Domingo, Outubro 27

Os confinamentos pandémicos ajudaram no crescimentos do mercado da entrega de comida ao domicilio, os baixos preços fidelizaram os clientes, mas agora as empresas já não parecem dispostas a suportar tantos custos e estão a contrabalaçar o ónus das despesas para o lado dos motoristas. Perante tudo isto, quem faz da scooter e da mochila vida garante: “Já não é tão bom como era antes”

Um entregador de encomendas perde a cabeça no meio da estrada e acaba por esmagar o telemóvel no pavimento depois de receber uma crítica negativa de um cliente.

Outro estafeta ajoelha-se para pedir desculpa a um polícia que o mandou parar por ter passado um sinal vermelho, antes de se levantar, empurrar com força a sua mota e atravessar a estrada a correr sem olhar a o trânsito.

Noutro incidente, uma multidão de condutores furiosos reúne-se à porta de um complexo de apartamentos, exigindo justiça para um colega motorista de entregas que diz ter sido intimidado pelos seguranças do local.

Estes são alguns dos muitos episódios de confrontos explosivos em toda a China envolvendo trabalhadores de entregas que circulam amplamente nas redes sociais chinesas, mostrando pessoas que chegaram ao ponto de rutura.

Esta indústria de 200 mil milhões de dólares (cerca de 184 mil milhões de euros) – a maior do mundo em termos de receitas e de volume de encomendas -, mais do que duplicou durante três anos de confinamento devido à Covid-19 e, em tempos, proporcionou um rendimento sólido aos trabalhadores ocasionais. Mas já não é assim.

À medida que a economia chinesa se debate com uma série de contratempos, desde uma prolongada crise imobiliária até à falta de consumo, os trabalhadores das entregas estão a sofrer uma pesada derrota.

Na sexta-feira, o Gabinete Nacional de Estatísticas (NBS) anunciou que a economia chinesa registou uma nova moderação no terceiro trimestre, afetada pelo fraco consumo e por uma crise no mercado imobiliário.

O produto interno bruto (PIB) cresceu 4,6% no período de três meses de julho a setembro, em comparação com o ano anterior. Este valor foi apenas ligeiramente superior às expectativas dos economistas inquiridos pela Reuters, que previam uma expansão de 4,5%.

“Estão a trabalhar muitas horas, estão a ser realmente pressionados”, explica Jenny Chan, professora associada de sociologia na Universidade Politécnica de Hong Kong. “E vão continuar a sofrer pressões, uma vez que [as plataformas de distribuição] têm de manter os custos baixos”, acrescenta.

Uma Economia lenta significa que as pessoas estão a encomendar refeições mais baratas. Isso reduz os rendimentos dos trabalhadores, porque a maioria trabalha à comissão, o que os obriga a trabalhar mais horas para manter os seus rendimentos, refere Chan.

Além disso, o domínio de duas grandes plataformas de entrega de comida permite-lhes ditar os termos contratuais, deixando pouca margem de manobra para os trabalhadores reagirem à deterioração das condições de trabalho, consideram os observadores dos direitos laborais.

Uma grande frota

Cerca de 12 milhões de motoristas formam a espinha dorsal da vasta rede de entrega de alimentos da China, que começou a ganhar força com a fundação, em 2009, da aplicação Ele.me, agora propriedade do gigante tecnológico Alibaba (BABA).

Os trabalhadores desempenharam um papel fundamental na manutenção das comunidades durante a pandemia de Covid-19, quando os residentes foram impedidos de sair de casa ao abrigo de regras rigorosas de confinamento. Atualmente, tornaram-se uma parte indispensável da cultura gastronómica do país.

São omnipresentes: atravessam uma enorme rede de estradas movimentadas e becos obscuros para entregar refeições todos os dias. Alguns nem sequer param quando chove a cântaros ou há rajadas de furacões.

Os entregadores de comida esperam por tarefas à porta de um restaurante em Pequim, a 18 de maio de 2021. (Greg Baker/AFP/Getty Images)

O mercado atingiu 214 mil milhões de dólares (197 mil milhões de euros) em 2023, 2,3 vezes mais do que em 2020, de acordo com as estimativas da iiMedia Research, uma empresa sediada na China que acompanha as tendências de consumo. Prevê-se que a indústria atinja 280 mil milhões de dólares (257 mil milhões de euros) em 2030. A Morningstar diz que a China tem o maior mercado de entrega de comida para viagem do mundo.

Hoje em dia, os trabalhadores estão constantemente sob uma enorme pressão para cumprirem prazos apertados, mesmo que isso signifique cortar caminho na estrada – acelerando ou passando sinais vermelhos – causando riscos que os põem em perigo a eles próprios e aos outros utentes da estrada.

O condutor que partiu o telemóvel insistiu, numa entrevista aos meios de comunicação social estatais chineses, que a queixa apresentada contra ele não tinha fundamento. Mas garantiu que, mesmo assim, foi penalizado com a redução de tarefas, o que lhe consumiu o rendimento e fez eco de queixas semelhantes.

“O que é que eles querem? Querem que eu morra?”, diz o condutor no vídeo.

No ano passado, os lucros das duas maiores empresas do sector, Meituan e Ele.me, aumentaram. As receitas da Meituan ascenderam a 10 mil milhões de dólares (9,2 mil milhões de euros), um aumento de 26% em relação a 2022.

