Domingo, Setembro 22

ENTREVISTA | Advogado especialista em Direito Rodoviário explica à CNN Portugal que não há casos impossíveis de contestar favoravelmente no que diz respeita a infrações e coimas rodoviárias. “Há casos mais difíceis do que outros” naquilo que é “um problema nacional grave”

Em Portugal, há 123 radares sinalizados que são responsabilidade da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária. Depois há outros tantos a nível municipal geridos pelas Câmara Municipais de todo o país – por exemplo, só em Lisboa há mais 41. A todos estes juntam-se ainda os radares móveis e regularmente não sinalizados.

Independentemente de por qual destes aparelhos o condutor tenha sido multado, as coimas são as mesmas, variando entre leve, grave e muito grave e podendo acarretar ainda penas acessórias, como suspensão da carta de condução durante alguns meses, nos últimos dois casos. José Rocha é um advogado especialista em Direito Rodoviário com vasta experiência em processos de recurso deste tipo de infrações. À CNN Portugal garante que não há casos impossíveis para um condutor se defender e evitar penas excessivas.

Segurança Rodoviária “é um problema nacional grave”, alerta o advogado especialista em Direito Rodoviário José Rocha (DR)

O que está a falhar nesta tentativa de diminuição do número de sinistros?

Acho que estas questões todas de Segurança Rodoviária como a polémica à volta dos painéis publicitários, por exemplo, e os radares, a ideia inicial que leva a estas operação até é boa, tem um bom sentido, mas a forma, o caminho que se percorre para se chegar a esse fim é que está errado. Portanto, devia-se alterar a nossa cultura um bocadinho neste sentido e não só pensar na receita.

Devemos ser transparentes, totalmente honestos e perceber claramente que, se é para haver radares, que os anunciem, porque é isso que evita a sinistralidade. Tal como as câmaras de vigilância numa loja, só cumprem o seu propósito de prevenção quando alguém sabe que está a ser filmado. Os radares não fogem desta regra, são importantes para a segurança rodoviária, mas têm de estar anunciados devidamente para os condutores terem a cautela.

Que tipos de radares existem?

Os radares que começaram inicialmente a existir e que ainda existem são os radares de velocidades fixos, aqueles que aferem a velocidade instantânea do veículo num troço rodoviário. São os que existem em maior número e estão evidenciados com placas. Depois, temos outro tipo de radares que, na verdade, são os radares de velocidade móveis e, por fim, os radares de velocidade média, que são as novidades nas nossas estradas a partir do ano 2022 e também sinalizados.

Quais são as principais diferenças entre estes três tipos?

Existem pequenas diferenças, que têm um significado prático muito grande. Os radares de velocidade móveis são também radares que aferem a velocidade também instantânea do veículo. Só que a pequena diferença é que estes não estão evidenciados nos troços rodoviários. São o único tipo de radar que não está sinalizado nas estradas nacionais e esta é também a questão problemática que é ilegal. 

Se sobre os radares móveis recaem dúvidas legais como continuam a ser utilizados?

Existe uma lacuna da lei, ou seja, a lei não obriga que estes radares estejam evidenciados, querendo com isto dizer que não obriga a que haja uma placa a anunciar que naquele troço rodoviário existe um radar, o que é diferente. Os radares de velocidade instantânea e média têm dois tipos de sinais, que é o H43 para o radar de velocidade instantânea e o H42 que é para os de velocidade média.

Estes radares móveis são a grande questão e, no meu entendimento, violam princípios básicos do nosso Estado de Direito democrático. Na verdade, a legislação que existe sobre os radares não obriga a que este tipo de aparelho esteja efetivamente anunciado. Contudo, viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, ao compararem-se com outros tipos de radares.

Sinais que evidenciam radares nas estradas nacionais. (fonte: ANSR)

São estes radares omissos eficazes no combate à sinistralidade?

Segundo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), foi colocado o maior número de radares nas estradas e, com isso, limitou-se 80% dos sinistros. Então, questiono o porquê de se continuar a usar radares móveis sem anunciar? Ou seja, sem anúncio porquê? A promoção da Segurança Rodoviária assenta na prevenção. É o facto de um condutor ver uma placa de um radar que faz, efetivamente, a prevenção rodoviária e leva a pessoa a ter mais cuidado na condução. Radares escondidos que acabam por apenas culminar em multas e isso não ajuda na promoção. Isto, no fundo, é o que a lei diz que são ações de agentes provocadores que, na ótica dos tribunais, até são consideradas ilegais. Portanto, se dois tipos de radar são enunciados obrigatoriamente, porquê é que o atrito de radar, não é? Também deve ser nesse sentido.

Como deve um condutor agir ou que deve fazer em caso de ser multado por radar não sinalizado?

