Sábado, Outubro 26

Hong Kong quer colocar câmaras de vigilância pelas ruas. Os críticos dizem que esta é mais uma prova de que a cidade está a aproximar-se da China

Se olhar para cima enquanto passeia por partes da baixa de Hong Kong, é provável que repare nas lentes pretas e vítreas de uma câmara de vigilância apontada para as movimentadas ruas da cidade.

E essa visão tornar-se-á mais comum nos próximos anos, à medida que a polícia da cidade leva a cabo uma ambiciosa campanha de instalação de milhares de câmaras para aumentar as suas capacidades de vigilância.

Apesar de estar constantemente posicionada entre as grandes cidades mais seguras do mundo, a polícia do centro financeiro asiático diz que as novas câmaras são necessárias para combater o crime – e levantou a possibilidade de as equipar com poderosas ferramentas de reconhecimento facial e de inteligência artificial (IA).

Este facto alarmou alguns especialistas que consideram que Hong Kong se aproxima dos sistemas de vigilância generalizada da China continental, alertando para o potencial repressivo da tecnologia.

A polícia de Hong Kong tinha anteriormente estabelecido o objetivo de instalar 2.000 novas câmaras de vigilância este ano e potencialmente mais do que isso em cada ano seguinte. As autoridades planeiam introduzir o reconhecimento facial nessas câmaras, garantiu o chefe de segurança Chris Tang aos meios de comunicação locais, em julho – acrescentando que a polícia poderia utilizar a IA no futuro para localizar suspeitos.

Portões de reconhecimento facial na sala de partidas do Aeroporto Internacional de Hong Kong (Budrul Chukrut/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Numa declaração à CNN, a Força Policial de Hong Kong admite que está a estudar a forma como a polícia de outros países utiliza as câmaras de vigilância, incluindo a forma como usam a IA. Mas não é claro quantas das novas câmaras podem vir a ter capacidades de reconhecimento facial ou se existe um calendário para quando a tecnologia vai ser introduzida.

A polícia de Hong Kong têm repetidamente apontado para outras jurisdições, incluindo as democracias ocidentais, que também utilizam amplamente as câmaras de vigilância para a aplicação da lei. Por exemplo, Singapura tem 90 mil câmaras e o Reino Unido tem mais de sete milhões, afirmou Tang ao jornal local Sing Tao Daily, em junho.

Embora alguns desses locais, como o Reino Unido, tenham começado a utilizar câmaras de reconhecimento facial, os especialistas afirmam que estas primeiras experiências realçaram a necessidade de uma regulamentação cuidadosa e de proteção da privacidade. A polícia de Hong Kong diz à CNN que vai “cumprir as leis relevantes” e seguir rigorosas diretrizes internas – mas não explica em pormenor o que tal significa.

E, segundo alguns críticos, o que distingue Hong Kong de outros locais é o seu ambiente político – que tem assistido a uma repressão contínua da divergência política, à medida que se aproxima da China continental autoritária.

Na sequência de protestos antigovernamentais sem precedentes e muitas vezes violentos que abalaram a cidade em 2019, as autoridades locais e centrais impuseram leis de segurança nacional abrangentes que foram utilizadas para prender ativistas, jornalistas e opositores políticos e que vão visar grupos da sociedade civil e meios de comunicação social que relatam imparcialmente o que se passa no país.

Os líderes de Hong Kong garantem que as leis são necessárias para restaurar a estabilidade após os protestos na cidade semi-autónoma e argumentam que a sua legislação é semelhante a outras leis de segurança nacional em todo o mundo.

“A diferença é a forma como a tecnologia está a ser utilizada”, sublinha Samantha Hoffman, membro não permanente do National Bureau of Asian Research, que estudou a utilização da tecnologia pela China para fins de segurança e propaganda.

Países como os Estados Unidos e o Reino Unido também podem ter problemas com a forma como implementam essa tecnologia – mas “isto é fundamentalmente diferente… Tem a ver especificamente com o sistema de governo, bem como com a forma como o Estado que só conta com um partido… usa a lei para manter o seu próprio poder”, explica Hoffman.

O que significa isto para Hong Kong

Hong Kong tem mais de 54.500 câmaras públicas de CCTV utilizadas por organismos governamentais – cerca de sete câmaras por cada 1.000 pessoas, de acordo com uma estimativa da Comparitech, uma empresa de investigação tecnológica sediada no Reino Unido.

Isto coloca o país a par da cidade de Nova Iorque e ainda muito atrás de Londres (13 por 1.000 pessoas), mas nada perto das cidades da China continental, que têm em média cerca de 440 câmaras por 1.000 pessoas.

Os receios de uma vigilância e policiamento ao estilo da China continental causaram uma angústia notável durante os protestos de 2019, que se alargaram para abranger os receios de muitos habitantes de Hong Kong de que o governo central chinês invadisse a autonomia limitada da cidade.

