Tal como Frederico Augusto, também António Conceição e Anabela Santos sofreram um AVC em idades improváveis. A idade é um fator de risco, mas há quem seja afetado pela doença em plena vida ativa. A propósito do Dia Mundial do AVC, que se assinalou esta semana, conhecemos três histórias de superação, que servem de alerta
Sabe que foi na manhã a seguir ao primeiro casamento, mas não se lembra de nada. “Também não me lembro de nada do dia do meu primeiro casamento, nem da semana anterior. Só do divórcio!”, brinca Frederico Augusto, agora com 33 anos.
Frederico foi vítima de um AVC (Acidente Vascular Cerebral) aos 24 anos, um dia depois de se casar e de celebrar o primeiro aniversário da primeira filha. Contaram-lhe que foi encontrado caído, semi-inconsciente. “Quando entrei no hospital, ninguém pensava que era um AVC. Afinal, tinha 24 anos. Apesar de ter um pouco de excesso de peso, tinha uma vida ativa, praticava desporto. Era um jovem. Tinha uma vida talvez um pouco boémia. Mas encararam como uma queda e trataram como tal”, conta Frederico Augusto, em conversa com a CNN Portugal.
“Dei entrada no hospital antes de almoço, segundo me contam. Ao fim do dia, ao fim do segundo ou terceiro TAC é que detetaram que tinha sido um AVC”, acrescenta.
Foi-lhe induzido o coma, sujeito a uma traqueostomia e alimentado com uma sonda nasogástrica. “Tudo a que tinha direito”, brinca.
“Ao fim dos 10 dias, tentaram reanimar-me. Mas eu estava bem em coma e fiquei assim mais um tempinho. Em estado vegetativo. Não lhe sei precisar quanto tempo, mas talvez cerca de mais um mês em coma”, conta.
Depois de acordar, ainda se seguiu um longo internamento. Foi cerca de seis meses no hospital. Vaticinaram que não voltaria a andar e “agora corro!”. “Na vida, todos caímos. Mas só fica no chão quem quer. E eu não quis ficar no chão. Fiquei com sequelas, claro. Na fala, que ainda é notória e vai perseguir-me para a vida toda. Tenho talvez alguma dificuldade na motricidade fina da mão direita, mas a nível de força está quase igual. Tenho uma ligeira ataxia e alguns défices de memória. Não consigo falar tão rápido como antigamente, falo mais devagar. Olhe, mas há pessoas que me entendem melhor agora do que antes”, relata, sempre num tom bem-disposto que pautou toda a conversa.
“Na altura, não teve piada nenhuma. Mas, olhe… agora, de que me adianta?!”.
“Reaprender a viver”
Já lá vão quase 10 anos e Frederico reconhece agora o percurso já feito. Deixou de dar a vida e a saúde por adquirida e valoriza “muito mais os sinais que o corpo dá”. Hoje, é gerente de um posto de combustível, voltou a casar, tem mais dois filhos. Não deixou de trabalhar na recuperação e na reabilitação um único dia. “Desde o AVC até agora. O dia-a-dia é uma terapia. Não nos privarmos de fazermos o que queremos, por si só já é uma terapia. Tive de reaprender a comer, a falar, a respirar… tudo. Tive de reaprender a viver”, reconhece.
A tal vida “um pouco boémia”, ficou para trás, mas não se priva do convívio com amigos. “Também tenho outra idade e mais responsabilidades. Mas não deixei de me divertir, não deixei de viver a vida. Se calhar mais recatado. Não vou a todas. Mas se quiser sair, vou”, conta.
Aos 52 anos, Anabela Santos, ainda se lembra de cada detalhe do dia em que o AVC lhe bateu à porta. Tinha 46 anos e uma filha com 18. Vivia em stress permanente e punha o trabalho à frente de tudo. Fortes dores de cabeça levaram-na várias vezes às urgências do Hospital de Abrantes. “Davam-me soro e mandavam-me para casa”, recorda.
“Há um dia em que me levantei de manhã, peguei no telemóvel e deixei-o cair. Quis dar comida ao gato e deixei cair a lata. Depois, peguei num copo e deixei-o cair. Quando quis verbalizar para mim mesma que não estava bem, percebi que não conseguia falar”, conta.
