Sexta-feira, Outubro 18

Há já algumas confirmações, outras tantas negações e ainda muitas dúvidas. As duas autoras do relatório que colocou a nu o caso das gémeas falam hoje

Um ano após os primeiros contactos que resultaram no tratamento das gémeas lusobrasileiras com o Zolgensma no Hospital Santa Maria, em Lisboa, são esta sexta-feira ouvidas na comissão parlamentar de inquérito (CPI) Marta Gonçalves e Maria de Lurdes Lemos, na qualidade de inspetoras da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde e autoras do relatório, conhecido no início de abril.

Este documento serve de mote para a chamada à Assembleia da República dos principais protagonistas neste caso, incluindo o antigo secretário de Estado António Lacerda Sales, Nuno Rebelo de Sousa, à data presidente da Câmara do Comércio de Lisboa em São Paulo, Teresa Moreno, neuropediatra que acompanhou e tratou as bebés, e ainda os funcionários da Casa Civil da Presidência e dos gabinetes da secretaria de Estado da Saúde.

No seu relatório, a Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) defende que a Secretaria de Estado da Saúde, o Hospital de Santa Maria e o Infarmed agiram de forma irregular em todo este caso, contornado regulamentações e leis para facilitar o acesso das gémeas lusobrasileiras ao tratamento com o Zolgensma, à data o medicamento mais caro do mundo. Há factos já confirmados nas audições e ainda outros tantos por esclarecer.

O que diz o relatório

Filho de Marcelo envia e-mail ao pai

No dia 21 de outubro de 2019, Nuno Rebelo de Sousa envia um e-mail ao seu pai, o Presidente da República, no qual solicita a sua intervenção para o caso das crianças gémeas lusobrasileiras diagnosticadas com atrofia muscular espinhal (AME). Entre esse mesmo dia 21 e 31 de outubro, o relatório diz que foram “trocadas várias comunicações entre o chefe da Casa Civil do Presidente da República, a assessora para os Assuntos Sociais Sociedade e Comunidade e Nuno Rebelo de Sousa”, tendo sido solicitados e fornecidos pontos de situação sobre o estado das bebés. 

Casa Civil remete comunicações para gabinete de Costa, que chuta para o gabinete de Sales

No dia 31 de outubro, a Casa Civil remete as comunicações trocadas com Nuno Rebelo de Sousa para o gabinete do primeiro-ministro, na altura António Costa. O filho de Marcelo é informado sobre o encaminhamento da correspondência, que é enviada, uma semana depois, para a chefe do gabinete da ministra da Saúde, à data Marta Temido.

Há um encontro entre Nuno Rebelo de Sousa e Lacerda Sales

Um dia depois de os e-mails terem chegado ao Ministério da Saúde, o então secretário de Estado da Saúde, António Lacerda Sales (constituído arguido neste caso), reúne-se com Nuno Rebelo de Sousa, encontro que aconteceu a 7 de novembro de 2019 e à margem da Web Summit, em Lisboa.

Pedido da consulta teve origem na secretaria de Estado

O relatório do IGAS diz que, entre os dias 7 e 20 de outubro de 2019, Lacerda Sales dá o contacto telefónico de Nuno Rebelo de Sousa à sua secretária pessoal, Carla Silva, com indicação de que contactasse telefonicamente a mesma. Nesse mesmo espaço de tempo, Carla Silva envia um e-mail à diretora do Departamento de Pediatria do CHULN com a informação das gémeas.

Santa Maria dá ‘luz verde’ à consulta

Entre os dias 22 e 28 de novembro, a neuropediatra Teresa Moreno recebe indicação da diretora do departamento para proceder à marcação de consulta no Santa Maria, já com a concordância do à data diretor clínico, Luís Pinheiro – entretanto constituído arguido neste caso.

Consulta marcada à revelia da lei

A primeira consulta das bebés no Santa Maria acontece a 5 de dezembro de 2019, mas sem que as bebés estivessem presentes. Nessa consulta estiveram o pai e um tio das bebés. O relatório refere que as crianças acederam à terapêutica à revelia das regras de referenciação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), uma vez que chegaram ao Santa Maria não por referenciação médica (pública ou privada, como indica a Portaria n.o 147/2017, de 27 de abril), mas por indicação da secretaria de Estado, como escreveu a médica Teresa Moreno na ficha clínica das bebés.

Aprovação do medicamento feita de forma irregular

A 24 de janeiro de 2020, a médica Teresa Moreno considera que as gémeas reúnem os critérios para receber o medicamento Zolgensma. Cinco dias depois, a neuropediatra faz o pedido de autorização para tratamento com o fármaco à Comissão de Farmácia e Terapêutica (CFT) do Infarmed. Nesse mesmo dia, é o próprio diretor clínico quem remete ao Infarmed a “documentação relativa a três crianças”, tendo como objetivo “agilizar o processo de obtenção” do medicamento.

Essas três crianças incluíam as bebés lusobrasileiras e uma outra cuja identidade não foi revelada. Mas, nessa altura, os pedidos ainda não tinham sido submetidos na plataforma SIATS (Sistema de Informação para Avaliação de Tecnologias de Saúde). Segundo o relatório, os dois pedidos para as gémeas foram submetidos na plataforma do Infarmed a 2 de março de 2020, tendo a autoridade do medicamento dado luz verde no dia seguinte. Diz o relatório que “os pedidos (…) não seguiram o circuito de aprovação e validação dos pedidos de AUE [Autorização de Utilização Excecional], nos termos do previsto no n.º 1 do artigo 11.º do Regulamento”.

As crianças receberam o medicamento nos dias 23 e 25 de julho desse ano.

