Trazendo à memória o ex-ministro Nuno Crato e a sua peregrina tese da “década perdida” na educação – que corresponde justamente ao período em que o nosso país alcançou os progressos mais notáveis na aferição internacional PISA –, João Marôco insistiu recentemente, no PÚBLICO de 4 de novembro, surgiu a ideia de que Portugal registasse um “retrocesso educativo que ninguém quer ver”.
O recente debate sobre a disciplina de Cidadania foi o pretexto para o regresso a esta tese, com João Marôco a lamentar que a relevância concedida a esse debate não permita que se discuta aquilo que, no seu entendimento, realmente importante: o recuo, “sem precedente, nas literacias de leitura, matemática e ciências dos alunos, evidenciado no último PISA”.
Sucede, porém, que a ideia de um recuo de Portugal no PISA de 2022, que em termos comparativos caracteriza o nosso país como um caso isolado de fracasso – por não acompanhar uma tendência internacional generalizada – carece de fundamento. De facto, a descida verificada face ao PISA de 2018 está em linha com o decréscimo de resultados registado à escala da OCDE e da UE, reflectindo assim, em grau idêntico, o impacto da pandemia nas aprendizagens. Ou seja, sem que as diferenças observadas sejam estatisticamente relevantes, como a própria OCDE e o Iave cuidaram oportunamente de assinalar.
Vejamos: tal como na OCDE, Portugal desce 20 pontos a Matemática entre 2018 e 2022, sendo as variações muito próximas a Ciências (-8 pontos em Portugal e -6 na OCDE) e na Leitura (-15 pontos versus -13). A diferença é, portanto, nula no caso da Matemática, de -1 ponto a Ciências e de 1 ponto a Leitura. Isto quando, na escala europeia, se assistiu a uma queda acentuada em países tão insuspeitos como a Alemanha, a França, a Finlândia ou a Noruega, onde a descida superou, na média das literacias, os -14 pontos registados em Portugal e na OCDE .
Sugere João Marôco, em segundo lugar, que o início do alegado declínio da educação em Portugal é anterior à pandemia, mobilizando para o efeito os resultados de 2015, de que Nuno Crato se tentou apropriar, atribuindo-os às suas medidas. Agora, importa registrar que o PISA afere as alfabetizações de jovens com 15 anos, a frequentar anos letivos entre o 7.º e o 12.º ano de escolaridade, o que torna irrelevante o universo de alunos que permaneceram, segundo o ex-ministro, “beneficiado” das suas políticas.
Dito de forma simples, os alunos do PISA de 2015 não são, ainda, os “alunos do Crato”. Ou seja, não fiz, por exemplo, os exames do 4.º e 6.º ano nem foram assuntos às novas metas da Matemática, tendo realizado, isso sim, as provas de aferição que João Marôco e Nuno Crato dizem não servir para nada . E beneficiaram, ainda, de medidas que o Crato interrompeu, como o Plano de Ação da Matemática.
Já agora, importante também assinalar que em 2022 – e ao contrário do que aconteceu em 2018 (quando João Marôco tinha, no Iave, a responsabilidade nacional pela aplicação do PISA) – Portugal cumpriu todos os requisitos da amostra proposta pela OCDE, o que, evidentemente, qualifica não só o processo, mas também os valores obtidos.
Em suma, o que a evolução dos resultados de Portugal neste exercício internacional de aferição das literacias demonstra é, portanto, algo muito claro. Depois de uma aproximação progressiva à OCDE em todos os domínios, conseguida com diferentes governos, passou-se a uma situação em que os alunos portugueses acompanham a evolução de valores à escala da organização.
O artigo de João Marôco, contudo, não se esgota aqui. Numa perspetiva mais ousada, e de puro “achismo”, o investigador não resiste a associar o alegado “retrocesso” da educação – veja-se bem – à disciplina de Cidadania. Isto é, como se o seu surgimento, crucial para fortalecer e qualificar a educação e o desenvolvimento integral das crianças e jovens, tendo prejudicado a alfabetização matemática, científica e de leitura. Ora, além de a Cidadania não se ter traduzido numa redução dos tempos letivos de disciplinas como o Português e a Matemática, apenas uma visão obsoletamente compartimentada e hierarquizada dos saberes e das aprendizagens, a par de uma indisfarçável desvalorização da disciplina, permite compreender tal afirmação.
Mas nada que surpreenda, na verdade, se nos lembrarmos que foi o mesmo João Marôco que, perante o PISA de 2022, não hesitou, em entrevista ao Expressoa “apontar o dedo ao fim dos exames do 4.º e do 6.º anos”, assumindo assim a sua extinção como fator explicativo dos resultados. Exames esses que, importante assinalar, há muito tempo não se realizaram por esse fórum europeu e que em Portugal também não existiam entre 2006 e 2015. Isto é, no período marcado – segundo o próprio João Marôco –, pela adoção, até 2015, das “medidas que resultaram em melhorias” das aprendizagens.
Foi também precisamente nesse período, aliás, que se assistiu ao início de uma redução paulatina e consistente do abandono escolar precoce, contribuindo para aumentar as taxas de escolarização e para diversificar a população escolar, que se tornou desde então mais heterogénea, em termos de perfis dos alunos, e socialmente mais inclusivo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico