Terça-feira, Outubro 22

Fernando Ulrich foi a segunda testemunha viva no processo da derrocada do BES e, à semelhança de Ricciardi, também acabou por se irritar a meio da sessão. “Tenho imensa pena, mas não sou eu que estou a ser julgado, nem o BPI”, afirmou. O chairman do BPI fez ainda uma previsão para o fim deste julgamento: “Isto vai durar anos, que diferença faz”

“Peço desculpa, mas essa pergunta serve para quê”, “Com todo o respeito, o que é que isso interessa?”, “A maior parte das coisas que me estão a perguntar não sei bem para que servem”. Estes foram algumas das observações de Fernando Ulrich, antigo presidente do BPI, que esta terça-feira foi testemunha em tribunal no julgamento da queda do BES. E o que começou como um medo generalizado de poder ser processado pela violação de sigilo bancário acabou com várias provocações à procuradora Carla Dias (“faz-me confusão a via que estão a seguir”), a vários advogados e mesmo à juíza Helena Susano que, ao pedir ao banqueiro para ler um documento, viu-o a encolher os ombros e a fazer-se de difícil: “Sabemos todos ler, não é?”.

Fernando Ulrich foi a segunda testemunha viva a ser ouvida no julgamento e, como José Maria Ricciardi, também acabou por chegar a um ponto de irritação com as perguntas do Ministério Público. Neste caso, o tema era o conhecimento que o na altura homem-forte do BPI tinha do buraco nas contas da Espírito Santo Internacional – a holding que Salgado terá mandado falsificar a contabilidade por ter dívidas superiores a dois mil milhões de euros – e um empréstimo que a ESI contraiu com o BPI no valor de 100 milhões de euros.

Seguiu-se um momento tenso. A procuradora com as mãos firmes na mesa e a testemunha de braços cruzados: “Tenho imensa pena, mas não sou eu que estou a ser julgado, nem o BPI. Peço desculpa, mas essa pergunta serve para quê. Porque estão a perguntar-me das relações que o meu banco teve com o GES. É melhor fazerem-me uma pergunta concreta, porque eu não entendo porque estou aqui”, retorquiu. “Não são questões diversas às questões que lhe foram colocadas em sede de inquérito. Queremos perceber as relações de empréstimo com o BPI, para percebermos a vida da ESI e do GES”, esclareceu a procuradora.

Juíza e testemunha colidem. “Peço-lhe que responda às perguntas, está obrigado a fazê-lo”

Fernando Ulrich foi hoje ouvido em tribunal. Não levou consigo qualquer advogado/DR

O momento só desinsuflou com a ajuda da juíza que tinha compreendido que a falta de cooperação do banqueiro se devia ao medo de dizer algo que o viesse a colocar em tribunal por violação do sigilo bancário. “Talvez haja aqui algum mal-entendido que convém esclarecer, ninguém o irá julgar por algo que diga nesta sessão, nem tal é possível.” “Não são os senhores, mas amanhã se calhar colocam-me um processo”, devolveu.

Para Fernando Ulrich, que foi uma peça-chave na mediação do conflito entre Pedro Queiroz Pereira e Ricardo Salgado, e que foi também um dos que denunciou ao Banco de Portugal o estado de fragilidade das contas  do Grupo Espírito Santo, as perguntas da procuradora não eram aquelas a que gostava de responder. Por isso, frisou que estava ali a cumprir “um dever numa ocasião importante”, mas garantiu que lhe faz “muita confusão esse caminho”. “Com todo o respeito, o que é que interessa o que me está a perguntar?. Eu quero colaborar, mas faz-me confusão a via que estão a seguir.”

Isto porque, continuou, “estamos a falar de uma situação em que os acionistas do BES perderam 7 mil milhões de euros e que os obrigacionistas perderam mais de 5 mil milhões”. “Tudo somado, sem incluir lesados, estamos a falar de prejuízos de 18 mil milhões de euros.” E, fitando diretamente a procuradora, prosseguiu: “A sra. está a perguntar-me sobre 100 milhões.” 

Imediatamente a seguir, a procuradora mandou exibir um documento de março de 2012 do BPI, onde estava referida uma “proposta de estratégia de atuação” para reduzir a exposição do banco ao GES e pedir um reforço de garantias. Lia-se, nesse documento, que o entendimento era que o valor do BES estivesse entre os 1.533 milhões e os 1.129 milhões negativos. Questionado sobre isto, Ulrich respondeu apenas que os números “falam por si” e que conseguiu essa avaliação através de “elementos públicos e de dados fornecidos por empresas que eram mutuárias do BPI”. No fim, olhando para a juíza, ainda interrogou: “Qual é a necessidade disto?” “Eu peço-lhe que responda às perguntas, está obrigado a fazê-lo”, avisou a juíza.  

Não foi só a premência das questões que lhe eram feitas pelo Ministério Público que Fernando Ulrich colocou em causa, mas também a própria finalidade do julgamento e os crimes pelos quais os procuradores acusaram Ricardo Salgado. O momento de maior inquietação surgiu quando o advogado da massa insolvente das holdings do BES lhe perguntou sobre qual teria sido o funcionário do BPI que liderou as negociações com a ESI. “Não tenho a certeza, posso dizer-lhe amanhã? Isto vai durar anos, que diferença faz.”

