2010. Maria e a filha Ana aguardavam na sala de espera do Hospital da Senhora da Oliveira, em Guimarães. Não estavam sozinhas: os lugares do lado iam sendo tomados por outras mulheres. Há muito que Maria ansiava por este momento, mas o dia adivinhava-se difícil. “A minha filha tem pavor a médicos, batas brancas. Ela fica de tal forma que os médicos até têm medo. Sabia que era difícil para ela estar ali”, partilha Maria, 61 anos. “Se fosse uma coisa que pudesse evitar, eu evitava. Mas achei que era algo que devia fazer”.
Ana foi esterilizada nesse dia. Tinha 18 anos. É uma jovem com défice intelectual e nunca soube que foi submetida a uma laqueação de trompas — cirurgia que compromete, de forma irreversível, a reprodução natural.
Foi a mãe que assinou a declaração de consentimento para que a cirurgia fosse feita. “Ela tinha um fluxo abundante e quando via sangue tinha pavor. Expliquei-lhe que esta operação era para deixar de ter sangue. Tentei explicar da forma que achei melhor”, desabafa Maria, que nos conta a verdadeira razão para levar a cabo este procedimento.
PAULO PIMENTA
“Eu quero morrer descansada e dormir descansada. Não quero que a minha filha fique aí com um filho nos braços sem ter capacidade para isso.”
Portugal faz parte da lista de Estados-membros da União Europeia que permite a esterilização de adultos e menores com deficiência. No entanto, existem lacunas na lei que possibilitam, em alguns casos, que esta prática aconteça sem o consentimento da pessoa com défice intelectual, sem um motivo de saúde grave ou mesmo sem autorização judicial.
Se a esterilização continua a ser resposta a um conjunto de medos e desamparos, para algumas associações trata-se de um “atropelo dos direitos humanos”, como descreve Sara Rocha, presidente da associação Voz do Autista. E para o resto da sociedade “continua a ser um tabu, um silêncio”, acrescenta. “Um tema que poucos sabem e de que ninguém fala.”
Da lei à prática
De acordo com a lei portuguesa — artigo 10.º da Lei 3/84 — a esterilização (laqueação ou vasectomia) só pode ser feita por maiores de 25 anos, mediante declaração assinada, contendo a “inequívoca manifestação de vontade” e conhecimento das consequências deste procedimento. Abre-se uma excepção ao limite de idade quando existe uma razão de “ordem terapêutica”.
No entanto, a Ordem dos Médicos abre um precedente. Em regulamento define, internamente, que a prática pode ser feita em “menores ou incapazes” se estiverem em causa graves riscos “para a sua vida ou saúde dos filhos hipotéticos”.
Em todos os casos, é exigido um parecer prévio do Conselho Nacional de Ética e Deontologia da Ordem dos Médicos, que disse não ter recebido nenhum pedido nos últimos oito anos.
Mas, na prática, “nem sempre é isto que acontece”, alerta Maria do Céu Patrão Neves, presidente do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV), órgão consultivo da Assembleia da República.
Rui Gaudêncio
“Temos conhecimento de esterilizações feitas de forma ilegal em meninas e mulheres com deficiência intelectual”, corrobora Sara Rocha, que além de presidente da Voz do Autista é também vice-presidente do Conselho Europeu de Pessoas Autistas e do Comité da Mulher do Fórum Europeu da Deficiência.
Na verdade, são várias as organizações que têm alertado, nos últimos anos, para a prática de esterilização “forçada” em Portugal. Dá-se este nome quando a pessoa com deficiência é pressionada (por exemplo, pela família) a fazer a esterilização, ou mesmo quando este procedimento é realizado sem o seu conhecimento. “Há mulheres com deficiência intelectual que são laqueadas e nunca chegam a saber. Dizem-lhes que a intervenção cirúrgica é para tratar outra coisa, como uma apendicite”, denuncia Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos.
