Quinta-feira, Outubro 24

A morte de um homem às mãos da polícia foi o rastilho para uma onda de violência e desacatos nas ruas de vários bairros na região da Grande Lisboa. Especialistas em Sociologia e Psicologia Social consideram que estes acontecimentos são resultado de anos de marginalização, pobreza, falta de saúde mental e delinquência

As últimas noites têm sido de enorme tensão em vários bairros da Grande Lisboa. A morte de Odair Moniz, na Cova da Moura, na madrugada de segunda-feira, foi o rastilho para dezenas de ocorrências de violência, carros queimados, autocarros roubados e até ferimentos e intimidação de pessoas que não tinham qualquer relação com os acontecimentos. Sociólogos e psicólogos sociais ouvidos pela CNN Portugal não esperam que estes episódios perdurem no tempo ou se alastrem muito no espaço e são unânimes em afirmar que a morte de Odair foi uma espécie de “gota de água”, que fez “transbordar o copo” da “insatisfação com a desvantagem que é viver nas periferias”.

“Estes episódios de violência são o resultado do mal-estar existente nas comunidades. Um mal-estar ligado a problemáticas como a pobreza, falta de saúde mental, tráfico de droga, bairros sociais…”, considera André Tavares Rodrigues, psicólogo social e professor de psicologia.

Análise que vai ao encontro da revolta na voz de José Falcão, ativista da associação SOS Racismo. “O que está por trás desta violência é o Estado. É a forma como a polícia olha para estas pessoas, como trata estas pessoas. O rastilho são todas as frustrações que as pessoas têm nos bairros e a forma como estas pessoas são tratadas nestes bairros. A falta de transportes públicos durante a noite, o isolamento a que estão votados. Estas pessoas são desprezadas na escola, atiradas para fora da escola. Porquê? Porque as escolas têm inúmeros problemas e a culpa não é dos professores. É a falta de investimento do Estado na Educação. Há uma marginalização das pessoas”, diz à CNN Portugal.

José Falcão fala num “sistema que é racista” e “não é só contra a comunidade africana”. “É contra a comunidade cigana, contra a comunidade imigrante”, argumenta.

O sociólogo Jorge Malheiros sublinha que a vida nos bairros da periferia de Lisboa “junta uma desvantagem social de acesso ao emprego, de precariedade, com a desvantagem racial”. “São a expressão espacial da desigualdade”, considera.

“Se ouvirmos as associações dos bairros, isto já lá estava”, acrescenta.

Um ‘I can’t breath’ português?

O paralelismo entre o que está a acontecer na região de Lisboa com a violência que se seguiu à morte de George Floyd, nos Estados Unidos, é inevitável. Em ambos os casos, o episódio que desencadeou a violência resultou na morte de um homem negro às mãos de um polícia branco.

“É sempre possível estabelecer essa observação mimética. No caso dos Estados Unidos, também houve distúrbios significativos. Mas há mais casos. Há uns anos, na zona de Londres, também na sequência de uma intervenção policial, houve distúrbios de uma dimensão até aí desconhecida”, recorda Paulo Machado, sociólogo, especialista em demografia.

Mas o especialista lembra que pouco se sabe sobre os indivíduos que estão a provocar os desacatos. “Desconhecemos a composição do grupo ou dos grupos. Estamos a fazer uma suposição de que se trata de gente daqueles bairros, com uma forte ligação identitária com a vítima. Mas temos pouca informação por via da polícia e pouca informação por via dos moradores. É um grupo de pessoas que incendiou, que arremessou pedras… Mas que pessoas são essas?”, questiona, lembrando que é provável “serem pessoas que nada tenham a ver com o bairro” e relembra episódios “como o que aconteceu há uns anos em Setúbal, no Bairro da Bela Vista, ou em Loures, há 7 ou anos”, em que “eram pessoas que nada tinham a ver com o bairro e usaram o bairro como veículo”.

Paulo Machado não descarta, assim, a hipótese de os protagonistas dos desacatos das últimas noites estarem apenas a aproveitar o incidente que levou à morte de Odair Moniz para espalhar violência. “Isto não é alimentado pelas pessoas próximas da vítima. Não me parece que a revolta saia do núcleo próximo da vítima, do pai, do primo, do tio… Não é a revolta de uma família, de uma rua ou de um prédio. São movimentos mais ou menos inorgânicos que se estão a aproveitar”, analisa Paulo Machado.

Na primeira noite, a violência cingiu-se à Cova da Moura, onde Odair foi baleado pela polícia, e ao bairro do Zambujal, onde vivia. Na segunda noite, os desacatos estenderam-se a outros bairros de Oeiras, Cascais, Sintra e Lisboa. Teme-se que se alastre a outros locais, embora os especialistas ouvidos pela CNN Portugal considerem que não deve acontecer.

“Estas questões estão ligadas ao incidente que as desencadeia, mas normalmente não perduram, nem escalam. (…) Que se estenda a outras regiões do país, tenho muitas dúvidas. Não vejo noutras regiões o ‘caldo’ sociológico para que isto se propague. Na Grande Lisboa, talvez… Eventualmente mais um incidente ou outro na linha de Sintra”, considera o sociólogo Paulo Machado.

