Segunda-feira, Novembro 25

A Joana e a minha filha, concluo, são muito parecidas. A Joana tem quarenta anos, a minha filha, dezasseis. São ambas filhas únicas e muito discretas. Têm as suas fragilidades, mas ao recuarem na exposição gratuita, ganham força.

Poucas vezes houve em que tendo pedido à minha filha para a fotografia, ela acedeu. Podia querer ter um lugar, na minha pequena escala de visibilidade, que a seduzisse. Nada. Em vez disso, avaliei os meus critérios, e, das poucas vezes em que ousei mostrá-la foi perante uma negociação árdua e que me levou a repensar valores. A minha filha sente um quase desprezo por essa visibilidade. Na sua timidez construiu o seu mundo particular. E admiro-a, cada vez mais. Já eu, neste caminho de quem viveu os anos oitenta e se deslumbrou com o advento da Internet, sucumbi a uma certa visibilidade. Não dou a cara por nenhum creme que não use. Aliás, nunca vesti nenhuma camisola se não for minha. Repugna-me a facilidade com que as pessoas se vendem por um paladar que os rejeita, mas temo que seja eu a estar errado.

As pessoas vivem, cada vez mais, sem critérios. Engolem sem saborear. Não distinguem a necessidade da gula, E isso, inquina tudo. Como poderemos avaliar o que quer que seja se confundirmos prioridades? Se a carência atrai o folclore. Já ninguém quer saber do original ou da cópia. Vamos todos na mesma enxurrada. A abundância não permite o sorteio.

A minha filha (admiro-a muito) escolhe. Identifique. Reconhece-se. A Joana também. Escuda-se na sua timidez e recua perante o fogo-de-artifício. “Não quer?” Ela diz que não. Mesmo que seja tentado por isto e por aquilo. Somos todos, mas uns não aguentam a oferta. É isso. Nós estamos numa era maldita em que não aguentamos a oferta. Sucumbimos. É uma fraqueza que nem sempre nos identificamos.

Não sei se aqui, neste espaço, já falei do meu preço pela cantora Sade. Já falei muitas vezes da minha devoção por ela. Até do tempo em que não era legal gostar da sua música. Em que eu parecia antiga por gostar de uma coisa que teve os seus dias. Depois disso, até quem não a viveu, passou a admirar e ela mantém-se hoje em dia como uma musa ímpar, sem mácula.

O que é que aconteceu a essa mulher enigmática, talentosa e bonita (na mesma proporção) para emergir numa altura de fogo-de-artifício? Soube retirar-se e essa talvez seja a maior e melhor lição que preservar sem que necessariamente a prática (ainda). Sade foi disruptiva na década de oitenta aparecendo como uma mulher que se escudava na sua voz e elegante sem nunca querer ofuscar ninguém. E nós sabemos como os anos oitenta foram um carrossel de coração e euforia. Sade recuava quando outros teimavam em furar. E depois de conquistar milhões com a sua moda, retirou-se mesmo. Teve um, doisdesgostos de amor. Não foi amado na proporção do que deu, mas depois da maternidade e de avaliar o custo de aparecer e do preço que isso lhe trazia, isolado. Há dias apareceu com uma nova canção, pedindo desculpas ao filho por não o ter compreendido na transição de sexo. Este detalhe não é, neste caso, relevante para a mensagem que gostava que ficasse. Quando estou triste e sem rumores, você vê fotografias e ouve as canções de Sade. É uma bussola. Uma coisa sem tempo que me lembra do essencial. A escolha em detrimento da falsa abundância.

Eu sei que é preciso cautela quando falamos de abundância porque há quem nunca a tenha conhecido. Mas a abundância transtorna-nos. Amaldiçoa a escolha. Eu quero lutar apenas pelo essencial.

Olho para a minha filha e para a Joana. A Joana poderia ser mãe dela. São, acredito, critérios na escolha, com erros já no percurso. Até no da minha filha que ainda agora começou. Ambos me dizem que não querem ver-se expostos. Admiro-as nessa capacidade de dizer que não. Também não me penitencio por escolher dizer que sim aquilo em que acredito. São caminhos válidos. Mas não cedemos. Não trocamos a nossa integridade por um cupão com bebidas grátis.

As três gostamos de Sade.

O coração ainda bate.

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