Sábado, Outubro 19

“Estas vão ser eleições muito, muito renhidas, e não apenas para a presidência”

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Quando os norte-americanos forem às urnas no próximo dia 5 de novembro, não vão eleger apenas o próximo Presidente dos Estados Unidos da América. Em disputa estarão também 468 assentos no Congresso – o total de 435 que compõem a Câmara dos Representantes e 33 dos 100 lugares do Senado – e os resultados dessas votações terão enormes implicações numa série de políticas federais, que vão dos impostos às nomeações para diferentes tribunais do país, passando por questões de política externa.

“A minha aposta neste momento é que os republicanos vão conquistar suficientes assentos a votos no Senado para obterem a maioria, talvez por um, dois ou até três lugares”, diz à CNN Portugal Paul Beck, do departamento de Ciência Política da Universidade Estatal do Ohio, que antecipa “que os democratas vão ganhar ligeiramente mais assentos e tornar-se o partido maioritário na Câmara dos Representantes, ainda que por uma margem reduzida”.

Atualmente, os republicanos controlam a câmara baixa do Congresso e os democratas detêm uma curta maioria de assentos no Senado, com 51 contra 49, graças a um punhado de senadores independentes alinhados com o partido de Kamala Harris. Naquelas que estão a ser definidas como as mais renhidas eleições na América desde 1860, é improvável que qualquer dos partidos conquiste um hat-trick federal, sagrando-se campeão da Casa Branca e das duas câmaras do Congresso, como aconteceu com os democratas ao leme de Barack Obama entre 2008 e 2010 e, mais recentemente, ao leme de Joe Biden entre 2020 e 2022.

Face à previsões de uma potencial vitória dos democratas na Câmara dos Representantes, e dada a provável troca num assento da Virgínia Ocidental no Senado até agora ocupado pelo democrata Joe Manchin III – cuja reforma deverá levar os republicanos a conquistar esse lugar – as atenções estão particularmente focadas num único assento do Montana que pode virar o tabuleiro do jogo na câmara alta do Congresso.

Os dois partidos reconhecem a importância do lugar a ser disputado entre o democrata Jon Tester, um agricultor de terceira geração do Montana, de 68 anos, e o republicano Tim Sheehy, um militar tornado empresário de 37 anos nascido fora do estado do norte dos EUA – e é por isso que, apesar de só representar quatro votos no Colégio Eleitoral, os dois partidos têm estado a investir muito dinheiro ali, num total que ronda os 270 milhões de dólares em publicidade de campanha. 

“Tudo indica que os republicanos vão conquistar o Senado se conseguirem ganhar no Montana, o que parece provável”, diz à CNN Portugal Robert Y. Shapiro, do departamento de Ciência Política da prestigiada Universidade de Columbia. Ainda assim, adianta o especialista, “se a eleição presidencial for decisiva para qualquer dos partidos, isso dará uma hipótese igual a ambos de controlarem o Senado e a Câmara para além da presidência. Estas vão ser eleições muito, muito renhidas, e não apenas para a presidência.”

Tudo de olhos postos no Montana

Muitos residentes do Montana estão a pender para Sheehy, mesmo que a contragosto. É o caso de Wylie Gustafson, um fazendeiro e músico de 63 anos que, ao longo de várias eleições para o Senado, e apesar de o Montana ter vindo a tornar-se mais e mais republicano a cada uma delas, deu sempre o seu voto a Tester desde a primeira vitória do democrata em 2007 – mas que, este ano, diz que vai votar no candidato republicano, não sem “um pouco de culpa” porque “o Jon é um bom rapaz”, referia o eleitor ao Washington Post há alguns dias.

Inquéritos de opinião indicam que Tim Sheehy, aqui fotografado com Donald Trump, vai conseguir roubar o assento do democrata Jon Tester no Senado, o que pode ditar a perda de maioria dos democratas na câmara alta do Congresso Foto: Rick Bowmer/AP

Houve uma altura, refere o mesmo jornal, em que o Senado tinha muitos membros eleitos como Tesler – graças a eleitores que votavam num senador de um partido apesar de votarem no candidato à presidência do partido oposto. Nos últimos anos, contudo, com o reforço das políticas identitárias e da polarização político-partidária, têm sido cada vez mais raros os casos de eleitores com voto dividido nos Estados Unidos, sendo cada vez comum um eleitor votar sempre vermelho ou azul (leia-se, Partido Republicano ou Democrata) de uma ponta à outra (leia-se, da presidência às eleições para as duas câmaras do Congresso).

É aquilo a que Shapiro se refere como votos “coattails”, um efeito bola de neve em que a popularidade na corrida à Casa Branca se traduz em mais votos no partido do vencedor presidencial nas corridas ao Senado e à Câmara dos Representantes, o que este ano promete reconfigurar o equilíbrio de poderes nos EUA.

Num ano de eleições “muito, muito renhidas” também para o Congresso, o analista de Columbia assume que “a eleição para a Câmara dos Representantes será à tangente”. Os democratas, adianta Shapiro, “parecem estar em rota para conquistar assentos suficientes” para obterem a maioria, fruto do que ele e outros especialistas dizem ser “a total desordem entre os republicanos na câmara baixa”. Mas é aí que os ditos “coattails” e, concretamente, a disputa senatorial entre Tesler e Sheehy, podem contribuir para surpresas.