Anabela estava a ter um AVC isquémico. O companheiro levou-a ao centro de saúde, mas não havia médico. “A funcionária mandou-me ir ao hospital, que ainda fica a uns 15 quilómetros. Consegui entrar no hospital a andar, já não conseguia falar, mas ainda consegui escrever umas coisas, embora já com muitos erros. Tive sempre a consciência e a aceitação de que estava a ter um AVC. Pelo meio, ainda consegui mandar uma mensagem à minha chefe a dizer ‘olha, não vou trabalhar, porque estou a ter um AVC’”, relata.
“Lutar contra a paralisia”
Também Anabela ficou com sequelas imediatas graves. Paralisia de ambos os membros do lado esquerdo e afasia. Também a ela traçaram um prognóstico negro, que tratou de contrariar desde o primeiro momento.
“Comecei logo a lutar contra a minha paralisia. Obrigava a minha mão esquerda a apertar e desapertar os botões do pijama do hospital, por exemplo. Hoje, ando normalmente, conduzo, faço a minha vida normal. A única coisa que noto é falta de motricidade fina na mão esquerda”, diz.
Tal como Frederico, parte do propósito de vida de Anabela passa por apoiar outros sobreviventes de AVC. Quer fundar um grupo de ajuda mútua em Abrantes, porque, diz “precisamos de apoio, de ajuda, de ser compreendidos”. “Não é fácil falar com uma pessoa que nunca teve nada”, reconhece.
Frederico quer apagar da impressão pública o mito de que AVC é igual a reforma antecipada e fim da vida ativa. “Ainda há muito a ideia de que o AVC é igual a invalidez. E eu estou cá para mostrar o contrário. Na fase aguda da minha doença, eu dizia que queria voltar a andar, a conduzir e sentia as pessoas à minha volta quase que a desdenhar. Como sou casmurro por natureza, ainda me deu mais gana. Agora todos me perguntam como é que eu fiz. Todos duvidavam e agora todos se surpreendem com a minha recuperação”, diz.
Apesar do trabalho no posto de combustível e dos três filhos, Frederico encontra tempo para participar em palestras e ações de sensibilização para o AVC.
“Os três Fs em simultâneo”
Frederico, Anabela e António Conceição fazem parte da Associação Portugal AVC, que há oito anos procura ajudar sobreviventes e respetivas famílias, a par de um trabalho de prevenção e sensibilização, inclusive em escolas. Também António, presidente da Portugal AVC, foi vítima de AVC quando mal tinha acabado de entrar nos 40. Tinha 41 anos e duas filhas de oito e cinco anos.
Dezasseis anos depois, recorda com clareza o dia que lhe mudou a vida. “Era gerente bancário. Estava a retomar o trabalho depois de almoço. Chamaram-me para atender um telefonema. Estava bem no início da chamada, mas, a meio da chamada, tive de abandonar, porque me aconteceram logo os três Fs em simultâneo: fiquei com a fala afetada, sem força no braço direito e com alterações na face. Ainda me sentei à espera que passasse, mas os colegas aperceberam-se da situação e chamaram logo o INEM e cheguei ao hospital em menos de uma hora”, conta.
“Ao final da tarde, estava bem. Recebi a visita da minha esposa e estava bem. Mas, a meio da noite, o AVC que era isquémico transformou-se em hemorrágico. E aí é que foi o cabo dos trabalhos. Fiquei muito incapacitado e com sequelas muito relevantes”, acrescenta.
Sequelas que ainda hoje se manifestam: “Nota na fala e no aspeto motor e físico, mas se pensarmos que os prognósticos iniciais eram de que dificilmente ia conseguir falar e dar mais do que uns passos agarrado a um andarilho…”. Também ele contrariou esses prognósticos, voltou ao trabalho, que abandonou mais tarde por vontade própria para se dedicar à associação, é “perfeitamente autónomo” e desloca-se pelos próprios meios “por todo o país”.
