Sábado, Outubro 5

A Rússia volta a fazer disparar o seu orçamento de Defesa para tentar resolver a guerra na Ucrânia, mas o tempo pode não estar do lado de Moscovo

O governo russo vai fazer disparar o orçamento da Defesa para 128 mil milhões de euros em 2025, um aumento que, juntamente com a área da segurança nacional, representa quase 40% dos gastos do Orçamento do Estado. O Kremlin planeia que este valor comece a descer em 2026, mas os especialistas garantem que o tempo não está do lado da Rússia e que Moscovo precisa de colocar um ponto final na guerra antes de começar a sentir os verdadeiros efeitos do seu esforço.

“Ou a Rússia resolve a invasão da Ucrânia em 2025 ou vai começar a sentir problemas muito graves. O Kremlin percebe isso e está a pôr todas as fichas em acabar com a guerra. Este pode ser o último grito da economia russa para financiar a invasão na Ucrânia”, diz à CNN Portugal o major-general Isidro de Morais Pereira. 

A proposta de Orçamento do Estado russo marca o terceiro aumento significativo dos gastos em Defesa desde que começou a guerra. No ano passado o executivo russo gastou 6% do PIB em Defesa, menos 20 mil milhões do que o planeado para 2025. Para 2026, o governo prevê gastar 5,8% do PIB em Defesa e 5,1% em 2027. O cenário económico previsto pelo executivo russo é otimista, com a previsão de mais receitas e um défice de apenas 1%.

Mas nem todos estão de acordo. O líder dos serviços secretos ucranianos, Kyrylo Budanov, afirmou recentemente que o tempo não joga a favor da Rússia, sublinhando que Moscovo tem conseguido mascarar muito do impacto económico através de um cocktail de medidas que não resolvem os problemas, simplesmente os empurram para a frente. De acordo com Kyrylo Budanov, há documentos internos do Kremlin que preveem o aparecimento de impactos negativos “muito percetíveis” na economia russa durante o verão de 2025.

“Ao contrário do que o Kremlin gostaria que os outros acreditassem, o tempo não está do lado da Rússia. Na minha visão, o atual regime de sanções corta 2-3% do PIB russo todos os anos, condenando a Rússia à estagnação”, afirma Anders Åslund, economista sueco que já trabalhou como conselheiro económico russo, num artigo de opinião para o Project Syndicate.

Aumento de impostos financia esforço de guerra

O aumento do gasto na área da Defesa proposto pelo governo russo surge através de uma combinação de três fatores. Por um lado, continua a fazer do gás e do petróleo uma das suas principais fontes de receitas. Por outro, mostra que, ao contrário do aumento dos gastos na Defesa, as outras áreas, como Educação, Saúde, Economia e gastos sociais, registam uma descida ou pelo menos a manutenção do gasto do ano anterior. Só que o principal motor deste orçamento é o aumento significativo previsto das receitas não petrolíferas. O executivo russo prevê um aumento de 73% neste campo, motivado não só pelos recentes aumentos de impostos sobre as pessoas, mas também sobre as empresas.

Só que a guerra consome cada vez mais recursos russos. No início da invasão, quando a Rússia começou a perder um número significativo de veículos e de equipamento, as forças armadas russas recorreram ao vasto arsenal herdado da União Soviética. Dezenas de milhares de veículos que estavam guardados em instalações militares foram transportados para as fábricas, equipados e enviados para a linha da frente. O estado de conservação destes veículos variava. Alguns precisavam de pequenos arranjos e outros precisavam de profundas remodelações. Três anos depois de um dos conflitos mais intensos das últimas décadas, as reservas começam agora a escassear. Segundo os analistas do grupo Oryx, a Rússia já perdeu mais de 18.000 veículos militares visualmente confirmados, desde o início da guerra.

E de um dia para o outro começou a chover dinheiro na indústria militar russa. O governo fez “explodir” o investimento na indústria da Defesa, que pertence ao Estado. Em várias fábricas, a capacidade foi aumentada para níveis sem precedentes, contratando mais pessoal e aumentando a produção para 24 horas por dia, com três turnos diários. Noutros casos, as linhas de produção foram expandidas ou construídas de raiz. Esta necessidade de aumentar a produção de forma tão significativa fez aumentar a necessidade de mão-de-obra. E isso tem impacto na economia.

“Os únicos setores da economia russa que estão a crescer são o militar e as infraestruturas relacionadas, onde as empresas estatais vendem ao Estado a preços definidos administrativamente (provavelmente inflacionados). O resto da economia está estagnada na melhor das hipóteses”, garante Anders Åslund.

Ao mesmo tempo, a mão-de-obra russa é necessária noutros lados, particularmente na linha da frente na Ucrânia. No primeiro ano da guerra, a falta de homens obrigou Vladimir Putin a decretar a mobilização de 300 mil reservistas para defender a linha da frente. Passados dois anos, as necessidades de soldados não diminuíram, muito pelo contrário. Um relatório dos serviços secretos ocidentais estima que mais de 200 mil soldados russos morreram e mais de 400 mil ficaram feridos. 

Para substituir estas baixas o Kremlin recorreu a várias estratégias para atrair mais militares para as suas fileiras. A resposta é simples, mas tem funcionado: mais salários, mais benefícios e mais prémios de assinatura de contrato. E o plano funcionou. Durante quase dois anos, as várias regiões da Federação Russa ofereceram salários e benefícios superiores à média dos salários russos, particularmente fora das regiões de Moscovo e São Petersburgo, e atraíram os candidatos necessários para manter o esforço de guerra. 