Além da questão do consentimento, em muitos casos também não se verifica um risco grave de saúde. Segundo Maria do Céu Patrão Neves, do ponto de vista ético, esta prática só poderia acontecer em raras excepções: como quando a pessoa sofre de uma patologia em que a esterilização é a única forma terapêutica. No entanto, sublinha que não é essa a razão que leva “à maioria destes casos”.
“Sempre tive medo que ela fosse abusada”
“A vida tem sido um calvário. Há dias melhores, piores, noites sem dormir”, responde Maria quando questionada sobre as dificuldades que enfrenta enquanto mãe da Ana — ambos nomes fictícios. “Eu sou sempre sozinha para tudo. O meu marido trabalha para nós comermos, mas sou eu que fico com ela.”
A filha, agora com 32 anos, tem um grau de dependência moderado: consegue andar e comer de forma autónoma, mas tem dificuldade na comunicação oral e precisa de ajuda para as tarefas do dia-a-dia, como tomar banho ou vestir-se.
Maria não acredita que a filha algum dia consiga ter uma relação amorosa ou de intimidade. “Quanto mais o tempo passa, mais pensamos no amanhã. Sempre tive muito medo de que ela fosse abusada. Tenho medo de morrer, ela ficar para aí numa instituição, e depois alguém…”. Maria faz uma breve pausa. Ao fim de alguns segundos, continua: “Era uma das coisas que eu sempre temia e só pensava nisso… Nós ouvimos tanta coisa.”
Sara Ferreira, coordenadora do lar de apoio da CERCIFAF, está ao lado de Maria nesta conversa. É nesta cooperativa de apoio a pessoas com deficiência, em Fafe, que Ana passa parte do seu dia. “O medo do abuso é grande. A mãe da Ana hoje está cá para proteger a filha, amanhã não estará. Ela sente que essa parte está segura. Se vai ser abusada ou não, não o pode prever. Mas ao nível da gravidez, já fez a parte dela”, reforça Sara Ferreira.
Maria não é caso único. O medo de uma gravidez indesejada — sobretudo de uma situação de abuso sexual — continua a ser uma das razões que levam à esterilização de mulheres com deficiência. “Existe uma questão sistémica de abuso de mulheres e de meninas com deficiência”, sublinha Sara Rocha.
Em 2015, foi realizada uma das maiores investigações na União Europeia sobre a violência contra mulheres. Abrangeu os 28 Estados-membros e concluiu que cerca de 61% das mulheres com deficiência já tinham sofrido situações de assédio sexual — em grande parte, os casos nunca chegaram a ser denunciados.
Em Portugal, o Observatório da Deficiência e Direitos Humanos fez uma investigação, em 2014, de menor amplitude, mas que reforça este cenário. Segundo o estudo, uma em cada duas mulheres com deficiência é vítima de violência de género — em causa estão casos de violência física, psicológica e abusos sexuais.
Esta continua a ser uma preocupação internacional. Um relatório da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicado em 2024, alerta que as mulheres com deficiência correm maior risco de abuso sexual e violência — e as razões podem ser várias, desde o isolamento a que estão sujeitas, ao estigma e descriminação que podem reduzir o acesso a serviços ou informações. A OMS critica ainda que o fenómeno continua a não ser devidamente investigado na maioria dos estudos internacionais sobre violência contra mulheres.
A esterilização protege?
Paula Campos Pinto, coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos, acredita que as famílias “têm boas intenções” para proteger as filhas, mas deixa um aviso: a esterilização não só não protege contra os maus tratos como pode aumentar o risco de abuso sexual.
“Se uma mulher estiver a ser abusada, assim que ela for esterilizada, torna-se ainda mais um alvo. O abusador deixa de ter medo, deixa de haver uma possível prova [uma gravidez] desse abuso”, corrobora Sara Rocha, alertando que a resposta a este crime passa antes por programas de apoio às vítimas e de sensibilização para o tema.
