Sexta-feira, Outubro 18

Após oito horas, finalmente o tribunal acabou de ouvir José Maria Ricciardi, o primo de Ricardo Salgado que foi seu fervoroso oponente no Grupo Espírito Santo. Evidenciando algum cansaço, a testemunha chegou a questionar: “Parece que estou a ser aqui julgado”

“O dr. Ricardo Salgado é que está de relações cortadas comigo”, respondeu José Maria Ricciardi à única pergunta que a defesa do ex-banqueiro fez. No segundo dia em que voltou à sala de audiências, para testemunhar contra o primo que está em julgamento por mais de 60 crimes, o antigo diretor da área de investimento do banco foi confrontado com cartas que o apontavam como o próximo líder do BES e até explicou como ficou “um bocadinho revoltado” por não ter recebido os prémios que outros membros da cúpula do Grupo Espírito Santo recebiam. 

Momentos depois de ficar a saber que o Ministério Público tinha pedido ao tribunal que garantisse a Ricardo Salgado o “estatuto de maior acompanhado” – que serve sobretudo para nomear uma pessoa que ajuda na tomada de decisões pelo doente -, o advogado de Ricardo Salgado, Francisco Proença de Carvalho, começou a sua interrogação com uma declaração inesperada à juíza: “Não temos neste momento condições para contradizer os factos” elencados por Ricciardi. Isto porque, justificou, o ex-banqueiro “não tem condições de saúde para estar presente”.

De qualquer das formas, avançou com apenas uma interrogação: “Está de relações cortadas com Ricardo Salgado?”. Atribuindo primeiro essa realidade ao banqueiro e não a ele, Ricciardi explicou que “nunca achou que (o líder do BES) fosse uma pessoa horrível”. “Até 2011, sempre o achei um homem trabalhador, esforçado – até essa altura acreditei sempre nele como todos acreditaram.”

“Como todos acreditaram”. Esta foi a declaração na qual as defesas dos outros arguidos, assistentes e até a juíza presidente do coletivo teimaram. “Porque é que o senhor teve essa clarividência quando mais ninguém teve?”, questionou Helena Susano. “Não sei se não tinham essa clarividência ou se tinham medo”, respondeu a testemunha. “Medo? Quando temos medo, temos medo do escuro…”, prosseguiu a juíza. “Medo, porque não tomaram medidas. Não enfrentavam o dr. Ricardo Salgado”, respondeu Ricciardi. E porque é que Ricciardi não tinha esse medo, pergunta a juíza. “Porque não tinha, tanto não tinha, que o dr. Ricardo Salgado me tentou demitir das minhas funções duas vezes.

Já a defesa de Salgado quis vincar na relação entre os primos, que não se falam desde 2014. Questionando-o, aliás, se telefonou à mulher do antigo líder do BES quando soube que o ex-banqueiro estava doente. “Os problemas familiares são problemas reservados”, disse, antes de confidenciar que “não ligou”, justificando o porquê: “Foi-me transmitido um recado a dizer que nem ela, nem a pessoa do dr. Ricardo Salgado queriam falar comigo.” “Acham que eu sou um dos responsáveis da situação de Ricardo Salgado”, acrescentou.

Insistindo, a juíza fez a pergunta definitiva sobre o estado de amizade ou inimizade entre os dois. “Se se cruzar com o dr. Ricardo Salgado, cumprimenta-o? “Cumprimento. Se ele assim o quiser, cumprimento.”

Antes, o antigo presidente do BESI tinha contado como em junho de 2014, já após conhecer os problemas de falsificação de contas no grupo, foi convidado juntamente com a sua mulher para jantar com Ricardo Salgado. “Fiquei surpreendido”, revelou, descrevendo o momento: “Nesse jantar, houve uma simpatia exagerada da esposa do dr. Salgado em relação à minha mulher, até de irem as duas ao CascaiShopping”. Achou “uma coisa patética dada a realidade do grupo”.

Após o jantar, conta que os dois caminharam até ao escritório do banqueiro e foi aí que, segundo Ricciardi, Salgado lhe perguntou: “O que é que tu queres?”. A exigência do primo passava por garantir mais capital para desenvolver o Banco de Investimento que coordenava – “expliquei-lhe isso”. 

E Salgado fez-lhe uma contraproposta: “Mas para isso é preciso que tenhas finalmente uma certa solidariedade da família”. Ao que Ricciardi terá devolvido: “Solidário”? “Em relação à falsidade das contas?”, questionou. E Salgado, segundo este testemunho, terá dito que “sim”. “Não contes com isso”, terá respondido o primo. “Ele nessa altura mostrou grande desagrado”, referiu.