O AVC jovem
Pelas mãos de Vítor Oliveira, membro da Sociedade Portuguesa de Neurologia, passam diariamente doentes com AVC. Nem todos com os finais felizes de António, Frederico e Anabela. A maioria são de idosos, com fatores de risco exacerbados pela idade.
“Os AVC estão muito relacionados com a idade – hipertensão, diabetes, colesterol… são fatores que vão agravando ao longo da vida. Não é uma doença de velhos, mas é uma doença associada à idade. O AVC jovem é uma tipologia do AVC que costumamos individualizar, precisamente por ser raro”, relata o médico que faz parte da equipa da Via Verde do AVC do Hospital de Santa Maria.
De acordo com as estatísticas, 25% dos AVC ocorrem em pessoas em idade ativa, com grande impacto para o próprio, mas também para as famílias e para a sociedade. “São AVC cada vez mais associados com o consumo de drogas, que podem provocar vasoespamos, a malformações congénitas, ou a inflamações das artérias, com a oclusão de vasos, a atividades físicas violentas, a quedas… Atualmente, os profissionais de saúde, já estão mais sensibilizados para estas situações em pessoas mais jovens”, diz o neurologista.
Os fatores de risco
Os protagonistas das histórias de sobrevivência não apresentavam os tradicionais fatores de risco “de forma exacerbada”. António não fumava, só bebia “socialmente e ao fim de semana”, “tinha algum excesso de peso e o colesterol ligeiramente elevado”. Anabela culpa “o stress do dia-a-dia”. Só Frederico reconhece que foi uma conjugação de fatores: “excesso de peso, colesterol elevado, tabagismo, consumo de bebidas alcoólicas…, mas tinha 24 anos. Alguma vez achava que me fosse acontecer isso?”. Mais tarde e na sequência do AVC, veio a descobrir também que tinha um “mau funcionamento de uma válvula no coração, provavelmente desde nascença”.
Vítor Oliveira divide os fatores de risco para o AVC em duas categorias: “Os que são preveníveis e os que não o são”. Dentro da primeira categoria, inclui a idade, o tabagismo, o excesso de peso, o sedentarismo e o consumo de bebidas alcoólicas. Há ainda a hipertensão e a diabetes, que, mesmo nas situações em que não podem ser evitados, podem, pelo menos, ser vigiados e tratados.
“O individuo obeso, com hipertensão e diabetes é o prato do dia. Ser gordo é um risco grande, porque está muitas vezes ligado à diabetes. A hipertensão, como não dói, a pessoa não dá por nada, e não liga. É agravada sobretudo pelo sal. Em Portugal, consome-se exageradamente sal. Se reduzirmos o sal na nossa alimentação, a hipertensão é mais facilmente controlável. Se a pessoa já é hipertensa, tem de ser medicada, tem de controlar. É precisa uma vigilância, um controlo direto com o médico de família”, alerta o especialista.
Na outra categoria, estão os fatores que não são preveníveis, como a componente genética ou a patologia cardíaca. “Se há uma história de risco de AVC na família e sobretudo em pessoas jovens, é preciso estar atento. E, quanto à patologia cardíaca, sobretudo nas idades mais avançadas, há um aumento da chamada fibrilação auricular. Formam-se coágulos que depois entram em circulação e vão parar ao cérebro”, explica Vítor Oliveira.
Os sinais de alerta e o que fazer
O neurologista sublinha que “um terço dos AVC são perfeitamente evitáveis” e que as “campanhas deviam ser mais recorrentes”. “Em Portugal, temos o Dia Nacional do AVC, a 31 de março e o Dia Mundial do AVC, a 29 de outubro. Fora isso, fala-se pouco”, diz.
“Já se deram alguns passos, como a redução do sal no pão”, admite, mas é preciso, sublinha, comer melhor durante o ano inteiro, vigiar o peso, a tensão arterial e a diabetes, praticar algum tipo de atividade física, consumir menos açúcar, menos álcool e não fumar.
Mas, quando já não há nada a fazer e se está perante um AVC, é preciso reconhecer os sinais de alerta e agir com rapidez. “Cada meio segundo conta”. Vítor Oliveira pede para se estar atento aos “três Fs”: perda de Força, alterações na Face e alterações na Fala.