Além dos procedimentos realizados a pedido das famílias, Sara Rocha e Paula Campos Pinto lamentam ainda existirem instituições prolíferas a esterilizar mulheres com deficiência. “Continuo a ouvir que há instituições que colocam a esterilização quase como uma condição de admissão na instituição, porque isso vem facilitar outras actividades e práticas dentro da instituição”, diz a coordenadora do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos. Desde logo porque “as instituições ficam também mais protegidas de potenciais responsabilidades no caso de mulheres sofrerem abusos ou engravidarem”, exemplifica.
Para estas entrevistadas não restam dúvidas: a esterilização forçada é atentatória dos direitos humanos e viola a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência — ratificada por Portugal — que defende que as pessoas com deficiência devem manter a sua fertilidade em condições de igualdade.
“A esterilização forçada não pode ser feita para descanso e tranquilidade dos pais, que não querem que a sua filha apareça grávida, ou das instituições, que não querem assumir a responsabilidade”, reforça Maria do Céu Patrão Neves, presidente do CNECV. “É uma violação da dignidade humana, da integridade física e uma restrição inadmissível, à luz dos direitos humanos, à sua vida humana e familiar.”
Também Sandra Marques — que pertence à Inclusion Europe, organização internacional na área da deficiência intelectual — aponta que, nestes casos, as pessoas com deficiência não são tratadas “como iguais”. “Aceder a direitos, como o da integridade física, não pode depender da capacidade intelectual. O acesso aos direitos humanos decorre da nossa condição de humano”, explica.
Daniel Rocha
Famílias e o medo da gravidez
“E agora, quem me acode?”, pensou Fátima Delgado, 62 anos, quando apareceu a primeira menstruação da sua filha Inês, na altura com 13 anos. “Despertou-me uma coisa. Não sabia o que fazer.”
Aos cinco meses, Inês foi diagnosticada com uma malformação congénita, que lhe afectou a capacidade cognitiva. “Ter um filho com deficiência… Primeiro vem a negação, depois a aceitação. Fiz anos de psicanálise para conseguir falar disto assim”, diz. Hoje, Inês consegue comunicar — aliás, “fala pelos cotovelos”, diz a mãe com um sorriso — e é autónoma nas tarefas diárias, como fazer a higiene pessoal ou comer. Apesar de não saber ler nem escrever, gosta de enviar mensagens à família e de cantarolar os refrães das músicas. “Mesmo em inglês, parece que sabe as músicas de cor”, brinca Fátima.
Com o aval da ginecologista, Inês começou a tomar a pílula, depois da primeira menstruação. “Não vá acontecer alguma coisa no colégio”, justifica Fátima. Anos depois, deixou este contraceptivo. “Ela não ligava a ninguém, não deixava ninguém aproximar-se.”
Inês sempre teve uma infância protegida. Aos oito anos, entrou para um externato adaptado a crianças com necessidades educativas especiais. Apesar de a idade limite ser os 18 anos, ficou neste colégio até aos 30, a pedido da mãe, que não encontrava outras instituições da sua confiança.
Para Fátima, a esterilização nunca foi um tema — até agora. Este ano, Inês entrou numa nova instituição de apoio a adultos com deficiência. “Deparei-me com a deficiência adulta. É um murro no estômago”, diz. Nos primeiros tempos perguntaram-lhe, na instituição, se Inês era esterilizada. “Eu disse que não, mas perguntei se achavam pertinente. Responderam-me que os pais é que decidiam”, partilha Fátima. “Mas as pessoas que têm cá… são esterilizadas?”, perguntou de seguida. “A maioria, sim. Outras têm o implante [método de contracepção hormonal de longa duração]”, responderam-lhe.
Não é a vida sexual de Inês que deixa esta mãe assustada. Aliás, acha possível que a filha venha a ter uma relação amorosa — e que até possa viver como casal. “Viverem aqui em casa, por exemplo. De forma autónoma acho difícil”, afirma.
