Domingo, Janeiro 12

A passagem de ano tem-se tornado sinônimo de fogo-de-artifício, para marcar festejos à escala local ou atrair milhares de pessoas para as maiores cidades para festejar a entrada num novo ano. Mas aquele que é um momento de diversão e comemora para uns pode ser um momento de estresse e perturbação para outros. Diversos estudos avaliaram o impacto dos fogos-de-artifício na fauna e na flora e as conclusões são claras: esta forma de celebração causa uma grande perturbação tanto nos animais selvagens como nos domésticos, com impacto também na biodiversidade. Será que há alternativas?

“Os espetáculos de fogo-de-artifício são uma perturbação antropogénica que produz tanto perturbações luminosas e sonoras imediatas como poluição persistente”, lê-se num estudo da Universidade Curtin, na Austrália, publicado em 2023 na revista científica Biologia da Conservação do Pacífico. “Os fogos-de-artifício aéreos têm alturas de rebentamento típicas entre 100 e 200 metros e podem atingir 270 metros, com diâmetros de rebentamento de 100-150 metros. Já a poluição sonora pode ultrapassar 85 decibéis – o nível que pode causar danos aos tímpanos humanos.”

Mas os impactos dos fogos-de-artifício não se devem apenas ao ruído ou à luz – é uma questão muito mais ampla, explica Joana Andrade, coordenadora do departamento de conservação da área marinha da Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves (SPEA). “O mais imediato é a perturbação através do ruído e a questão luminosa, mas também abrange questões de saúde pública”, alerta.

Espetáculo de fogo-de-artifício no Funchal, na Madeira, na entrada do ano de 2024
HOMEM DE GOUVEIA / LUSA

Além das pessoas mais sensíveis, “que ficam afetadas”, há também o impacto ambientalincluindo “a poluição causada pelos resíduos que são libertadores e deixadas no ambiente que acabam por contaminar os cursos de água e os solos”, descreveu a coordenadora do projecto LIFE Ilhas Barreira, no Algarve. “Apesar de serem momentos especiais, temos mesmo de ponderar o custo associado a essas iniciativas e como é que podemos substituir ou melhorar”, reforça a bióloga.

Ria Formosa desprotegida

No início do ano, o grupo municipal do PAN de Olhão denunciou a presença de resíduos na Ria Formosa após os festejos do Ano Novo, um cenário em que o partido foi extremamente “alarmante”, com “milhares de resíduos de pirotecnia espalhados por toda a área terrestre ”. Na altura, o presidente da câmara de Olhão garantiu à agência Lusa que, “como todos os anos, nas 72 horas seguintes tudo estará limpo”.

Em nota de imprensa, o representante do PAN na Assembleia Municipal de Olhão, Alexandre Pereira, lamentou o tratamento dado “a um dos ecossistemas mais ricos e vulneráveis ​​de Portugal” e infelizmente que “acções como estas” não podem continuar a ocorrer numa área protegida .

A Ria Formosa é uma área protegida pelo estatuto de Reserva Natural desde 1978, passando pelo Parque Natural em 1987, o que a torna “um local de grande sensibilidade”, sublinha Paulo Lucas, coordenador na área das florestas da associação Zero. “O ruído afeta especialmente os vertebrados, como os mamíferos. Já a poluição luminosa afeta comunidades de insetos”, descreve o ambientalista. A queima de fogo-de-artifício nas proximidades “é uma situação adequada um pouco” que, considera, é necessário rever.

Espantar os pássaros

As aves selvagens, que não antecipam estas celebrações, tendem a ficar stressadas e acabam por fugir. Tanto a poluição sonora quanto a luminosa causam grandes perturbações.

Nos Países Baixos, uma análise mostrou que “milhares de aves levantam voo pouco depois de serem lançados fogos-de-artifício na véspera do Ano Novo”. Outro caso foi detectado no Lago de Zurique, na Suíça, onde o pesquisador avaliou que as celebrações do Ano Novo “podem causar uma queda de 26-35% do número de cisnes, gansos e patos durante a noite, números que se recuperam nos três a dez dias seguintes”.

As aves são muito sensíveis aos fogos-de-artifício
Nuno Ferreira Santos

Em Portugal, em 2023, durante os festejos do 25 de Abril com fogo-de-artifício em Castro Marim, no Algarve, a SPEA obtém um caso de fuga repentina de uma colónia de flamingos que estava a estabelecer-se na zona. “Apesar de não ser possível fazer uma ligação direta entre o impacto das celebrações e a fuga da colónia, a realidade é que este acontecimento se acontece após os fogos-de-artifício e sem evidência de outras perturbações”, descreve Joana Andrade.

O estudo publicado na Biologia da Conservação do Pacífico explica ainda que os fogos de artifício influenciam diferentes aspectos do comportamento das aves, dependendo da época do ano, em particular durante a fase de reprodução dos animais. No estado de Washington, nos EUA, os fogos-de-artifício foram banidos em zonas de reprodução de espécies ameaçadas, como é o caso dos borrelhos-de-coleira-interrompida​ (Charadrius nivosus).

