Domingo, Outubro 27

Um século antes do colapso do Banco Espírito Santo, já um escândalo financeiro abalava o fim da monarquia revelando os bastidores da promiscuidade entre política e banca. Em 1910, o Crédito Predial Português via-se arrastado para o descrédito, numa história marcada por planos para “maquilhar contas”, desfalques e uma Assembleia Geral onde se ouviu “Ai o dinheiro dos meus filhos!”. No final, o processo judicial “não chegou a beliscar”

Lesados a gritar que “isto é uma ladroeira!” e a pedir a morte de um banqueiro, falsificações de contas para ocultar a fragilidade de um banco que era também uma porta giratória de políticos e um desfalque que levou a justiça a perseguir altas figuras do regime. Todos estes contornos, de uma forma ou de outra, estão nos milhares de páginas do processo do Banco Espírito Santo, mas, há mais de cem anos, existiu um outro banco que caiu na desgraça por tudo isso. “O grande escândalo financeiro do fim da monarquia é o do Crédito Predial Português, o grande escândalo financeiro deste regime é o BES”, aponta o presidente da Frente Cívica e especialista em corrupção Paulo de Morais, acrescentando que os dois casos têm “muitas semelhanças”, mas uma grande diferença a separá-los: “Havia entre o BES e a política uma fortíssima promiscuidade”. “No início do século XX, nem sequer vergonha tinham, os mesmos que controlavam a política controlavam também a banca à vista de todos”.

O nascimento do Crédito Predial Português dá-se num Portugal ainda a digerir as repercussões da Revolução Liberal de 1820. Com as mudanças legislativas que surgem a partir de 1834, a paisagem rural do país muda: as vastas propriedades, antes dominadas pelo poder das Ordens religiosas, são agora desmembradas e dispersas entre novos proprietários. Só que muitos destes proprietários, sem os recursos financeiros robustos do clero ou dos tradicionais senhores de morgadios, deparam-se com a necessidade de financiamento para fazer render os seus terrenos. 

De repente, uma vasta classe de pequenos proprietários emerge, com vontade de modernizar e rentabilizar os seus terrenos, mas com pouca liquidez para o fazer. É nesse contexto que, em 1864, surge o Crédito Predial Português, uma instituição privada desenhada à semelhança do Crédit Foncier francês, com um propósito muito claro: apoiar estes novos proprietários, concedendo-lhes crédito a longo prazo, mas também apoiar projetos municipais ligados à agricultura ou ao urbanismo. 

O Crédito Predial foi beber muita da sua inspiração à banca francesa, mas acabou por escolher um caminho diametralmente diferente para a forma como seria gerido, como explica à CNN Portugal o Procurador-Geral Adjunto Luís Eloy Azevedo, autor de uma investigação sobre a instituição financeira publicada na Revista do Ministério Público, em 2021. “Na verdade, a legislação francesa foi a inspiração da estrutura e do esqueleto do Crédito Predial português, mas nunca em França para o cargo de governador se foram buscar políticos”. 

Em Portugal, acrescenta, “entendeu-se que os altos vultos do Estado dariam à Companhia prestígio e força e, logo de princípio, abriu-se o ciclo de ligar à administração os homens de maior destaque na esfera da governança do Estado”. Com isto, a escolha para os primeiros governadores do Crédito Predial foram exatamente homens que também ocupavam os cargos políticos que sustentavam a Monarquia Constitucional. Entre eles, conta-se o Duque de Ávila e Fontes Pereira de Melo, que assumiram a presidência do Conselho de Ministros ao mesmo tempo que lideraram o banco (o primeiro entre 1864 e 1881, o segundo entre 1881 e 1887).

Esta prática terá sido o “pecado original” do banco, refere o magistrado Luís Eloy Azevedo. “A partir desse começo ‘contaminado’, a mistura entre a esfera governativa e a esfera bancária provocaram inevitáveis confusões e manipulações para fins partidários que muito descredibilizaram a sua atuação”.