O único medo é a gravidez. Às vezes, Inês diz à mãe que um dia vai casar e ter uma filha. Pesquisa vestidos de noiva na Internet e pede à irmã — que tem três filhos — para lhe guardar as chuchas. “Mas é tudo uma fantasia. Não é uma vontade de ser mãe, é só o de estar grávida, ter uma barriga. Para a Inês, um filho seria um susto. Ela nunca brincou com bonecos e se ouve um choro de um bebé fica perturbada.”
Paulo Pimenta
Nesta situação, a esterilização seria um “descanso”. “Se agora a Inês engravidasse, por muito que eu ame a minha filha, eu nunca iria permitir a vinda desse bebé”, diz Fátima. “Era mais um filho que eu ia ter.”
“Ela nunca iria perceber”
Tal como Fátima, muitas famílias encaram este dilema. Temem que as filhas com deficiência não tenham capacidade para serem mães e que as responsabilidades recaiam na própria família — parte delas, inclusive, já enfrentam dificuldades económicas.
“Isto acontece não porque as pessoas queiram fazer mal aos seus filhos, mas porque se vêem numa situação que não controlam, como uma nova criança”, resume Sandra Marques, membro do mecanismo de Monitorização da Implementação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência em Portugal.
Neste momento, Fátima espera pela consulta de Ginecologia, onde abordará este assunto — e tem receios. “Sei que há médicos que não fazem a esterilização. Dizem que estamos a cortar os sonhos às nossas filhas… Não têm noção do que é ter um filho com deficiência.”
A certa altura, durante uma longa conversa, perguntámos o que irá dizer a Inês quando avançar com a laqueação de trompas. “O que ela quer é a gravidez, ter uma barriga”, desabafa Fátima. “Se ela quisesse muito ser mãe, se calhar isso era mau. Se calhar eu sentia-me mais culpada. Mas como eu sei que ela não quer ser… Não sei se lhe iria dizer. Ainda tenho de me aconselhar com uma psicóloga.”
No caso de Maria, optou por nunca contar à filha que foi esterilizada. Acredita que não iria perceber o que estava em causa. Sara Ferreira, da CERCIFAF, compreende esta perspectiva. “As pessoas devem ser informadas. Há uma invasão do próprio corpo e um pós-operatório. Mas nos casos em que as pessoas não têm entendimento, acho que não faz sentido.”
Mas, uma vez mais, as opiniões dividem-se. Rui Nunes, presidente da Associação Portuguesa de Bioética, e Tiago Gil Oliveira, presidente da Sociedade Portuguesa de Neurociências, consideram que, na maioria dos casos, é possível auscultar a pessoa com deficiência nesta matéria — desde que a informação seja trabalhada de forma adequada a cada deficiência. Por exemplo, através de guias fáceis de leitura ou métodos de comunicação alternativa.
Nelson Garrido
Uma prática sem dados
Em 2016, o Comité dos Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas denunciou que a esterilização neste grupo era uma realidade em Portugal. No entanto, a prática ainda não é investigada.
Rui Nunes acredita que, actualmente, este já não será um procedimento “frequente”, mas não são conhecidos dados nacionais. Não se sabe o número de esterilizações feitas, as circunstâncias ou o perfil das mulheres sujeitas à esterilização. O tema não é sequer referido na Estratégia Nacional para a Inclusão das Pessoas com Deficiência 2021-2025.
O P3 questionou o Ministério da Saúde sobre a existência destes dados. Mesmo depois de alguma insistência, este ministério remeteu o esclarecimento para a Direcção-Geral da Saúde (DGS). No entanto, o gabinete de comunicação da DGS diz que “não dispõe de informação” sobre estes dados. Acrescenta ainda que “à data, não existem publicadas quaisquer orientações/normas específicas sobre este tema em particular”.