Com Donald Trump a registar no Montana, de acordo com várias sondagens, uma vantagem de entre 17 e 18 pontos percentuais sobre Kamala Harris na corrida à Casa Branca, muitos eleitores do estado dizem sentir-se desconfortáveis com políticas seguidas pelos democratas, como o facto de terem votado pela destituição do antigo presidente nos dois processos de impeachment que tiveram lugar no Congresso desde 2016 – ou, no caso de Wylie Gustafson, o facto de Tester ter votado a favor de um pacote de mil milhões de dólares para adaptar infraestruturas às alterações climáticas, que foi apresentado pelos democratas e negociado com os republicanos.

Em tempos um estado roxo, pela enorme divisão de votos entre os dois grandes partidos nas diferentes eleições, o Montana vai mostrar nesta ida às urnas se se tornou definitiva e maioritariamente republicano, desde que o assento de Tesler foi a votos pela última vez, em 2018, a meio do primeiro mandato de Trump – quando o senador democrata venceu com uma margem de 3,5 pontos percentuais.

Uma bala perdida no tribalismo

Segundo os mais recentes inquéritos de opinião, Sheehy, um ex-SEAL da Marinha norte-americana tornado milionário que se mudou para o Montana há 10 anos, onde fundou uma empresa de combate aéreo a incêndios, detém uma vantagem de sete pontos percentuais sobre Jon Tesler. E com o Montana em risco, o Partido Democrata tem estado a investir milhões de dólares em campanhas a assentos do Texas e da Florida no Senado, na esperança de recuperar assentos atualmente ocupados por republicanos, para compensar a provável perda do senador do Montana e manter a maioria na câmara alta.

Noutra altura, a perda daquele assento não seria assim tão certa tendo em conta as incongruências na carreira de Sheehy, inicialmente noticiadas por jornais do Montana e abordadas numa peça publicada pelo New York Times na sexta-feira, que põem em causa uma história de guerra que o republicano tem usado para conquistar a admiração – e os potenciais votos – dos eleitores do estado. 

O democrata Jon Tester num comício de campanha com a Planned Parenthood, que defende o aborto e o acesso a contracetivos; há analistas que dizem que o facto de o direito ao aborto também estar nas urnas no Montana no próximo dia 5 de novembro pode trazer surpresas à corrida ao assento do Senado que Tester ocupa desde 2007 Foto: Matthew Brown/AP

Em “Mudslingers: A True Story of Aerial Firefighting (An American Origins Story), autobiografia do candidato publicada em dezembro passado, Sheehy conta que ficou com uma bala alojada no antebraço quando integrava uma equipa de SEALs da Marinha destacada no Afeganistão, uma versão dos acontecimentos que tem mantido ao longo da campanha eleitoral. Mas essa bala, ilustração de uma vida de honra e bravura que tem contribuído para a sua credibilidade na corrida ao Senado, pode não ter vindo de fogo inimigo – e, em vez disso, ser um ferimento auto infligido, segundo um relato feito pelo próprio Sheehy à polícia do Montana após um incidente no Parque Nacional Glacier, três anos antes de ter sido destacado para o Afeganistão, quando reportou às autoridades que tinha atingido o próprio braço com uma arma de fogo.

Numa corrida tão renhida como a do Montana, no contexto de umas eleições ainda mais renhidas, esta não é a única incongruência na história que Sheehy tem contado sobre si próprio. Em comícios de campanha, o republicano referiu que lida diariamente com vários problemas médicos, incluindo uma doença cardíaca descoberta durante um treino militar de mergulho, que o obrigaram a abandonar os SEAL, “algo que queria fazer para o resto da vida”. Mas no seu livro, Sheehy diz que a Marinha lhe propôs “um período de recuperação e avaliação” antes de voltar ao ativo, após o qual ele próprio optou por abandonar os SEAL.

“Já não estava interessado em seguir esse percurso sem saber se poderia regressar ao estado operacional”, escreve o candidato a senador. Documentos mostram que, depois de ter transitado para o corpo de reserva da Marinha, foi dispensado das forças armadas com uma “separação involuntária” após não ter conseguido uma promoção para subir de posto.

De acordo com uma investigação do jornal local Daily Montanan, o livro de Sheehy contém ainda pelo menos quatro excertos de aparente plágio, mas até isso pode não servir de muito para alterar as peças do tabuleiro na disputa pelo Senado. Apesar de, em conjunto com as incongruências, o plágio mostrar um padrão de “desonestidade”, é preciso ter em conta uma série de fatores, a começar pelo facto de o grupo demográfico mais alinhado com o candidato republicano ser composto por pessoas sem cursos superiores que tendencialmente leem menos livros, indica Paul Pope, especialista em Ciência Política da Universidade Estatal de Montana-Billings.

Citado pelo Daily Montanan, Pope diz que o atual clima político de extremas divisões e tribalismo, em que “todos os que estão do outro lado são inimigos”, faz com que aqueles que apoiam determinado candidato ignorem deliberadamente notícias menos favoráveis sobre ele. A campanha de Sheehy também tem optado por ignorar essas notícias e isso, aponta o especialista, faz parte do cálculo político neste contexto.

“Quanto menos falarem sobre isto, menos atenção atrai. Eles estão à espera que as pessoas se esqueçam disto, porque assim que ele começar a falar sobre o assunto ficará à defesa. É uma coisa que exige grande disciplina política e nem todos os políticos o conseguem fazer, acabam por ser apanhados desprevenidos”, diz Paul Pope. E no caso das dúvidas sobre a história de Sheehy – apesar de tudo menos impactantes do que o escândalo recente envolvendo o republicano Mark Robinson, candidato a governador da Carolina do Norte – tudo pode acontecer. “Pode ser um mero soluço. Ou então pode destruí-lo.”

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