Os prémios para a cúpula do BES, onde o “ambiente não era simpático”

O advogado Francisco Proença Carvalho à saída do tribunal/LUSA

Um dos vários pontos que José Maria Ricciardi tem persistido é o de desconhecer que eram pagos prémios ao Conselho Superior do GES – a cúpula do grupo composta pelos cinco ramos da família. Esses valores eram pagos através da Espírito Santo Internacional, a holding na qual as contas foram alegadamente falsificadas e que registava uma dívida de 1200 milhões de euros. 

Ricciardi, que pertenceu a este grupo restrito desde 2011, sublinhou que apenas conheceu essa prática em 2014. Antes disso, no momento em que o grupo passou a ter nove membros, o primo de Salgado contou que a maioria dos membros dividiram entre si esse valor, sendo que só Ricardo Salgado e o seu pai, o comandante António Ricciardi, eram os únicos que recebiam o valor por completo. “O meu pai não dividiu nada comigo. Só vim a saber disto mais tarde, quando me apercebi que a ESI estava a gastar muito dinheiro com terceiros.” E nessa reunião é que me apercebi que os membros também eram pagos. E a forma como me apercebi disso, até fiquei um bocadinho revoltado.” 

O financeiro explicou que o seu número dois no BES Investimento, Ricardo Abecasis (também pertencia ao Conselho Superior), “queixava-se de que recebia pouco a Ricardo Salgado” e quando o antigo líder do BES o veio confrontar com esta exigência, Ricciardi conta que recusou. “Se aumentasse mais, ganhava mais do que eu e isso não podia ser.” Mas, afinal, “recebia muito mais dinheiro através da ESI do que eu recebia”. Sobre as reuniões do Conselho Superior, adianta ainda, o “ambiente não era simpático”.

Embora Ricciardi tenha dito que desconhecia estes pagamentos através da ESI ao Conselho Superior do banco, a verdade é que terá beneficiado deste dinheiro em duas ocasiões, admitiu no dia anterior, sublinhando que não sabia qual era a proveniência desses valores (125 mil euros em 2012 e 112.500 euros em 2013). A justificação, reforçada também ao longo do seu testemunho esta sexta-feira, foi a de que recebeu esse dinheiro através do seu pai.

No total, o testemunho de Ricciardi, a primeira testemunha viva deste julgamento, durou pouco mais de oito horas. Ao final da manhã começou a demonstrar algum cansaço e irritação com as perguntas dos advogados sobre como foi montada a teia de funcionários e empresas que Salgado usou para circular dívida. “Eu não estava nestas teias, nestas construções de sociedades. O dr. Salgado não falava comigo sobre estes aspetos, não comentava. Parece que estou a ser aqui julgado.” 

Já sobre a sua intenção e credibilidade em denunciar o primo, Ricciardi respondeu que “já disse publicamente que não desejava nada de mal a Ricardo Salgado”: “Estou a contar o que sei sobre o que se passou. Eu ainda não sabia 5% do que se veio a saber e já estava a dizer ao Governador de Portugal que a governance do BES não era aceitável.”

Novo cerco ao antigo governador do Banco de Portugal

O antigo governador Carlos Costa durante a apresentação da sua biografia em 2023/LUSA

Seguindo a linha de acusações do seu depoimento na véspera, José Maria Ricciardi voltou a apontar o dedo a Carlos Costa, o ex-governador do Banco de Portugal que tinha já sido acusado de “assobiar para o lado” perante as primeiras denúncias sobre a falsificação de documentos. Hoje foi mais longe ao sublinhar que a resolução do Banco de Portugal impediu o resgate do BES.

“O BES era um banco sólido. Se não se tivessem posto a fazer resoluções, o BES ainda estava cá”, disse, sublinhando que foi por isso que pôs as culpas no Banco de Portugal. “Se não se tivesse feito a resolução e se tivesse emprestado quatro ou cinco mil milhões, o BES tinha sobrevivido e hoje era um banco ótimo.” 

Mais tarde, foi confrontado com uma carta de três membros do conselho superior em junho de 2014, na qual foi pedida a demissão de Ricardo Salgado da liderança do grupo e a apelar a fosse o seu substituto. José Maria Ricciardi explicou que não aceitou essa nomeação porque “já era tarde demais”. “Achei que já não conseguia fazer nada.”

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