O P3 tentou ainda perceber, junto do Ministério Público, se há registo de queixas relativas a este tema. O gabinete de imprensa não responde a esta questão, afirmando que o sistema informático não permite efectuar pesquisas com a “especificidade pretendida”.
Sandra Marques considera urgente a investigação sobre a esterilização — desde logo, para contrariar os preconceitos que ainda persistem. “Ouve-se que só acontece em doenças muito severas, mas nem sempre é assim”.
Ao longo de 28 anos de trabalho nesta área, Sandra Marques conheceu casos de esterilização em mulheres com défice intelectual ligeiro “que poderiam perfeitamente exercer a parentalidade”. “Conheci uma mulher que já estava casada quando descobriu que era esterilizada. Estava a tentar engravidar e, como não conseguia, marcou uma consulta. Só aí descobriu.”
Sara Rocha cimenta esta posição. Enquanto mulher com autismo, esta é uma realidade próxima. Já conheceu casos em que foi sugerida a esterilização em mulheres com o mesmo nível de autismo que o seu. “Sei de uma mulher autista que foi esterilizada. Hoje em dia tem parceiro, vive sozinha e deixou de falar à família.”
Uma mulher com deficiência intelectual pode ser mãe?
A resposta não é simples — desde logo porque são “diversas as doenças que afectam o cérebro”, resultando em diferentes “tipos e graus de deficiência intelectual”, ilustra Tiago Gil Oliveira, da Sociedade Portuguesa de Neurociências. A anomalia intelectual tanto pode ser ligeira (e não comprometer significativamente o dia-a-dia da pessoa), como severa. Pode ainda ser progressiva ou estável — e neste último caso, pode ser possível, com o devido acompanhamento, trabalhar a capacitação para lidar com este e outros desafios. “Cada caso é um caso”, resume.
De facto, por todo o mundo, existem pais e mães com deficiência. É o caso de Cristina Pires, 37 anos, que vive em Fafe, no distrito de Braga. Tem uma deficiência intelectual ligeira que não a impede de ter uma vida organizada: comunica normalmente, tem um emprego e vive com seu parceiro. Têm dois filhos, um rapaz de 11 anos e uma rapariga de 6.
“Queria muito ser mãe. Sempre gostei de crianças”, afirma Cristina.
Diz-se que para criar uma criança é preciso uma aldeia — e neste caso não foi diferente. Além de ter apoio familiar, Cristina é acompanhada na CERCIFAF há largos anos. Ao longo do tempo, foi criando uma relação de confiança com Sara Ferreira. Quando acontece alguma “crise”, como descreve, sabe que não fica desamparada. Aliás, está neste momento a passar por uma dessas fases. Quase na pré-adolescência, sente que chegou a altura de falar sobre sexualidade com o filho. “Preciso de ajuda para explicar algumas coisas”, diz.
Cristina conta também com a ajuda da CERCIFAF para ter um modelo de organização do seu ordenado, garantindo que chega para cobrir todas as despesas. “É claro que ninguém está preparado, não existe um cardápio que diga como educar uma criança. Mas se agilizarmos, acabam por ser funcionais”, defende Sara Ferreira.
Embora tenha uma deficiência ligeira, Cristina também foi esterilizada há seis anos. “Não queria ter mais filhos e para mim era difícil tomar a pílula. Às vezes esquecia-me de tomar”. No seu caso, foi simples: assinou o termo de consentimento, depois de a médica lhe explicar as consequências da cirurgia. Fez a laqueação das trompas precisamente no dia do parto da filha.
Ao contrário de Cristina, não foi Ana a assinar o termo de consentimento da sua esterilização. Foi a mãe, Maria, que tratou de todo o processo. “Os médicos não aceitavam bem a minha opinião. Mas fui até ao fim”, recorda. Quando Ana fez 18 anos, o pai fez um pedido em tribunal para se tornar figura legal de interdição da filha. Na altura, em casos de pessoas com anomalia psíquica, a figura legal ficava responsável por várias decisões, como perfilhar. Isto permitiu que fossem os pais a assinar o termo de consentimento da esterilização.