Mas o número de candidatos está a cair e, como consequência, os salários oferecidos são cada vez maiores, aumentando ainda mais os gastos em Defesa. A situação está a evoluir de tal forma que o exército já paga melhores salários do que o setor energético. Na região de Moscovo, um soldado pode receber 5,2 milhões de rublos (60 mil euros) no seu primeiro ano de contrato. Um valor aliciante, num país com um salário médio de 756 dólares (cerca de 689 euros) por mês.

Só que a medida está a impactar o mercado de trabalho russo, particularmente a indústria da Defesa. De acordo com um relatório da BBC, a indústria da Defesa russa está a ter sérias dificuldades em contratar dezenas de milhares de trabalhadores para diferentes posições. Entre 15 de agosto e 15 de setembro, apareceram mais de 90 mil vagas nos portais de trabalho russos, que continuam por preencher, apesar de oferecer entre três a quatro vezes mais da média do salário regional. O documento sublinha que a Rússia apresenta uma forte escassez de engenheiros, torneiros e operadores de máquinas.

“A Rússia já está a ter uma incapacidade cada vez maior em recrutar novos soldados para as suas fileiras, mesmo oferecendo salários elevados. Ao mesmo tempo, também já tem problemas em recrutar para a sua indústria de guerra. Isto não pode ser sustentável. Vão ter de começar a fazer escolhas”, garante Isidro de Morais Pereira.

A importância do preço do petróleo

Mas todo este esforço de guerra e o aparente equilíbrio orçamental russo estão dependentes da manutenção das receitas previstas pelo governo, particularmente da indústria petrolífera, e isso é cada vez mais incerto. A Arábia Saudita anunciou que está a planear aumentar a produção de petróleo para evitar perder quota de mercado, arriscando fazer com que os preços caiam abaixo dos 60 dólares. Esta notícia é péssima para o esforço de guerra russo, que tem nestas receitas quase metade de todo o dinheiro do seu orçamento.

De acordo com Alexandra Prokopenko, uma economista do Carnegie Endowment for Internacional Peace, uma queda de 20 dólares do preço do crude pode representar uma perda de 20 mil milhões de dólares para o Kremlin, o que equivale a 1% do PIB russo. Apesar dos problemas criados pelo aumento de produção petrolífera saudita, é pouco provável que esses problemas travem o esforço de guerra russo na Ucrânia. Ainda assim, a instabilidade que se vive no Médio Oriente pode jogar a favor da Rússia. As tensões entre Israel e o Irão estão a aumentar e isso vai afetar a produção de outros países. 

“O Médio Oriente está extremamente instável, apesar de estarem a anunciar um aumento da produção, na verdade, outros mercados poderão entrar em decréscimo. Os problemas no transporte também poderão encarecer ainda mais o petróleo”, explica à CNN Portugal Cátia Miriam Costa, investigadora do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE.

Cientes do risco da dependência da exportação de produtos petrolíferos, o Kremlin aumentou os impostos sobre o rendimento e para as empresas. O governo russo prevê que estas medidas adicionem 55 mil milhões de dólares aos cofres russos, entre 2025 e 2027. Além disso, a Rússia enfrenta uma inflação crescente. Os preços para os consumidores subiram 8,5% em relação ao ano anterior, de acordo com dados oficiais do Ministério da Economia russo. E segundo o economista sueco Anders Åslund, o valor da inflação deve ser substancialmente maior do que o governo sugere. As decisões do Banco Central russo parecem corroborar esta tese, aumentando as taxas de juro de 18 para 19% para combater uma economia focada na guerra que corre o risco de ter mais procura do que oferta.

Só que isso não significa que a Rússia não será capaz de continuar a financiar uma guerra de alta intensidade na Ucrânia durante os próximos tempos. A economia russa, a mais sancionada do mundo, já demonstrou uma resiliência superior à esperada por muitos analistas ocidentais, crescendo mais do que muitos dos seus rivais ocidentais. Ainda assim, os seus desafios estão a multiplicar-se. Os especialistas acreditam que a intervenção do Kremlin na economia está a criar profundos desequilíbrios que, mais tarde ou mais cedo, vão abalar a economia russa.

Por decisão do governo russo, as forças armadas russas estão a atravessar um período de profunda reestruturação. As linhas de produção das suas fábricas estão a operar na sua capacidade máxima e espera-se que essa situação se mantenha alguns anos após o final da guerra. Só que a guerra fez a Rússia perder uma enorme quota no mercado de exportação de armamento, perdendo a posição de segundo maior exportador de armamento do mundo para a França.

No final, a decisão de continuar uma guerra é sempre política e se o Kremlin decidir que a guerra vai durar todos os esforços serão feitos para manter a máquina de guerra, mesmo que isso resulte numa queda abrupta do poder de compra e da qualidade de vida do povo russo.

“As consequências da guerra não serão sentidas no curto prazo. Vão ser sentidas no longo termo, onde poderão começar a corroer o regime. Quando há vontade política, as guerras podem arrastar-se muitos anos. Muito mais quando não é uma democracia plena”, frisa à CNN Portugal o economista Ricardo Ferraz.

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