O que já se sabe

Dias depois de a TVI (do mesmo grupo da CNN Portugal) ter revelado o caso das gémeas lusobrasileiras – e após ter garantido que não se recordava -, o Presidente da República confirmou que recebeu um e-mail do seu filho a propósito da situação das gémeas. A circulação desse contacto eletrónico foi confirmada por Fernando Frutuoso de Melo, chefe da Casa Civil da Presidência da República, que admitiu ainda que omitiu ao Governo que o pedido para o tratamento das bebés tinha sido feito por Nuno Rebelo de Sousa, filho do Presidente da República. E soube-se ainda que Nuno Rebelo de Sousa pressionou a assessora da Presidência da República, Maria João Ruela, para obter uma resposta ao pedido de intervenção no caso das gémeas, como revelou a própria na sua audição.

Das audições até agora realizadas na comissão parlamentar de inquérito, ficou ainda confirmado que houve um encontro entre Nuno Rebelo de Sousa e António Lacerda Sales no dia 7 de outubro, encontro que precedeu o pedido de marcação de consulta no Hospital de Santa Maria, consulta essa que não respeitou a legislação em vigor. O teor da conversa e a menção do caso das gémeas continua, porém, por esclarecer, havendo discursos contraditórios.

A data da primeira consulta no Santa Maria foi escolhida pela médica Teresa Moreno após contactos da secretaria de Estado da Saúde com o hospital, tal como a própria neuropediatra mencionou e como revelou Carla Silva, secretária pessoal de Lacerda Sales. Marta Temido, ministra da Saúde à data dos factos, reconheceu na sua audição que a marcação da consulta não aconteceu de uma forma “normal”.

Sobre o papel do Infarmed, o presidente do organismo, Rui Santos Ivo, confirma um contacto do Hospital de Santa Maria sobre o medicamento destinado às gémeas (e a uma terceira criança), mas na sua audição negou qualquer “interferência externa”, informando que não falou do assunto com o antigo secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales, com o filho do Presidente da República, Nuno Rebelo de Sousa, ou com o Ministério da Saúde.

Sobre o pedido de nacionalidade para as gémeas, o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) garante que o agendamento da família aconteceu antes do primeiro tratamento contra a atrofia muscular espinhal em Portugal e, já na CPI,a ex-secretária de Estado das Comunidades Portuguesas Berta Nunes garante que a atribuição de nacionalidade às gémeas tratadas no Hospital de Santa Maria “decorreu de forma normal e transparente” e recusou que o processo tenha sido célere, tese corroborada pelo ex-cônsul-geral de Portugal em São Paulo, Paulo Jorge Nascimento, que assegura que o todo o processo de agendamento para a nacionalização das crianças “decorreu normalmente” e nos prazos expectáveis, que não conhece a mãe das gémeas e que nunca Nuno Rebelo de Sousa ou a Casa Civil da Presidência lhe falaram do caso.

O que ainda falta saber

Quem, afinal, deu ordem para marcar a consulta? 

Esta foi a questão que ficou no ar após a última audição, na qual a neuropediatra Teresa Moreno. Aos partidos, a médica que acompanhou e tratou as bebés com o medicamento milionário – e que confidenciou que as bebés eram chamadas “meninas do Presidente” no Hospital – revelou que Ana Isabel Lopes, diretora do departamento de Neuropediatria do Santa Maria, lhe telefonou três vezes para que arranjasse uma data para marcar uma consulta para as gémeas lusobrasileiras, pois Luís Pinheiro, à data diretor clínico e agora arguido neste caso, tinha dito que a ordem vinha “acima da secretaria de Estado”. Carla Silva, secretária pessoal de Lacerda Sales, e quem entrou em contacto com o Hospital Santa Maria depois do encontro entre Nuno Rebelo de Sousa e Lacerda Sales, revelou na sua audição que não fez nada que o secretário de Estado não soubesse, dizendo mesmo que agiu “depois da ordem que recebi do senhor secretário de Estado”.

Nuno Rebelo de Sousa falou ou não sobre as meninas no encontro com Lacerda Sales? 

A possível relação entre Nuno Rebelo de Sousa e Lacerda Sales e como e porquê o primeiro chegou ao contacto com o segundo neste caso concreto é ainda uma incógnita, sobretudo porque ambos recorreram ao estatuto de arguidos para não prestar declarações na comissão parlamentar de inquérito. No entanto, há também dúvidas se Nuno Rebelo de Sousa falou ou não sobre as meninas no encontro com Lacerda Sales. Ora, Nuno Rebelo de Sousa – arguido neste caso – não se pronuncia, Lacerda Sales diz que sim, mas o Tiago Gonçalves, chefe do gabinete de Lacerda Sales, diz que não, que o caso das gémeas não foi mencionado no encontro. À revista Sábado, a empresária Naiara Pereira Paiva, que esteve neste encontro, nega que o assunto das gémeas lusobrasileiras tenha sido falado. 

Também ainda não é certo se houve ou não mais encontros entre Nuno Rebelo de Sousa e António Lacerda Sales a propósito deste caso.

Qual o papel da esposa de Nuno Rebelo de Sousa?

Esta é também uma questão ainda por responder. Juliana Drumond é agente de seguros e há dois e-mails que implicam a nora de Marcelo Rebelo de Sousa, no entanto, ainda não foi ouvida na comissão parlamentar de inquérito e é possível que não o seja. Na impossibilidade de conseguir chegar ao seu contacto, a CPI pediu à Procuradoria-Geral da República “para que, junto de um juiz, no tribunal competente, sejam emitidas duas cartas rogatórias” para Drumond e também para o pai das bebés, mas o Conselho Consultivo do Ministério Público rejeitou enviar tais cartas rogatórias, depois de ter avaliado a situação.

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