Esta situação não é inédita. Em 2016, o PÚBLICO já noticiava outros casos em que a esterilização foi decidida em gabinete médico e as famílias assinaram o termo de consentimento em representação das filhas.
Mas não é isto que está previsto na lei portuguesa, alerta Rui Nunes. “Para os casos de esterilização, é necessário uma ordem judicial”, esclarece o catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto. Isto porque o Código Penal — no artigo 150.º — deixa claro que as pessoas que realizam intervenções que sejam um perigo para a vida ou grave ofensa para o corpo e saúde devem ser punidas por lei.
Desta forma, Rui Nunes defende que a esterilização não pode ser decidida pelas famílias ou médicos; apenas o poder judicial garante a imparcialidade e assegura que os Direitos Humanos, à luz da Constituição da República Portuguesa, são respeitados. “Se um hospital ou um médico não se socorre da autorização judicial, não estão a cumprir a lei”, conclui.
Em 2018, o regime de interdição — que permitia aos tutores legais tomar estas decisões — foi substituído pelo regime do Maior Acompanhado. Na teoria, privilegia a autonomia das pessoas com deficiência, considerando como “direitos pessoais” situações como casar ou procriar. No entanto, entre 2019 e 2022, o projecto Equal analisou a aplicação deste novo regime e concluiu (numa amostra de 752 casos de pessoas com deficiência) que 72% continuavam a não poder exercer responsabilidades parentais, incluindo perfilhar, adoptar e direitos reprodutivos.
Nos últimos anos, a nível internacional, esta prática tem vindo a ser repreendida, sendo considerada uma violação do direito sexual, reprodutivo e à autodeterminação. É o caso da Convenção de Istambul, da Convenção sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência ou do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.
Actualmente, cerca de 11 países da União Europeia não permitem, por lei, a esterilização de pessoas com deficiência — entre eles, a Suécia, Espanha, Alemanha ou França. Do outro lado do muro está Portugal, que pertence à lista de 11 países que permite a esterilização em adultos com deficiência — e é apenas um dos três (juntamente com a Hungria e a República Checa) que consente esta prática em menores.
Perante este cenário, Maria do Céu Patrão Neves, presidente do CNECV, considera fundamental uma revisão da lei, exigindo uma legislação “sem quaisquer ambiguidades”. “Os direitos humanos em geral e os direitos humanos das mulheres em particular estão sob ataque cerrado. Uma evolução legislativa [impedindo a esterilização] era um sinal de afirmação dos direitos humanos”, acrescenta Rui Nunes.
Em 2024, cerca de 20 associações portuguesas — coordenadas pela associação Voz do Autista — assinaram uma carta aberta, exigindo a criminalização desta prática em Portugal.
“Todos precisamos de ser amados”
“A esterilização é consequência do nosso imaginário do que é uma pessoa com deficiência e a sua sexualidade. Continuamos a entender que não são capazes de tomar decisões”, afirma Sandra Marques. Para mudar esta situação, defende ser urgente apostar no modelo de capacitação — desde logo no acesso a uma educação sexual adaptada a pessoas com deficiência.
Embora exista um longo caminho a percorrer, há profissionais que há muito trabalham para tornar a sexualidade um tema acessível a pessoas com deficiência. Esta sempre foi a ambição de Ivone Félix, que trabalha nesta área há mais de 40 anos. Actualmente, pertence à CERCIOEIRAS. “A educação pode fazer a diferença. Existe a ideia de que são pessoas que não têm desejo sexual. Mas todos precisamos de ser amados, de ser tocados, por isso temos de encontrar formas de o fazerem em segurança”, afirma.
Nuno Ferreira Santos
Ivone Félix defende que esta educação deve ser feita nas instituições de apoio e nas escolas de forma contínua, desde a adolescência à fase adulta. Só assim é possível acompanhar as “novas sensações e as dúvidas que vão surgindo em cada fase de vida”.