Se um condutor for multado por esse tipo de radares, além do princípio de defesa que tem de colocar em causa e solicitar informações sobre as características deste tipo de radar, modelo, a marca, se foi aferido pelo Instituto de Políticas da Qualidade (IPQ), a inspeção periódica desse instrumento que foi utilizado, isto é a defesa que usa para todo o tipo de radares. Mas, neste caso, além deste tipo de argumentos, temos também, por exemplo, de fazer uma defesa no sentido de que uma multa processada por um radar sobre o qual a lei tem uma lacuna é uma violação dos princípios democráticos e que colide com o princípio ao contraditório, que é o exercício de defesa da pessoa. Isto porque um condutor, nestes casos, não tem ao seu dispor e no seu poder todos os meios de defesa, ou seja, todas as informações para se poder defender devidamente. Portanto, assim não existem elementos suficientes ao dispor do condutor que o façam concluir se aquela infração realmente é verdadeira ou não.

Não é a utilização de radares não sinalizados uma prática proibida pela União Europeia?

Não há nada que diga expressamente que não se pode colocar radares sem serem sinalizados. Não há nenhuma norma que efetivamente diga que é proibido aos países fazerem uso desta prática.

É o pagamento da coima uma confissão ou assumir de culpa?

Esta é uma questão muito importante e é completamente um mito. Às vezes, oiço também pessoas da área a falar disto, mas não existe nenhuma confissão quando se paga uma coima. A coima pode ser paga em dois sentidos: como um depósito, que tem de ser no prazo de 48 horas após a infração ou após a recessão da notificação, ou a título definitivo, sendo que esta opção constata apenas que a pessoa quis pagar e não que tenha confessado nada. Só é assumido que o condutor confessou se pagar e não contestar. Aí está, por um lado, a dar sinais que quis assumir aquela infração, mas ainda assim esta não é uma assunção legal do ponto de vista jurídico e efetivo. Portanto, a simples frase de dizer “paguei a coima” ser como se tivesse confessado, é falso.

No seu entendimento porque continuam a ser utilizados estes radares não sinalizados?

Esta mentalidade das infrações, em termos de Estado, funciona virada para a receita. É um pouco como a questão dos painéis publicitários com a Câmara de Lisboa. As multas dão muita receita ao Estado e às entidades que também estão envolvidas e quando a entidade recebe a coima paga acompanhada de uma contestação, seja a defesa ou a impugnação judicial, que é a fase de recurso, o que acontece é que a autoridade está tão cheia e está com tanta falta de recursos humanos – porque recebem as multas do país todo -, que aquele assunto nunca mais é tocado, posso lhe dizer-lhe isso. Pelo que pagar a coima é importante para o condutor, quando contesta ou dá início a um recurso. É efetivamente o melhor caminho estratégico para aquela infração ter sucesso no sentido da pessoa ficar salvaguardar o seu direito.

E se não pagar?

Se o condutor for apanhado em flagrante delito, o não pagar a coima só tem uma implicação que é a autoridades ficarem-lhe com a carta física e entregarem-lhe uma guia, pode conduzir na mesma. A única exceção é que não pode conduzir fora do território português.

Se o condutor tiver feito o depósito da coima, consegue reavê-lo?

Pode pedir o reembolso. Ora, o pedido de reembolso também tem que ser feito num modelo próprio, que está no site da ANSR, que é o pedido de reembolso, onde a pessoa coloca os seus dados, coloca o número do processo, e coloca também o comprovativo de pagamento, para receber depois o montante. Isto é importante também dizer-se, porque as pessoas por vezes pensam que para pedir o reembolso têm de ligar para ANSR ou mandar e-mail. Não têm. Há um formulário próprio que se envia para o correio ou por e-mail digital de certificado de ordem de advogados, se for com o advogado, ou, se for, a pessoa a título individual, tem que ser com a assinatura de carão de cidadão.

No caso da contestação ser favorável ao condutor, o visado os pontos são restabelecidos na carta?

Nesse caso, o condutor não perde pontos e não tem sanção acessória, se houver lugar a ela nas contraordenações graves e muito graves e o cadastro rodoviário, que é o nosso RIC, que é o Registro Interno do Condutor, fica depois limpo. Aparece só lá a menção, mas aparece que o processo foi resolvido.

Quanto tempo demora um processo destes de contestação de uma multa?

Demora sempre entre dois a três anos, no mínimo.

E o que acontece ao período de prescrição da multa neste hiato temporal do processo?