Proibir? Cuidado com a questão cultural

Há ainda países onde, ano após ano, surgirão várias notícias sobre a morte de pássaros devido ao fogo-de-artifício. Um deles é Itália, e este ano não foi exceção: o antigo eurodeputado Andrea Zanoni, muito ligado às questões ambientais, usou sua página no Instagram para alertar para o número elevado de animais mortos devido às celebrações da passagem de ano para 2025, mostrando duas espécies de aves que encontraram mortos em seu quintal.

O político sublinhava a necessidade de proibir os fogos-de-artifício, “apenas autorizados em determinadas condições pelas autoridades públicas locais”. No final, quem paga a factura são “os nossos amigos com e sem penas”, escreveu Zanoni.

Para Ângela Morgado, diretora-executiva da ANP/WWF Portugal, a exclusão pode não ser uma resposta mais correta. “Estamos a falar de uma perspectiva cultural que está muito associada ao nosso país e às práticas ambientais não devem ir contra a cultura”. A mensagem, acredita, deve passar pela linha da responsabilidade. “Temos de fazer campanhas sobre a responsabilidade e a redução sempre que possível. As pessoas devem reduzir o seu uso ou usar fogos-de-artifício de formas muito controladas”, acrescenta.

Como mudar?

Tratar-se de uma prática tão entrelaçada com a cultura das comunidades, torna-se uma difícil tarefa explicar à população os impactos que estas celebrações podem ter na biodiversidade.

O processo de mudança, nota a bióloga Joana Andrade, “deve ser feito por fases”. É preciso, antes de mais, encontrar fóruns para falar sobre o assunto e “organizar ferramentas para mostrar às pessoas que o objetivo é reduzir o impacto sem retirar o momento de diversão e sem deixar de assinalar estes dados”. Por exemplo, pode-se “começar por restringir o uso de fogos-de-artifício tradicional em áreas protegidas e nas proximidades e incentivo a outras alternativas menos invasivas”, sugere o especialista da SPEA.

O mesmo apelo é feito a quem, a título privado, também compra fogos-de-artifício, o que acontece principalmente nas cidades. “Ainda assim, têm impactos para a biodiversidade urbana e para os animais domésticos”, conclui Joana Andrade. É crucial sensibilizar a população para o impacto que estas celebrações podem ter nos seus animais de companhia que, em casos de estresse e pânico, podem fugir.

“A forma como se faz e os locais onde se faz devem ser ponderados e avaliados atempadamente”, de forma a evitar situações como a da Ria Formosa, explica ainda o coordenador na área das florestas da Zero, Paulo Lucas.

Tecnologia a nosso favor

Os fogos de artifício continuarão a ser uma prática comum, mas Paulo Lucas acredita que a tecnologia poderá trazer alternativas. “Hoje em dia, com a evolução da tecnologia, temos soluções mais amigas do ambiente”, reforça Joana Andrade. Países como a China e a Índia, por exemplo, têm vindo a procurar alternativas para substituir o fogo-de-artifício devido aos níveis de poluição que assolam os países.

Apesar de os custos tenderem a ser maiores com alternativas inovadoras, Joana Andrade acredita que o resultado é mais positivo. “Dependendo das oposiçãos, estas tecnologias podem ser mais dispendiosas que o fogo habitual, mas têm a vantagem de não se esgotarem e poderem ser utilizadas noutras vantagens e serviços.”

O Japão, por exemplo, recorreu a drones para realizar a cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio em vez dos tradicionais fogos. Em 2023, o festival Sudoeste realizou o primeiro espetáculo de luzes com drones realizado num festival, com 100 drones a realizarem um voo coreografado com imagens alusivas ao festival.

Tecnologias como os drones acarretam outros problemas, como acidentes com aves ou pessoas e que podem afetar a biodiversidade de outras formas. Mas as alternativas não param por aqui.

Mais silêncio, menos poluição

Este ano, Quarteira encontrou uma solução menos invasiva e perturbadora para os animais: a pirotecnia silenciosa. A Câmara Municipal de Loulé publicou nas ruas redes sociais que o espetáculo optaria por este tipo de pirotecnia, acompanhado de elementos multimédia, a pensar “nos animais e nas pessoas mais sensíveis ao ruído”.

Sendo o ruído um factor de perturbação das espécies, Joana Andrade acredita que as iniciativas com a de Loulé devem ser consideradas para mitigar os impactos. “Só temos a ganhar porque reduz-se o impacto ambiental e a perturbação das espécies e as pessoas continuam a ter o espetáculo”, observa a bióloga.

“É bom que haja municípios que se preocupem com o problema e que arranjam alternativas. Este é o caminho a seguir, o exemplo que devemos dar às pessoas”, explica a especialista da SPEA. “O que seria ainda melhor era que acontecesse em todo o país.”


Texto editado por Aline Flor

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