A abordagem e os materiais pedagógicos devem ser sempre adaptados às competências, à fisiologia e à capacidade de aprendizagem das pessoas com deficiência. Considera necessário trabalhar o entendimento sobre os cuidados básicos — noções de privacidade, doenças sexualmente transmissíveis ou cuidados de higiene — bem como ganhar consciência do que são relações emocionais saudáveis. “É preciso ensinar a reconhecer os riscos. Distinguir o que é um toque prazeroso de uma situação de abuso.”
Sara Ferreira garante que é cada vez mais “normal” as pessoas com deficiência demonstrarem os seus afectos. Partilha exemplos do seu dia-a-dia: como o caso de uma mulher com défice cognitivo ligeiro que queria ter privacidade com o seu namorado fora da instituição. Sara ajudou-a a arrendar um quarto, salvaguardando que o faziam em segurança. Também conhece casos severos, noutras instituições, onde a ajuda é fundamental. “Dois jovens com paralisia cerebral, em que existe uma rigidez muscular dos membros superiores e não conseguem fazer o encaixe ajustado ao seu corpo. Esse casal escolheu um terceiro elemento da instituição para os ajudar a fazer o posicionamento”, exemplifica.
PAULO PIMENTA
“Nós, profissionais, temos os nossos preconceitos e dúvidas. Mas depois começamos a ver que melhora muito o bem-estar das pessoas”, conclui Ivone Félix.
Paula Campos Pinto propõe que Portugal siga o exemplo da Suécia, que tem diversos programas de assistência à maternidade. Por exemplo, um em que pessoas com deficiência ficavam responsáveis por um boneco programado para chorar quando tinha fome ou estava vestido desadequadamente. “Para estas pessoas, a aprendizagem muitas vezes tem de ser feita de forma concreta”, explica.
Continuaremos esquecidas
Na opinião de Sara Rocha, este tema continua abandonado na agenda política. Em 2023, foi aprovado no Orçamento do Estado a realização de um estudo nacional sobre violência contra mulheres com deficiência, nomeadamente sobre a prática de esterilização. O P3 tentou perceber, junto do Ministério da Saúde, se existem informações sobre este estudo. O gabinete de comunicação respondeu que, de facto, se terá iniciado um estudo sobre este tema, mas que estava do lado do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS). No entanto, o MTSSS afirma não ter conhecimento sobre esta investigação.
No início deste ano, o Bloco de Esquerda avançou com um projecto de lei para criminalizar esta prática — e a discussão ainda será agendada.
Para Rui Nunes, este descaso acontece, em parte, porque se trata de uma questão de género: “Interrogo-me se isto fosse uma intervenção maioritariamente efectuada em homens se ainda estava legislado desta forma.” Apesar de afectar principalmente mulheres, Sara Rocha lamenta que esta não seja ainda “uma prioridade do movimento feminista português”. “Nós fomos deixadas para trás por toda a gente. Muitas vezes, estes assuntos não são incluídos nas lutas a nível nacional”, acrescenta.
“Até custa a crer como é que esta questão não tem outra alavancagem social e política”, corrobora Rui Nunes, acreditando que a maioria dos portugueses “nem imagina que isto acontece”. E como se combate este desconhecimento? O primeiro passo é “falar”, diz Sandra Marques. “Ainda é um tabu falar de esterilização ou da deficiência. E se não se fala, é como se não existisse.”
Enquanto mulher com deficiência, Sara Rocha sente-se esquecida. “A nossa voz, o nosso corpo, a nossa vida continua esquecida. Nós continuamos esquecidas”. E alerta: não é possível falar em progresso ou inclusão, se este tema não for alvo de escrutínio.
“A visão da deficiência em Portugal continua a ser caritativa. Nós não precisamos de ajuda. Precisamos de direitos.”