“Mas tem alguma certeza que vai durar anos?”, replicou de imediato a juíza. “Digo-lhe amanhã”, insistiu. “Como eu não sei onde querem chegar, e acho que não vão chegar a bom lado, mas quem mandava era a comissão executiva do banco e quem mandava era eu”, acrescentou. E a juíza, já com um sorriso, responde-lhe que “o tribunal saberá para que serve” essa informação. 

“Se não fosse bancário, uma das coisas que gostava de ser era juiz”

Ricardo Salgado no primeiro dia de julgamento do caso BES/LUSA

Já a algumas questões de ​​Miguel Coutinho, advogado da massa insolvente do BES, Fernando Ulrich simplesmente recusou-se a responder. A questão era “de que forma a falta de transparência no GES criava problemas” e qual a natureza dessa prática. A resposta: “Estamos a discutir 20 Bis (mil milhões de euros) e estamos a falar aqui de uma coisinha. Olhe, eu não respondo. Não respondo. É uma pergunta opinativa e eu não dou a minha opinião sobre isso.”

É avisado novamente pela juíza. “Eu estou calmíssimo”, garantiu. “Ótimo, eu estou calmíssima” e “já foi esclarecido que o BPI não está a ser julgado como é evidente”, explicou-lhe a magistrada Helena Susano. É aí que a juíza pede ao banqueiro, cada vez mais impaciente, para ler um documento sobre a avaliação de risco que o BPI fez do Grupo Espírito Santo em 2013. “Sabemos todos ler, não é”, provocou, antes de proceder à leitura.

Já mais calmo, Ulrich esclareceu que a sua intenção é a de colaborar com a justiça, “não pode ser outra” e até confessou que “se não fosse bancário, uma das coisas que gostava de ser era juiz”, disse o homem que começou a carreira como jornalista. Por isso, prosseguiu, tem “de dizer coisas que acha que são úteis”. Uma delas, alertou, é o facto de o Ministério Público não ter avançado com uma acusação contra Ricardo Salgado pelo crime de gestão danosa. “Falei com vários amigos advogados que me dizem que devia ser aplicado o artigo da gestão danosa”, afirmou, ao mesmo tempo que a procuradora se afastou da mesa e observava-o de cara trancada. 

E o banqueiro continuou a bicar o Ministério Público. Criticou o facto de ser uma das primeiras testemunhas neste processo: “Estouraram 20 mil milhões de euros e eu chego aqui e só conheço três arguidos.” E disse quais eram as testemunhas que o deveriam substituir: “Se calhar devia estar aqui o Conselho de Administração do BES e da Control.” Ao invés, apontou, “o que vejo é uma série de arguidos que provavelmente estavam a cumprir ordens”. Foi aí que a juíza cortou o seu discurso, a que chamou “estados de alma”.

A verdade será “muito pior”, avisou Queiroz Pereira. “Ainda vão ter muitas surpresas”

O tribunal ouviu também o depoimento de Pedro Queiroz Pereira dado em 2018, antes de morrer/LUSA

Nas duas horas e meia em que testemunhou, Fernando Ulrich explicou como em junho de 2013 se reuniu com Vítor Gaspar e avisou-o para os problemas do BES. Dois dias depois, recebeu uma chamada do diretor de supervisão do Banco de Portugal (BdP), com quem tinha andado na faculdade. Combinaram um novo encontro e o banqueiro mostrou “alguns quadros com informação”. O que se seguiu foi um processo de riscar o que o BdP já sabia e aproveitar o que não sabia. “Apercebi-me que alguns elementos da informação que tínhamos eles não tinham, porque era informação das sociedades não financeiras.”

O chairman do BPI falou também da sua intervenção na guerra entre Ricardo Salgado e Pedro Queiroz Pereira. Ulrich terá servido de assessor financeiro do industrial durante esta disputa que acabou com a denúncia de Queiroz Pereira ao BdP, levando mais tarde à queda do império Espírito Santo. “Aquilo que eu vi foi uma negociação, não havia a palavra apaziguamento, mas percebo o contexto.”

Horas antes, foi a vez do tribunal ouvir o depoimento que Pedro Queiroz Pereira deu ao DCIAP em 2018, antes de morrer. Nessa audição, o industrial fez várias denúncias sobre o poder que Salgado tinha na economia e na política, nomeadamente sob Marcelo Rebelo de Sousa. Disse que houve um momento em que a relação entre Salgado e o agora Presidente da República ficou “tremida” porque Marcelo, durante a disputa para a liderança do PSD, fez um discurso “contra os grandes grupos económicos”. 

“Só que os interesses eram grandes demais”, afirmou Pedro Queiroz Pereira. E a solução para reatar essas relações terá partido de Ricardo Salgado. O antigo líder do BES “pegou no departamento jurídico do BES e mandou trabalho de cobrança a Rita Amaral Cabral”, na altura namorada de Rebelo de Sousa. “Foi uma forma de comprar o professor Rebelo de Sousa.”

O industrial fez também um aviso em 2018 que foi esta terça-feira ecoado em tribunal. Os procuradores “estão a tratar com uma pessoa doente, que vai mentir até ao fim da vida”. E sublinhou que a estratégia de Ricardo Salgado será que o processo “dure uma série de anos para morrer antes de ver isto chegar ao fim”. “Por muito grave que o Ministério Público ache que isto é”, a verdade será “muito pior”. “Ainda vão ter muitas surpresas.”

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