“Em cima do acontecimento, que tinha 24 horas na primeira noite de violência, ainda só passaram 48 horas. Salvo melhor observação, diria que o potencial de disparate atingiu o seu máximo na última madrugada. Admito que o dia do funeral da vítima possa ser um dia tenso, mas não creio que se prolongue muito mais no tempo”, diz ainda o especialista.

José Falcão, da SOS Racismo, não está tão otimista. “Não sou adivinho, mas as condições estão lá”, diz, sublinhando de novo as condições de ostracização a que estão votados os moradores dos bairros das periferias.

Discursos radicais

Do que os especialistas ouvidos pela CNN Portugal não têm dúvidas é do “aproveitamento” que algumas franjas poderão fazer da situação. “A probabilidade de haver um aproveitamento é enorme e esse aproveitamento pode, ele sim, alimentar a violência. O discurso de ódio é assimilado na rua da maneira que as pessoas entendem que deve ser. E a resposta é normalmente violenta”, alerta Paulo Machado.

“No meio deste alarmismo e movimentos em massa, rapidamente há movimentos políticos e radicais que se associam à verdadeira causa, que é a pobreza social e até a falta de saúde mental”, corrobora o psicólogo André Tavares Rodrigues.

Esta quarta-feira, ouvimos um apelo emocionado de Gilberto Pinto, presidente da associação de moradores do Bairro do Zambujal, à “calma” e à “paz”. “Eu só quero fazer um pedido a todas as pessoas para que este clima acabe. (…) Há crianças com três ou quatro anos que não querem sair de casa. Pessoas brancas, de etnia africana, de etnia cigana, que têm medo de sair de casa. Pessoas que estão aterrorizadas com esta situação. Queria apelar a todas as pessoas e às autoridades que se unam para que a calma regresse ao bairro”, disse, numa conferência de imprensa improvisada, numa rua do bairro.

“Nós temos aqui um homem que foi assassinado. A primeira noite foi um sentimento de revolta desta gente toda. Mas temos de respeitar a lei e a ordem. As pessoas do bairro do Zambujal são pessoas honestas e trabalhadoras”, sublinhou.

O sociólogo Jorge Malheiros considera que um discurso pacificador com o de Gilberto Pinto é fundamental para travar a onda de violência. Para o especialista, o fim dos desacatos “depende muito da resposta que for dada, por parte das autoridades, governo e autarquias”. “Se houver uma resposta prudente e capaz de acalmar ânimos, se esse discurso passar e conseguir ganhar o discurso e a prática das associações dos bairros, podemos ter mais focos de violência, mas acredito que não perdurarão. Agora, se não houver um discurso eficaz, gerador de paz e de pontes, poderá escalar”, explica.

O psicólogo André Tavares Rodrigues sublinha também que é preciso usar a voz que os líderes associativos como Gilberto Pinto têm nos bairros: “Se eu for lá dizer alguma coisa, ninguém me ouve. Se for dada voz a alguém de referência dentro da comunidade, a quem reconheçam autoridade. É preciso apoio psicológico. Alguém dentro da comunidade que possa ser o mediador entre a paz social e a paz interior.”

Fazer o luto

Gilberto Pinto, como outros moradores ouvidos pela comunicação social, mostra-se incapaz de identificar os instigadores da violência e aqueles que a levam a cabo: “Eu não posso estar a identificar pessoas que não conheço.” Muitos atuam mesmo de cara tapada para não serem identificados.

Quem Gilberto Pinto conhecia bem era Odair, que “até era voluntário” na associação de moradores, e a família em luto. “A viúva ainda está em choque. Não diz coisa com coisa”, revela aos jornalistas, depois de uma visita que fez à família.

É também para a família de Odair Moniz que vão as palavras do psicólogo André Tavares Rodrigues. “Temos de pensar na pessoa que morreu e na família. É importante transmitir a estas pessoas o direito a terem luto. Estas pessoas precisam de entender o que aconteceu para que a revolta não gere mais revolta. Esta família e esta comunidade precisam de paz. E não conseguem encontrar essa paz neste momento de confusão mediática e de episódios de violência”, sublinha.

O psicólogo considera que a onda de violência “ficará resolvida se houver mecanismos de defesa”, quer individuais, quer sociais, “mas é como uma ferida, que se não for tratada, ficará sempre lá”.

Para o especialista, é preciso, depois de passada a tempestade, uma “reflexão acima de tudo técnica”. “É preciso refletir, com planos estratégicos fundamentados. Estas comunidades são esquecidas durante o ano inteiro. E agora é que toda a gente está preocupada com eles. É preciso olhar para estas comunidades e pensar a relação entre saúde mental, pobreza social e delinquência”, adverte.

A morte de Odair Moniz, na madrugada da última segunda-feira, deu origem a uma onda de violência que resultou em vários veículos incendiados, desacatos e episódios de violência em vários bairros da Grande Lisboa. Uma equipa da CNN Portugal foi ameaçada e correu perigo enquanto estava em reportagem. 

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