Quinta-feira, Janeiro 9

Todos os natais, algures no mundo, uma criança recebe um globo terrestre. Julgo que há uma dupla intenção. Primeiro, contrariar os teoremas terraplanistas; segundo, dar a conhecer às crianças o conceito de mundo. A ocorrência é sempre igual: alegria e uma criança sentada no chão a girar o globo e a exclamar “é meu, este país é meu!”

E agora, para algo (não tão) completamente diferente… Donald Trump confirmou ter recebido no passado dia do ataque ao Capitólio dos EUA, perdão, no Dia de Reis, o globo terrestre e logo começou a apontar o seu indicador.

Na primeira volta a olhar para o globo, disse que o inferno cairia sobre o Médio Oriente, se os meninos, em especial os árabes maus, não parassem com as brincadeiras. À segunda, avisou os garotos da Europa para pararem de tocar no seu globo e irem falar para outro lado. Dá-lhes, agora, seis meses para isso. Na terceira, apontou para o vizinho de cima e prometeu que lançaria um mal económico. O menino saiu, demitiu-se(!), não arriscando o confronto. À quarta, alertou os meninos orientais para tirarem as mãos do seu Canal. Já tinha olhado para ele. Não toquem no que é dele!

Não perca o fôlego, faltam mais duas. Na quinta, designada para baixo e disse aos meninos do México que não merecem o Golfo homônimo. Precisam de uma mudança: “Golfo da América – que lindo nome. E é seguro”, exclamou. Na volta final ao globo, estendeu o indicador para uma porção enorme de gelo. Esta não parecia ter muitos assuntos específicos, mas mesmo assim ameaçou os outros meninos: se algum se aproximar, tornar-se-á mais agressivo . Contudo, para não se aborrecerem tanto, ele pode usar umas notas para comprar na Gronelândia – há sempre alguém que recebe uma nova versão do Monopólio no Natal.

De fato, o mundo está buscando diferente baseado em regras, multilateralismo, autodeterminação, integridade territorial e direitos humanos que surgiram após a Segunda Guerra Mundial. Essa ideia de globalismo – sim, esse palavrão – parece ultrapassada pela renovada e sintomática postura do menino que está prestes a voltar a morar na Casa Branca. Hoje, a integridade territorial parece valer tanto quanto o direito histórico sobre as colónias, defendida por Portugal na Conferência de Berlim (1884-85). A novíssima ordem internacional dita, tal como nessa época, que um Estado tem de dissuadir a posse real de um território para poder reclamar soberania sobre o mesmo.

Trump gira o globo e vê, no Médio Oriente, Israel a praticar abertamente atividades neocoloniais sem graves consequências internacionais. Percebe que, na Ucrânia, mas não só, a Rússia define a sua esfera de influência, invadindo e anexando territórios e que não há força legal ou militar internacional com capacidade e/ou vontade de contrariar. Continue a rodar e entenda a eficácia da Nova Rota da Seda da China. Vê como a alegada não ingerência chinesa em assuntos internos, em especial nos países do Sul Global, é, pela força económica, altamente eficaz a ingerir-se nos destinos desses mesmos países. Olha para um território (Gronelândia) de um país da NATO (Dinamarca) e ameaça vir a invadi-lo, se não quiserem vender-lhe aquele monumento gelado que, em 2035, graças às alterações climáticas, poderá ser integrado na Rota do Mar Transpolar da qual os EUA já estão atrás.

O direito internacional não impede que um país compreenda um território de outro, desde que cumpridos os princípios da cessão. Contudo, o que este novo impulso neocolonial traz é a ideia de que a integridade territorial, princípio basilar do sistema internacional, vale hoje menos do que alguma vez valeu. Traz a ideia de que as tentativas de projeção de poder do líder do mundo livre não são tão diferentes das do Império do Mal. Traz a ideia de que o moralismo cultural ocidental deu lugar a outro de cariz económico e securitário, típico do mundo dos finais de 1800 – um Estado deve ter direitos sobre outro território se, entre outros, para uma força económica ou militar dominante.

Ora, este moralismo deixa as relações internacionais com um caminho mais aberto do que nunca para a discricionariedade dos eixos do bem ou do mal, do soberano ou da apropriação, do que é meu ou teu, tal como na imagem da criança sentada no chão a girar o globo. Será este o novo hábito das relações internacionais? Alguma vez não foi? Enfim, obedece quem deve, manda quem tem o globo. Vivam os Reis!

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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