Infame “matadouro de Assad” finalmente libertado e onde ainda se procuram sobreviventes, a prisão de Sednaya, no Norte de Damasco, serviu durante décadas para degradar e torturar milhares de presos políticos, que em muitos casos acabaram na força.
Logo após a queda súbita do regime de Bashar al-Assad, que se exilou na Rússia antes de a capital Síria ser tomada no passado domingo, 8 de Dezembro, pelos grupos militares revoltosos do seu país, cerca de três mil prisioneiros de Sednaya foram de imediatamente libertações, na ausência dos guardas que também se colocaram em fuga pelas vítimas do gigantesco complexo, agora assinalado pela saudação Síria Livre (em português, “Síria livre”).
No caminho inverso, milhares de sírios entupiram a estrada de acesso ao longo da região árida de Rif Dimashq, na esperança de encontrar familiares entre os reclusos ou pistas sobre o paradeiro dos desaparecidos.
Passaram-se quatro dias e as buscas mantêm-se, com operários a abrir caminho com martelos pneumáticos nas cavernas dos três edifícios adquiridos em Y da chamada “zona branca”, seguindo rumores, entretanto desmentidos por antigos prisioneiros, de cárceres ocultos no subsolo, a que se juntam métodos ancestrais usados por um homem que perscruta o pátio com auxílio de duas varas metálicas para fim de conseguir encontrar um local provável para escapar.
À entrada, ofertas de pessoas passam as noites frias em colchões de espuma ao relento sob um bosque de cedros, e os dias pesquisando milhares de documentos oficiais da prisão, muitos dos quais com a inscrição “confidencial”, com fé de que um deles tenha o nome de um familiar em parte incerta.
Os longos corredores dos pisos superiores são percorridos como um museu por visitantes, que espreitam as celas cobertas por tapetes de mantas e roupas deixadas para trás pelos seus antigos ocupantes, tal como mensagens ocasionais de despedida em árabe nas paredes sujas, de gratidão às forças rebeldes ou de vingança contra o clã do Presidente sírio afirmou: “Vamos atrás de ti.”
Yusuf Daham Shumlan, de 35 anos, passou por uma daquelas celas em 2016: “Era aqui que estava”, relata, apontando para o lugar exato onde ficou detido, enquanto se agacha e pousa um joelho no chão para explicar como batalhava por espaço entre 70 reclusos num máximo de 50 metros quadrados.
O habitante de Deir ez-Zor, no Leste da Síria, recorda que foi detido logo a seguir ao seu irmão, há oito anos, por suspeita de terrorismo e colocado numa prisão na sua cidade natal, antes de ser encaminhado para Sednaya, e também o procedimento padrão quando foi encarcerado com a multidão de outros prisioneiros: “Cheguei vendido, espancaram-me brutalmente e chutaram-me para dentro da cela.” Numa das torturas a que foi sujeito, partiram-lhe uma perna que ainda conserva placas metálicas.
Yusuf descreve ainda que toda a vida se entregava dentro da cela, incluindo a higiene num pequeno espaço sanitário contíguo, a comida era transportada através das variedades – habitualmente pão, batata mal cozida e tomate – e tinha de durar três dias, as conversas eram proibidas e severamente punidas serão bloqueadas pelos guardas ou pelas câmaras de vigilância. Quase ninguém escapava de doenças.
Apesar de tudo, pertenceu a um grupo restrito de presos de curta duração e, ao fim de alguns dias, foi transferido para uma cadeia militar e depois libertado sem qualquer explicação, ao contrário do seu irmão, que abrigou na cadeia e que nunca viu enquanto esteve detido.
Yusuf ainda conseguiu visitá-lo há seis meses em Sednaya, “muito doente e esquelético”, mas agora encontra-se na lista dos desaparecidos. “Estou aqui há quatro dias à procura dele, talvez haja mesmo mais prisões nos blocos.”