O desfalque, a guerra interna e os contos que desapareceram

Gabinete na sede do Crédito Predial Português / Mário Novais (1899-1967), Fundação Calouste Gulbenkian

Após a morte de Fontes Pereira de Melo, a liderança da Companhia Geral de Crédito Predial Português passou para o chefe do Partido Progressista, José Luciano de Castro, que ocupou o cargo entre 1887 e 1910. Luciano de Castro foi, aliás, o autor da legislação que levou à criação daquele banco, quando era deputado. 

Quando este assumiu funções como ministro e Presidente do Conselho, foi o líder do Partido Regenerador, Ernesto Rodolfo Hintze Ribeiro, quem ficou interinamente à frente da Companhia. Assim, progressistas e regeneradores alternaram-se no controlo da instituição, numa dança política que espelhava a própria instabilidade dos governos da época. Durante décadas, a Companhia acompanhou as flutuações políticas e económicas do país, mas tudo mudou com o escândalo de 1910.

O gatilho foi dado no dia 28 de março daquele ano, durante uma Assembleia Geral do banco. No centro das atenções estava António Cândido, o Procurador-Geral da Coroa que também era vice-governador do banco e o seu maior representante naquela reunião a que o presidente Luciano de Castro faltou. Nessa altura, os acionistas denunciaram que “em circulação se lançara maior número de obrigações do que as que correspondiam aos empréstimos”. “Que se fugia à amortização de obrigações”. “Que pecaminosa complacência havia, ou incúria, na exigência de pagamentos de prestações de empréstimos”. “Que as avaliações corriam à matroca, ora descuradas, quase sempre dolosamente exageradas”. “Que os contratos careciam de revisão”. 

Uma das pessoas mais críticas foi João Sousa Rodrigues, que era acionista e também administrador do Banco Nacional Ultramarino. A 22 de abril, é ele que substitui António Cândido e ordena uma revisão às contas do banco a Augusto José Quintela, o contabilista fiel da instituição desde 1873. Após essa análise, Sousa Rodrigues encontra os primeiros erros e chama a sua casa António Quintela. Terá sido nessa altura que o contabilista, desesperado, admitiu que pelo menos desde 1902 teria desviado “uma centena de contos” com a ajuda do chefe da Repartição de Registo e Pagamento de Juros, Bruno de Miranda. 

A situação foi cuidadosamente dissimulada através de operações de tesouraria e de empréstimos em bancos, justificados como métodos de gestão convencionais. Quintela viria a admitir mais tarde que as fez para “maquilhar o mau estado das contas do banco” e, com isso, não prejudicar a reputação do seu presidente, que ao mesmo tempo liderava o Governo do Reino de Portugal. Também na administração das propriedades existiram desfalques que ascenderam a mais de 500 contos e que foram responsabilidade do chefe desta divisão, ex-deputado regenerador José Belo. 

Cem anos depois, os detalhes são semelhantes. No Banco Espírito Santo foi descoberto um buraco financeiro que acabou por ser ocultado através de falsificação de contabilidade. Existiram Assembleias-Gerais da cúpula do grupo em que acionistas (e familiares) se viraram contra Ricardo Salgado, o presidente do Grupo Espírito Santo. E existiu também um contabilista, Francisco Machado da Cruz, a quem Ricardo Salgado depositou uma grande parte da responsabilidade da ocultação financeira. E, claro, a ligação à política: Manuel Pinho, o antigo ministro da Economia foi condenado este ano por corrupção após o Ministério Público o ter comparado a um “agente infiltrado do GES” no Governo. “A história repete-se”, comenta Paulo de Morais. “Só que aqui a diferença é que era tudo feito às claras e descaradamente, mas é muito semelhante ao caso BES, o banco que parecia que tinha um buraco de mil milhões e afinal eram 8 mil milhões de euros, ou seja, oito vezes mais, já o Crédito Predial era um buraco que se pensava ser de 600 contos e foi 13 vezes maior”.

