeira aos (literalmente) suspeitos do costume porque nada importa, nada conta, tudo sendo igual a tudo é igual ao litro. De pouco serve peneirar, quando a malha é larga e tanto deixa passar a terra, como o bago ou o pedregulho. Enquanto isto, Trump vai limando as arestas ao fascismo da América, com o mundo à sombra das suas costas largas.

Diz-nos Bukowski: «A poesia é o que acontece quando nada mais pode». Mesmo que na verdade também ela pouco possa. Mas às vezes, e isto quem o escreve é já Nuno Júdice, «um verso transforma o modo como se olha o mundo;/as coisas revelam-se naquilo que imaginação alguma/as supôs/e o centro desloca-se de onde estava, desde/a origem obrigando o pensamento a rodar noutra direcção». Este tempo de pausa que nos faz olhar com outro tempo para outra direcção é uma forma de poder, nem que seja o poder das linguagens, dos significados. E pela raiva e desprezo que a direita mais extrema tem à cultura, talvez signifique afinal que ela possa, ainda assim, qualquer coisa. Vamos então florilégio de versos e poemas, que aqui quis reunir.

Chuva de Jasmim é um livro de poesia portuguesa escrito pela palestiniana Shahd Wadi, que (e cito da sua biografia): «considera as artes um testemunho de vida. Também da sua.» Aqui, a poesia expõe-se enquanto resistência em duas frentes, duas feridas: ser mulher e ser mulher palestiniana, resgatando, na sombra das palavras que soletra em português, a história latente da Palestina. É uma resistência que começa na violência de se dizer a si mesma na língua do exílio, colhendo o que se sente em palavra alheia, uma «Língua do tempo», título, aliás, de um belíssimo poema que assim diz: «Desmancho:/ Sou uma Penélope com um novelo de escrita/mas o Ulisses desta outra língua/nunca regressa fora de mim». À colecção de flores poéticas, firmes e direitas, como um cravo erguido, quero juntar um outro poema da autora, cruzando-o com a poesia de Ruy Belo (afinal, a poesia é diálogo subterrâneo tantas vezes), porque também aqui cabe a esperança de a Palestina poder vir a ser esse país aonde o puro pássaro é também possível. O poema de Shahd Wadi chama-se «Povo Pássaro». Também este verso-âncora de Ruy Belo, do poema «Portugal-Futuro» — e que não me tem largado a memória por estes dias — habita um outro livro, As Manhãs que não conheces, último livro de Luis Castro Mendes, em que lateja, talvez mais que que qualquer outro seu, a preocupação face ao mundo, e a esperança de um país de puro pássaro. Trago para o florilégio também o seu poema, intitulado «O pássaro do possível».

Acredito que a poesia abre uma porta segura, para fugirmos da banalidade em que vai chafurdando o mundo. Por isso, a convoco hoje, insistentemente, para este Um pouco mais de Azul. Porque como escreve João Pedro Mésseder, na antologia poética que acaba de sair, tão sintomaticamente intitulada Uma casa faz-se por dentro, a poesia é essa «ilha desabitada e inatingível/cercada de naufragos/por todos os lados» e às vezes, escreve o mesmo autor, «existem lugares/aonde não chegam as palavras.» […] «Guarda-se a luz breve/ a impotência/um fio de dor/cercando a tarde.»

Remato este florilégio poético com um poema de Tatiana Faia, do livro Recurso e Pobreza, que acaba de sair. Cada poema de Tatiana é um vórtice cronológico que cruza coordenadas espaciais e temporais: tudo na sua poesia é pretexto, sempre, para uma viagem em vertigem pelas histórias na História; e feita, ainda por cima, por quem bem conhece onde enraiza a trama da memória. O poema com que termino este florilégio que vos ofereço hoje, para um pouco mais de azul chama-se «As mãos dos poetas». É um poema longo, como todos os da Tatiana Faia, porque a arte, a poesia, a vida requerem tempo, sim, requerem a consciência de um percurso fazendo-se. Deixo-vos com o início deste poema: «as mãos dos generais não se confundem/com as mãos dos poetas/porque os generais por norma/voltam para casa com as mãos sujas de sangue/e as dos poetas estão apenas sujas de tinta (…)»

E termino este florilégio com as suas últimas estrofes que vêm do passado para apontarem certeiras ao olho do furacão do presente.

No podcast integral são lidos poemas de:

João Pedro Mésseder, Uma casa faz-se por dentro, Poética edições, 2025

Luis Filipe Castro Mendes, As Manhãs que não conheces, Assírio e Alvim, 2025

Shahad Wadi, Chuva de Jasmim, Caminho, 2025

Tatiana Faia, Recurso e Pobreza, Tinta de China, 2025


Flores e não armas?

Francisco Louçã

(Com uma nota prévia: ao longo das próximas semanas, manterei no Um Pouco Mais de Azul o mesmo registo de sempre, sem me desviar por qualquer outra razão conjuntural e eleitoral. Por respeito pelo que colectivamente aqui se faz com o Fernando Alves e a Rita Taborda Duarte, e para com o Público e os seus leitores, assim será: tratarei temas do debate nacional, sem lhes sobrepor alguma interpretação partidária.)

Dizia Mark Rutte, o flamejante secretário-geral da NATO, em conferência de imprensa nos últimos dias do ano passado, que “quando se olha para o que os países gastam em pensões, no sistema de Segurança Social e na saúde, precisamos de uma fracção desses gastos para garantir que os gastos com a defesa cheguem a um nível em que possamos sustentar a nossa dissuasão a longo prazo”. Creio que não é preciso reler a frase para reconhecer a sua franqueza. Para a liderança da NATO, não é por ocultação que tal é afirmado, é por total franqueza: dizem-nos que é mesmo preciso reduzir os gastos em pensões ou saúde para financiar o armamento. Três meses depois, e constatando que Trump se vai afirmando como o maior perigo para a Europa, esse discurso tornou-se mais confuso, mas também mais insistente sobre a necessidade de mudar a estratégia de investimento europeu. Dito em poucas palavras, querem estes dirigentes que se retire da segurança social ou das pensões o necessário para armas. Longe vai o tempo em que a União anunciava planos verdes ou investimento massivo na transição energética; agora, o novo verde passou a ser o castanho ou o negro.

Deste modo, a Comissão transferiu-se do discurso ambiental para o guerreiro, e há mesmo dirigentes que antecipam uma guerra em três anos. Uma vez mais o campeão do esdrúxulo, Rutte ameaçou-nos de termos que aprender russo, a língua dos novos dominadores que nos espreitam emboscados das fronteiras, se não aceitarmos este desvio de recursos para financiar a guerra.

O problema é que os números não batem certo. Os países da União gastam em armamento e por ano o triplo do que gasta a Rússia. Ou seja, em cada ano que passa maior se torna o fosso da sua capacidade militar em relação às forças armadas russas, que aliás provaram incapacidade perante um adversário fraco como a Ucrânia. A Europa tem uma gigantesca superioridade militar em relação à Rússia (e, já agora, gasta em despesa militar mais do que China).

Florilégio é o tema do nosso episódio de hoje. Uma palavra maldita entre os industriais do armamento, que estão excitados com o mercado que se lhes amplia.

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