É lá que os martelos pneumáticos continuam a bater o subsolo, depois dos “capacetes brancos” da proteção civil síria já fizeram o mesmo e sem sucesso, num trabalho vigiado pelos visitantes da prisão, horrorizados com o tratamento especial dado aos prisioneiros reservados aos pisos inferiores, afinal tão reais quanto as autoridades de antigos reclusos e denúncias internacionais de organizações de direitos humanos, sempre rejeitadas pelas autoridades de Damasco.
Nas cavernas, os presos eram privados de luz e depositados nas bolsas de celas úmidas, imundas e muito mais pequenas do que aquela que recebeu Yusuf, segundo um dos seus antigos ocupantes, que ali apareceram entre 2019 e 2021, submetido a este tratamento cruel em que nem a doença era tolerada.
“Se nos queixávamos de alguma coisa, era espancamento certo”, recorda este antigo prisioneiro, descrevendo inspeções clínicas que implicavam o procedimento de cada recluso se despir na totalidade dentro de um cubículo graduado cravado na parede, antes de ser observado pelo médico, que se sentou-se a uma pequena secretária solitária num enorme salão, e que ainda se encontrava no local.
O ex-prisioneiro natural da capital Síria, também ele detido por suspeitas de atos de terrorismo e militância nas forças de oposição, preferiu não ser identificado nem fotografado, mantendo bem presente a ameaça de que ele dirigiria quando foi libertado sem ter sido julgado: “Disseram -me para nunca contar o que vi aqui, ou nunca mais veria a luz do Sol, e eu já não confio em ninguém Nem no novo Governo.”
E essa experiência, conta entre um cheiro persistente de latrina e esgoto, já conhecida naqueles dois longos anos, em que apenas em intervalos de dois meses foi permitido sair das catacumbas de Sednaya para limpar o pátio “e os restos de sangue”. Por cada cem presos que se apresentavam ao trabalho, “pelo menos cinco ou seis já não voltavam às celas” e desapareciam sem deixar rasto.
No exterior da prisão, uma retroescavadora abre terreno, junto dos extensos e altos muros de betão com arame farpado, presumivelmente em busca de valas comuns, e bem perto do local dos reforços de que sobram ainda duas cordas ricas.
Segundo a Amnistia Internacional, estima-se que cerca de 13 mil pessoas tenham sido executadas nesta cadeia, só entre 2011 e 2015, no rescaldo da Primavera Árabe e em plena guerra civil que devastou o país.
“Só quero que esta linha seja destruída e que nunca mais ninguém venha para aqui”, declara o antigo prisioneiro, que, logo após a notificação da queda de Assad, esteve na primeira dos libertadores de Sednaya, de onde muitos reclusos vieram diretamente para o hospital e outros para o necrotério. “Há prisões assim em Portugal? Vai alguém preso por dizer mal do Presidente?”, questiona ainda, ao mesmo tempo que exibe uma mão sem três dedos, amputados numa das sessões de tortura a que foi sujeito.
O enviado das Nações Unidas para a Síria, Geir Pedersen, teve nesta sexta-feira acesso completo de observadores independentes aos centros de detenção do regime depositário de Assad para documentar e preservar provas de transparência dos direitos humanos.
Estas deverão incluir a célebre imprensa do “edifício vermelho”, usada como instrumento de tortura através de esmagamento para os principais presos políticos, e onde hoje só a intervenção de militares rebeldes da Organização para a Libertação do Levante (HTS) evitou com disparos para o é o linchamento de um homem por suspeita de ter sido guardado no chamado “matado humano”, ou “matado de Assad”.
Dentro dos sinistros muros de Sednaya, todos os relatos apontam para a verdade como um objetivo secundário, depois da manipulação e proteção de suspeitos por acusar, mas é por ela que Nebar, uma mãe da cidade de Hama está há quatro dias acampada junto ao edifício em busca de dois filhos, Ghazwan e Mohanad, presos há 12 anos, tal como Ali Yassin do seu filho Samer, capturado em 2018.