Quarta-feira, Julho 3

A confissão surge na rara entrevista que concedeu em 2021 ao programa “Primeira Pessoa”, de Fátima Campos Ferreira, na RTP1, mas vem de trás, já se encontrava na conversa que manteve com o jornalista e escritor Baptista-Bastos (1934-2017), publicada no Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), em 1986, onde estabelece as prioridades da sua escolha.

“Optei pela atividade profissional de músico […] em primeiro lugar para garante da minha felicidade, em segundo para descanso da minha consciência e, em terceiro, para poder olhar para mim próprio e sentir-me mais útil”, disse Fausto ao jornalista veterano, em janeiro de 1986, pouco depois de publicar o álbum “O Despertar dos Alquimistas”.

A escolha pelo “caminho mais difícil” estava feita, “subsistir como músico”, lê-se nesse JL. De um número anterior, de 1982, quando editou “Por Este Rio Acima”, vem outra confissão: “Talvez a coisa que sinta como mais definidora da minha pessoa seja o desejo que sempre tive de prolongar ao máximo a minha adolescência”.

A música esteve sempre presente, desde Angola, onde cresceu, até ao fim. A sua escrita traduz a assimilação dos ritmos africanos que conjugaria com ritmos e modos da tradição popular portuguesa.

Tocou com José Afonso, José Mário Branco, surgiu no movimento da canção de intervenção, quando já tinha um ‘single’ editado, “Chora, amigo chora”, que em 1969 lhe deu o Prémio Revelação do antigo programa de rádio Página Um, de José Manuel Nunes e Adelino Gomes, transmitido pela Rádio Renascença.

Desde o início, como nota a página que a agência artística Ao Sul do Mundo lhe dedica, “Fausto Bordalo Dias destaca-se pela sagacidade com que sempre abordou a música”, pelo “desenvolvimento e estilização da rítmica tradicional portuguesa, a que sempre juntou uma escrita poética e muito cuidada”, dando origem a “um percurso único no universo musical português”.

“As suas canções são cinemáticas, traduzem encenações rigorosas, ressaltam como fotografias ou como enormes frescos, sendo ao mesmo tempo oníricas e cruas, populares e sofisticadas”, lê-se na mesma página.

Fausto era um dos maiores, como disse uma vez José Mário Branco (1942-2019), com quem trabalhou e levou a palco o espetáculo “Três Cantos”, em conjunto com Sérgio Godinho.

Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias nasceu há 75 anos, em 26 de novembro de 1948, em pleno oceano Atlântico, a bordo de um navio chamado Pátria, que viajava para Angola, onde viveu a infância e a adolescência. Cresceu na então cidade de Nova Lisboa, no Planalto de Huambo, mas foi registado em Vila Franca das Naves, Trancoso, no distrito da Guarda, de onde provinham os seus pais.

O seu primeiro grupo integrava-se no movimento pop dos anos 60 e tinha por nome Os Rebeldes. Quando se fixou em Lisboa, em 1968, as opções eram já outras. Aluno do antigo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, atual ISCSP – Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Ciências Sócio-Políticas, adere ao movimento associativo.

São os anos da ditadura. Em 1973, quando já assumia publicamente oposição à guerra colonial, Fausto Bordalo Dias foi considerado refratário, por não se ter apresentado ao serviço militar. “É obrigado, por esta razão, a suspender os estudos universitários, permanecendo, no entanto, de forma discreta e clandestina no país. Chegou a conduzir um ‘carocha’ por todo o país, sem carta, que só viria a ter em 1975”, lê-se na biografia sobre o músico, integrada na “Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa”, dirigida pelos irmãos Luís e João Pinheiro de Almeida.

Aproxima-se de compositores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais tarde, José Mário Branco e Luís Cília, que já viviam no exílio. Surge como músico acompanhador e nos coros de alguns desses álbuns, destacando-se “Coro dos Tribunais”, de José Afonso, publicado no final de 1974, para o qual compôs arranjos.

A sua discografia, porém, começava a afirmar-se. Surge “Pró que Der e Vier” (1974) e “Beco sem Saída” (1975), dois trabalhos marcados pela sua experiência revolucionária. Seguir-se-ia “Madrugada dos Trapeiros” (1977), que inclui o tema “Rosalinda” e marca a sua intervenção social, na oposição à anunciada construção de uma central nuclear em Ferrel, junto a Peniche.

“Histórias de Viajeiros”, de 1979, aborda já, pela primeira vez, o tema das Descobertas, abrindo caminho a “Por este Rio Acima” (1982), baseado na obra “Peregrinação”, de Fernão Mendes Pinto.

O álbum marcaria a carreira de Fausto e a música portuguesa. Em 1988, recebe o Prémio José Afonso e, em 1994, é condecorado com a Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República Mário Soares.

Em 2011, quando o JL assinalava três décadas de existência e pediu a 30 músicos e críticos musicais para indicarem os 30 melhores álbuns da música portuguesa desse período, o mais citado foi “Por este Rio Acima”.

Seguiram-se “O Despertar dos Alquimistas” (1985), “Para além das Cordilheiras” (1987), “A Preto e Branco” (1988), “Crónicas da Terra Ardente” (1994), “A Ópera Mágica do Cantor Maldito” (2003), com uma perspetiva sobre a história portuguesa pós-25 de Abril, e o derradeiro, “Em Busca das Montanhas Azuis” (2011).

Em 2009, com José Mário Branco e Sérgio Godinho, fez o espectáculo “Três Cantos”, sobre o repertório dos três músicos, dando posteriormente origem a um álbum com o mesmo nome.

Regressou aos palcos em 2022, 40 anos anos após a publicação de “Por este Rio Acima”, para dois concertos na Aula Magna da Universidade de Lisboa. Foi essa a despedida.

“Quarenta anos depois do lançamento parece não restar muitas dúvidas de que se trata realmente de uma obra-prima da música popular portuguesa”, escreveu Manuel Halpern, editor do JL, quando esses dois concertos celebravam o duplo-álbum de 1982. “Ninguém, como Fausto, reinventou o folclore com tamanha majestade e eloquência. E, muito concretamente, neste disco”, prossegue o jornalista, defendendo que “Fausto deu ao seu folclore uma ancoragem harmónica e de arranjos com uma lógica e riqueza próximas da erudição”.

Fausto era avesso a entrevistas, à exposição pública. “Habituei-me a estar sozinho. Tenho uma família ótima”, disse a Fátima Campos Ferreira, em 2021, nessa rara aparição para lá dos palcos. “A solidão não sinto, mas sirvo-me dela”. Era essencial para compor.

“Nasci no mar, cresci em Angola, e digamos que fui embalado, pelo menos durante parte da viagem, por aqueles que, no século XVI, partindo de Portugal, descobriram outros mundos”, disse a Baptista-Bastos em 1986, para explicar a necessidade que sentia “de saber como se processou essa aventura da viagem e da Descoberta”, que traduziu “Por este Rio Acima”.

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