A Alibaba registou receitas de 8,3 mil milhões de dólares (7,6 mil milhões de euros) para a divisão de serviços locais, impulsionadas principalmente pela Ele.me, no ano financeiro que terminou em 31 de março, um aumento de 19% em relação ao ano anterior.

A CNN contactou a Meituan e a Ele.me para comentar o assunto, mas as empresas não responderam.

Cheques de salário reduzidos

Neste contexto, o salário dos estafetas diminuiu significativamente.

No ano passado, ganhavam 6.803 yuan (880 euros) por mês, de acordo com um relatório do China New Employment Research Center. É quase 1.000 yuanes (129 euros) por mês a menos do que ganhavam há cinco anos, apesar de muitos deles declararem trabalhar mais horas.

Pode não parecer muito em dólares americanos, mas uma diferença de 1.000 yuan é uma grande quantia num país onde o salário médio mensal nacional era de 1.838 yuan (237 euros) no ano passado, de acordo com o NBS.

Lu Sihang, 20 anos, disse à CNN que trabalha num turno de dez horas, faz cerca de 30 entregas por dia. Ganha à volta de entre US$ 30 (28 euros) a US$ 40 por turno (36 euros). A esse ritmo, Lu terá de trabalhar quase todos os dias para atingir a média de 950 dólares (874 euros).

A culpa é do “consumo em baixa” da China, afirma Gary Ng, economista do banco de investimento francês Natixis. Com o abrandamento da economia chinesa, os consumidores estão a gastar menos.

O economista afirma que, apesar de a alimentação ser uma necessidade, uma economia fraca faz com que os clientes gastem menos em encomendas de entrega, enquanto os restaurantes terão de reduzir os preços para atrair clientes.

Esta situação afecta o rendimento dos estafetas, uma vez que o seu salário está normalmente ligado a uma comissão baseada no preço da encomenda. Quando os clientes se sentem sem dinheiro, também é menos provável que dêem gorjetas.

Entretanto, a economia pouco dinâmica significa que há menos empregos, o que torna a concorrência mais feroz. A taxa de desemprego juvenil na China subiu para 18,8% em agosto, a mais elevada desde que as autoridades alteraram a metodologia no ano passado para excluir os estudantes.

“Se houver uma grande oferta de trabalhadores, o seu poder de negociação diminui. Entretanto, há apenas uma quantidade limitada de encomendas para partilhar entre eles”, argumenta Ng.

Um duopólio

Nem sempre foi assim. Uma pesquisa realizada pelo China Labour Bulletin, uma ONG sediada em Hong Kong, afirmou que as aplicações de entrega começaram por oferecer salários mais elevados para atrair trabalhadores suficientes para a sua expansão.

“Mas à medida que as condições mudaram, com as empresas de plataformas a monopolizarem o mercado e o desenvolvimento de algoritmos a controlar o processo de trabalho, os trabalhadores têm pouca proteção laboral e perderam um certo grau de liberdade”, garante.

Muitos restaurantes não cobram taxa de entrega. Alguns até oferecem ofertas mais baratas do que jantar no local ou fazer a própria recolha.

Chan, da Universidade Politécnica, explica que as plataformas investiram muito no início para reduzir os preços e afastar os concorrentes. Mas, agora que já dominam o mercado, começaram a transferir o ónus dos custos para os motoristas, cortando-lhes os bónus e os salários.

No início deste ano, o portal noticioso estatal Workers.cn apresentou várias queixas de motoristas que afirmaram não ter feito nada de errado.

Os entregadores de comida esperam num restaurante de um centro comercial em Pequim, a 20 de março de 2024. (Pedro Pardo/AFP/Getty Images)

Um motorista disse que foi multado em 86 yuans (11 euros) por não ter ido buscar uma encomenda preparada, apesar de ter informado o restaurante de que não a iria levar, porque o restaurante não tinha conseguido preparar a comida a tempo, noticiou o Workers.cn.

Chan diz que outro problema é o facto de os trabalhadores de entregas serem tratados como freelancers pagos por cada viagem, em vez de receberem um salário mensal, o que os incentiva a ignorar as condições perigosas das estradas para fazerem o maior número de entregas possível.

“Quem é que quereria passar um sinal vermelho se pode entregar as refeições em segurança? Mas eles não se podem dar a esse luxo”, assegura.

As consequências têm-se revelado fatais. Em 2019, um motorista de entregas morreu depois de ter sido atingido por uma árvore derrubada por ventos fortes em Pequim, de acordo com os meios de comunicação estatais Global Times.

Ainda na semana passada, o Chongqing Broadcasting Group transmitiu imagens de um motorista de entregas que bateu com a sua scooter contra um carro num cruzamento na província de Hunan, no sul da China, depois de passar um sinal vermelho.

O entregador de comida Yang (à esquerda) fala à CNN sobre a sua situação. (Justin Robertson/CNN)

Um motorista de entregas de 35 anos, que apenas indica o seu nome de família, Yang, reconhece as desvantagens, dizendo que o setor “já não é tão bom como era antes”.

Mas, lembra que continua a achar que o trabalho lhe convém por agora, tendo feito malabarismos com uma série de funções anteriores, desde vender snacks a trabalhar num escritório.

“É um trabalho com flexibilidade. Se quisermos ganhar mais dinheiro, temos de trabalhar mais tempo, se quisermos descansar, podemos trabalhar menos”, resume Yang.

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