Quarta-feira, Janeiro 8

Querida Mãe,

No outro dia, estava num concerto de piano (ao vivo) com os miúdos. Contra todas as expectativas do mini E. insistiu em ir. Apesar de, no início, ter gostado, o meio já estava aborrecido e cansado. Pediu-me o celular para jogar. Não dei porque estávamos num concerto. Passado uns minutos vi-o a contorcer-se na cadeira, depois o olhar para o teto e para os quadros na parede mas, quando esgotou a vista que tinha do lugar, pegou na única coisa que estava por perto — a brochura do programa que explica quem tocava o quê.

Como está a começar a aprender a ler e a escrever aquele pedaço de papel cheio de letras surgiu como uma coisa a explorar e quando dei por ele estava de dedo espetado a tentar dizer os sons das letras em sussurro. “O” lido com o som de U, e de seguida “na-ttal”. Quando, de repente, o cérebro dele somou todas as letras e passou de um conjunto de letras para palavras inteligíveis olhou para mim com um sorriso enorme! Pela primeira vez, sozinho, leu.

E isto me colocou a pensar em várias coisas, que parte consigo:

1. Cada criança tem o seu ritmo (como bem se lembra, as irmãs eram muito mais interessadas em letras e livros e começaram a ler muito mais cedo).

2. A aquisição da escrita e da leitura é mágica! É um processo tão complexo e tão bonito que merece dar graças a todos os bons professores que se dedicam a torná-lo mais interessante, mais acessível e mais eficiente para seus alunos.

3. O aborrecimento é, de facto, fundamental. É muito mais difícil aprender a ler e a escrever num tempo em que temos tantos vídeos para ver, tantas “siris” para escreverem o que dizemos alto. As suas queridas redes sempre que queriam tocar uma música no telefone, perguntavam-me como se soletravam as palavras, e uns anos depois, basta ao mini E. carregar no botão da Siri, pedindo-lhe que o faça por ele. Nada disso é diabólico, mas é seguramente um obstáculo à aquisição da leitura e da escrita, duas coisas que não são perdidas, nem podem perder, a sua importância. Não temos que lutar contra nada, mas precisamos de saber proporcionar um terreno mais útil, que lhes permita dominar esta competência que é fundamental para todos os outros.

Por isso, mãe, começo o ano a lembrar que não é preciso pressa. Não é preciso começar a fazer fichas no pré-escolar. Mas é importante aproveitar o interesse deles e não ter medo do aborrecimento!


Querida Ana,

Que saudade das nossas cartas — ainda bem que as Birras estão de volta, no seu caso depois de umas férias horríveis com gripe a multiplicar por seis, mas espero que todos os vacinados cheguem para o resto de 2025.

Obrigada por falares de aborrecimento e leitura, há muito tempo que esperava a oportunidade de te contar uma história minha e do mini E, justamente sobre este assunto. Há uns tempos, disse-me que estava “aborrecido”, palavra que não sei onde desencantou porque julgava ultrapassada (mas também pensou que a expressão “uma seca” era coisa moderna e acabou de a encontrar em cartas de meados do século XIX). Bem, futuro, estava o teu filho sem nada que fazer e a queixar-se disso mesmo, quando tive uma eureca: que melhor cura para o aborrecimento do que ir para a cozinha escrever exatamente essa palavra longa e complicada com letras de íman na porta do frigorífico? Funcionou. Ficou entretido… Até estar de novo aborrecido, mas isso agora não interessa nada.

Por isso, sim, o tédio é mesmo importante, para que vão para fora cá dentro, procurando no inesperado uma fonte de satisfação, mas a verdade é que o problema está nos adultos, porque não é nada fácil suportar a tensão que nos provoca não os ver felizes e aos saltinhos, e confesso que ainda o sinto em relação aos meus três filhos adultos, quanto mais se fossem pequeninos. É uma doença o querer ver toda a gente bem, e de preferência ao mesmo tempo, e como suspeito que no meu caso já não tem cura, passamos ao tema da leitura.

É mesmo mágico aprender a ler, mas se para alguns é tão fácil que parece resultado de um abanar de varinha, para outros é uma barreira difícil de ultrapassar, como um daqueles quebra-cabeças de milhares de peças a saltarem-nos à frente dos olhos, sem que se consigam encaixar.

Sendo disléxica, com um filho disléxico e duas filhas que não são, percebeu como é uma questão muito mais complicada do que dizer simplesmente a um aluno para se concentrar mais, ou ler mais, ou treinar mais. Aprendi-o à minha custa, num tempo em que não havia a menor condescendência para com os meninos que cometeu erros nos ditados e, se calhar, agora não há muito mais, porque como disse o teu irmão numa entrevista ao Dyslexia Day by Day, um blog que resulta do trabalho fantástico de Patrícia Teixeira de Abreu e de sua filha Francisca, é mesmo falha numa competência que todos os outros miúdos da sala parecem dominar com uma perna às costas.

Para quem tem dificuldades, a ajuda dos corretores ortográficos nos computadores, por exemplo, é inestimável, como são os audiolivros E mil outras facilidades que a inteligência artificial nos pode trazer, mas tenho a certeza de que não podemos deixar-nos ficar à sombra do mais fácil. O prazer que hoje me dá ler e escrever é a prova de que vale a pena.

Até breve, querida Ana, e que o mini E. descubra, mais cedo ou mais tarde, a felicidade que vem entre as duas capas de um livro.


Ó Birras de Mãeuma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filhalogo de quatro filhos, separados pela quarentena, começamos a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunicação que — ocasional! – como invadir. E, passado o confinamento, percebi que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que fala. As autoras escrevem segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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