Isto é outro tema que há alguma confusão nos juristas, que trabalham nesta área, vou explicar muito de forma sucinta. O prazo de prescrição é sempre de dois anos para a coima e para o procedimento. Mas, se passar três anos e meio o processo prescreve sempre. Ou seja, cometi uma infração há três anos e, pelo meio, meti uns recursos, avancei com uma defesa e que não está a ser discutido ainda, quando passam três anos e meio do dia da infração, o processo prescreve sempre. Haja ou não recursos, haja ou não defesa, em sede administrativa, se passar três anos e meio o processo prescreve.

Outra coisa é, eu cometi uma infração há dois anos e só agora é que estou a receber a notificação para poder me defender. Ora, nesse caso não houve nenhum prazo de suspensão nem de interrupção. Como passou dois anos diretamente da minha infração e só agora é que estou a ser notificado, o processo também prescreve.

Mas já não prescreve quando há um ano cometi uma infração, fiz uma defesa na altura e agora já passados dois anos, vem a decisão. Ou seja, passaram mais dois anos da decisão, mas eu tinha feito uma defesa. Aí, não prescreve porque o prazo foi interrompido.

É possível recorrer sem um advogado?

É possível e muita gente o faz. As pessoas mandam umas cartas, têm umas minutas, acham que é tudo assim e mandam para lá em nome delas próprias. Pode a pessoa própria defender-se por carta, não é? Ou recorrer ao advogado ou ao solicitador. Pronto, efetivamente isso pode acontecer, a lei não proíbe que uma pessoa se defenda de forma pessoal.

Quanto vai custar ao condutor para ter apoio jurídico nestes processos?

Estes são processos morosos, também tem mais horas de trabalho há advogados que podem cobrar a hora, outros podem fazer um valor certo, depende. Normalmente, variam entre os 90 e os 160 euros estes processos.

Nos casos que lhe chegam, o que motiva estes condutores multados? O valor a pagar ou o facto de perderem pontos?

É mesmo pelo medo de perder a carta. É a pena acessória, com a suspensão de 30 ou 60 dias, ou às vezes até mais. Isso é que assusta o condutor, porque realmente a carta muitas vezes serve como um instrumento de trabalho. Portanto, acaba por ser o susto e depois não se importam de pagar ao advogado se acham que resolve a situação. Já tive pessoas que me ligaram desesperadas, porque vão perder a carta. Tento acalmá-las, respiro fundo e digo-lhes que pode haver solução, mas cada caso é um caso.

Há processos impossíveis sem qualquer hipótese de vencer em sede de recurso?

Não diria bem isso. Há casos que são mais difíceis do que outros. Há casos como quando a pessoa já perdeu os pontos todos da carta, teve muitas infrações e nunca se defendeu ou já há um processo de cassação de carta a decorrer, que é um processo autónomo aberto pela ANSR, mas são processos mais difíceis. Também nos casos de crimes de álcool, em que a lei obriga que a pessoa fique sem carta no mínimo três meses, o Código Penal, também é difícil às vezes conseguir, são casos mais complexos, mas também já ganhei alguns, posso lhe dizer.

Receita sobrepôs-se à Segurança Rodoviária

Sem dúvida. O fundo realmente é bom e percebe-se a ideia, mas está a ser muito voltado para a receita. E toda a gente sabe que gera muita receita, tanto dos radares, as multas efetuadas pelos radares, tal como os painéis de publicidade à Câmara de Lisboa. Estão a esquecer-se um pouco os princípios da segurança e os princípios da transparência nesta operação. É isto que está em causa e isto tem que ser mudado. Ou seja, coloque os radares que quiserem, tudo bem, mas acho que é importante colocarem radares para a velocidade, mas tem que se respeitar o cidadão e a sua dignidade, porque a insatisfação nas pessoas notória. E é fácil percebê-lo, bastam duas perguntas, que é ir para a rua perguntar às pessoas: se estão contentes com os painéis de publicidade? E se estão contentes com o radar de publicidade? Qual vai ser a resposta? Vão dizer que não.

A que se deve o atraso na legislação?

Prende-se com fatores culturais, de receita, de pensamento ainda fechado e também muito desconhecimento, no meu entendimento. E falta de vontade de fazer mais, acima de tudo. Se houvesse vontade de se fazer, criava-se legislação. Os nossos partidos políticos, quer dizer, estão tão preocupados com as touradas, com os incêndios tudo bem e claro que sim, mas ninguém fala disto, não percebo. Somos o país que, em média, tem uma das sinistralidades mais elevada da União Europeia: é um problema nacional grave. Grave. Acho que seria pertinente haver esta discussão.

E qual seria a solução?

Tem de se mudar a mentalidade e tem de se criar uma legislação que se adapte à realidade. E não é só criar uma nova legislação para os radares móveis de que falei, é alterar toda a legislação, porque muita da legislação que há é antiga, tem princípios antigos e tem princípios básicos que não se adaptam à realidade. Portanto, há aqui muito trabalho a fazer. Muito trabalho.

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