“Quando se tem estes sintomas que surgem de uma forma súbita ou se está perante alguém com estes sintomas, é importante agir com rapidez. Quanto mais depressa se detetar a situação e a pessoa chegar ao hospital e começar a fazer tratamento, melhor. Mais hipóteses tem de sobrevivência e de ter menos sequelas”, aconselha o neurologista.
“É fundamental ligar imediatamente ao 112. Não perder tempo. Quem vai referenciado pela emergência pré-hospitalar chega mais depressa ao hospital do que se for de carro, os paramédicos fazem logo uma avaliação, contactam o hospital mais próximo com a Via Verde do AVC e, quando o doente chega ao hospital, já tem profissionais à espera para fazer um eletrocardiograma e um TAC. Nem faz inscrição, nem nada. Isso fica para depois”, sublinha, rematando que “quanto mais rápido for o procedimento, menos neurónios morrem”.
A importância da família
O AVC não abala só os doentes. Quem está à volta também vê a vida dar uma volta de 180 graus. “O AVC tem uma implicação na vida das pessoas, da sociedade e do país, com incapacidade, interrupções de percursos profissionais, internamentos caros, cuidados continuados ou até paliativos. E tem grandes implicações nas famílias. Muitas vezes, há pessoas que deixam de trabalhar para cuidar de familiares que tiveram AVC”, exemplifica Vítor Oliveira.
Frederico Augusto reconhece que o AVC pode ter tido alguma influência no fim do casamento que tinha acontecido menos de 24 horas antes. “Diretamente não. Mas uma pessoa que passa pelo que eu passei, naturalmente muda. Quem passou por isso ao meu lado também muda. Se após o AVC, após o meu retorno para casa, eu sentia que não fazia sentido. E vice-versa. Ela também não me conhecia assim. Sentia que não fazia sentido o meu casamento. E hipocrisia não é comigo”, conta, sublinhando que mantém uma boa relação com a antiga companheira e, sobretudo, “uma excelente relação” com a filha, fundamental na motivação para a reabilitação.
Também António Conceição sublinha o papel das filhas na “recuperação e na reabilitação, que são duas coisas diferentes”. “Eu pensava ‘as minhas filhas não têm culpa nenhuma disto e não merecem ter um pai limitado que não os possa acompanhar’. Sem saberem, tiveram um papel fundamental”, ressalva.
Anabela tinha a filha a viver no Reino Unido na altura. Estávamos em plena pandemia e, reconhece, o companheiro também sofreu com a doença da mulher. “Não tinha visitas por causa da pandemia e eu não conseguia falar ao telefone. Foi complicado para ele também. (…) Há coisas que ele só veio a perceber quando visitou o Grupo de Ajuda Mútua de Portalegre (GAM) e nunca teve coragem de me perguntar a mim. Por isso também é que quero tanto fundar um GAM aqui em Abrantes”, justifica.
Os números
O AVC é principal causa de morte em Portugal e estima-se que ocorram cerca de 25 mil casos por ano. A cada hora, três pessoas têm um AVC em Portugal). Dados recentes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) indicam que 10% dos doentes com AVC isquémico morrem nos primeiros 30 dias após o evento.
Em todo o mundo, estima-se que uma em cada seis pessoas terá um AVC, a cada segundo, uma sofre esta enfermidade e, a cada seis segundos, esta doença é responsável pela morte de alguém. De acordo com a Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, Portugal é, na Europa Ocidental, o país com a mais elevada taxa de mortalidade, sobretudo na população com menos de 65 anos.
Em 2023, o Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) deu assistência a 8.796 pessoas, uma média de 24 casos por dia. São mais 1.920 do que no ano anterior e o dobro do registo de 2019, ano pré-pandemia. O distrito de Lisboa foi o que registou mais casos de AVC (1.665), seguido do Porto (1.639) e de Setúbal (640).
A idade média dos doentes atendidos através da Via Verde AVC foi de quase 74 anos (73,9%), 50% eram mulheres e outros 50% homens. Prevê-se que o peso do AVC aumente nas próximas décadas, por causa do aumento do número de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, que se prevê venha a crescer 23% na Europa até 2030.