No dia 1 de maio de 1910, o contabilista foi preso. À medida que as revelações aumentavam, o pânico tomava conta de depositantes e acionistas. Uma corrida aos levantamentos começou, e a cotação das obrigações despencou. Muitos credores, aproveitando-se da situação, adquiriram obrigações a preços ínfimos e liquidaram os empréstimos antecipadamente, precipitando ainda mais a crise. Vinte dias depois, Bruno de Miranda suicida-se. 

A 4 de junho dá-se a Assembleia Geral dos acionistas do Crédito Predial Português, que se transforma num palco de protesto. Chovia torrencialmente sob uma multidão de cerca de mil pequenos obrigacionistas e ouviam-se gritos de clamor. “Isto é uma ladroeira!”, “Ai o dinheiro dos meus filhos! Quero saber o que fizeram dele!”, gritava uma senhora, desfalecida nos braços da criada. Rostos que viam, impotentes, os seus sonhos de segurança financeira a desfazerem-se. 

Ausente da Assembleia, o governador José Luciano, enfraquecido, viu-se obrigado a enviar um relatório, onde, pela primeira vez, admitia a gravidade das dificuldades que o Crédito Predial enfrentava. No documento, Luciano atribuía as falhas à crise vinícola que assolava o país, que, segundo ele, travava o pagamento dos empréstimos e fazia decrescer o valor das propriedades hipotecadas. Argumentava ainda que o arrasto das “práticas herdadas do passado” e a “dificuldade na cobrança das prestações” colocavam a Companhia numa situação para a qual ele próprio se dizia alheio. 

A 26 de Junho, cai o 60.º governo da Monarquia Constitucional – o penúltimo antes da República – liderado por Francisco da Veiga Beirão, sucumbindo à crescente turbulência política e ao cerco cada vez maior da imprensa.

Prometeu-se severidade. Mas o processo judicial não chegou a beliscar

Retrato de José Luciano de Castro/ Diocese de Aveiro

José Luciano viria ele também a ser indiciado pelo Ministério Público como “autor da falsificação ciente e conscientemente”. “Não pode admitir-se que, durante o longo período de oito anos pelo menos, ele nem uma só vez fizesse reparo nas rasuras, emendas, e outras viciações, como tidas quase que diariamente na escrita da Companhia”, lê-se no despacho de pronúncia. Ao mesmo tempo, António Egas Moniz prometia, num discurso na Câmara dos Deputados, que “a ação severa da justiça, por mais que o Governo pretenda solidarizar-se com o seu chefe, há-de vir, queiram ou não S. Exas”. 

Mas essa severidade nunca chegou a existir. Com a queda da monarquia e a proclamação da República, José Luciano aguardaria pelo final do processo em maio de 1911 quando o Supremo Tribunal de Justiça considerou que a sua conduta não era punível pelo Código Penal. “Por um lado, o principal indiciado era apenas um dos maiores juristas portugueses do século XIX e que, como governante, tinha estado ligado à produção da maior parte da legislação com que agora o queriam condenar”, afirma o magistrado Luís Eloy Azevedo, “bem se podia dizer que tinha sido ele a colocar as vírgulas dos diplomas com que o queriam incriminar, o que tornava a sua defesa quase juridicamente imbatível”. 

Por outro lado, garante, “o poder republicano, depois de obter os dividendos de descredibilização final da monarquia, desinteressou se, a pouco e pouco, do destino do processo judicial passando a apontar às deficiências da justiça o seu falhanço”. “Afinal, ‘num País em que todos nos conhecemos uns aos outros’, na expressão curiosa de Veiga Beirão, o processo judicial não beliscou, mais do que devia, as altas figuras nele envolvidas”. 

O banco, esse, acabaria por resistir ao escândalo, acabando por vir a ser comprado por António Champalimaud e o Banco Santander Central Hispano, em 2000. Quatro anos depois viria a fundir-se com o Banco Totta & Açores e do Santander Portugal, criando o Banco Santander-Totta.

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