Os manifestantes nas ruas cobriram os rostos com máscaras e óculos de proteção para evitar serem identificados, por vezes partindo ou cobrindo câmaras de segurança. A certa altura, destruíram um poste de iluminação “inteligente”, apesar de as autoridades de Hong Kong terem afirmado que se destinava apenas a recolher dados sobre o trânsito, o clima e a poluição.

Na altura, o ativista e líder estudantil Joshua Wong – que está agora na prisão por acusações relacionadas com o seu ativismo e com a segurança nacional – afirmou: “Pode o Governo de Hong Kong garantir que nunca instalará táticas de reconhecimento facial nos postes de iluminação inteligentes? … Não o podem prometer e não o farão devido à pressão de Pequim”.

Do outro lado da fronteira, o modelo de vigilância que os manifestantes temiam é omnipresente – com a China a celebrar frequentemente as várias realizações dos seus algoritmos de reconhecimento facial em tempo real e a exportar tecnologia de vigilância para países de todo o mundo.

De acordo com uma análise da Comparitec, oito das dez cidades mais vigiadas do mundo per capita situam-se na China, onde o reconhecimento facial é uma parte incontornável da vida quotidiana – desde as digitalizações faciais necessárias para registar um novo número de telefone até aos portões de reconhecimento facial em algumas estações de metro.

Durante a pandemia de covid-19, o governo impôs um “código de saúde” QR para monitorizar o estado de saúde das pessoas, o que, em alguns locais, exigia a digitalização facial.

Mas a tecnologia também tem sido utilizada de forma mais repressiva.

Na região do extremo oeste de Xinjiang, Pequim usou câmeras para supervisionar membros da população uigur de maioria muçulmana. E quando, no final de 2022, rebentaram protestos sem precedentes a nível nacional contra as políticas rigorosas do governo em matéria de covid, a polícia utilizou o reconhecimento facial, juntamente com outras ferramentas de vigilância sofisticadas, para localizar os manifestantes, segundo o The New York Times.

Câmaras de vigilância na zona do Bund em Xangai, China, a 1 de maio de 2024 (Qilai Shen/Bloomberg/Getty Images)

“Os sistemas de vigilância da segurança pública (da China) tendem a seguir listas de pessoas específicas, talvez pessoas com um historial de doença mental ou de participação em protestos e tomam nota das pessoas que são identificadas como sendo problemáticas de alguma forma”, explica Hoffman.

Assim, os sistemas “rastreiam essas pessoas específicas por toda a cidade e por toda a sua rede de vigilância”.

“Penso que é justo prever que com o tempo a utilização das câmaras de vigilância e da tecnologia de reconhecimento facial em Hong Kong vai começar a assemelhar-se muito às da China continental”, reconhece.

A polícia de Hong Kong tem argumentado que as câmaras ajudam a combater o crime, apontando para um programa-piloto no início deste ano de 15 câmaras instaladas num distrito. Tang disse ao Sing Tao Daily que essas câmaras já forneceram provas e pistas para pelo menos seis crimes e que a polícia vai dar prioridade às áreas de alto risco ou de alta criminalidade para as restantes câmaras.

Nos primeiros cinco meses deste ano, registou-se um aumento de 3% dos crimes em relação ao mesmo período do ano passado, segundo o jornal Sing Tao.

Em comunicado, a polícia diz à CNN que as novas câmaras apenas iriam monitorizar locais públicos e apagar as imagens ao fim de 31 dias. As câmaras devem seguir a legislação existente em matéria de privacidade de dados pessoais, bem como “diretrizes internas abrangentes e sólidas”, afirma a polícia, sem especificar em que consistem essas diretrizes.

Ao ponderar a utilização de câmaras equipadas com IA, “a polícia irá certamente cumprir as leis relevantes”, acrescenta a força.

No entanto, vários especialistas entrevistados pela CNN duvidam que as leis existentes, redigidas há décadas com amplas exceções para a polícia, sejam suficientes.

Steve Tsang, diretor do Instituto Chinês SOAS da Universidade de Londres, alerta para o facto de as novas câmaras poderem ser “utilizadas para fins de repressão política”, se forem utilizadas ao abrigo da “draconiana” lei de segurança nacional.

A menos que as autoridades garantam ao público que as câmaras não vão ser utilizadas para esse fim, “é provável que se trate de mais um passo no sentido de tornar a aplicação da lei em Hong Kong mais próxima da forma como é feita na China continental”, acredita.

Como regulamentar o reconhecimento facial

Outros especialistas afirmam que é demasiado cedo para dizer qual será o impacto da medida em Hong Kong, uma vez que as autoridades ainda não definiram em pormenor a forma como vão fazer uso desta tecnologia.

“A lei de Hong Kong não reflete, em todos os aspetos, o que acontece na China continental”, considera Normann Witzleb, professor associado de proteção de dados e privacidade na Universidade Chinesa de Hong Kong.

Mas é por isso que é ainda mais importante que as autoridades se debrucem sobre uma série de questões ainda sem resposta, avisa.

Uma câmara de segurança no passeio marítimo de Victoria Harbour, Hong Kong (Chan Long Hei/SOPA Images/LightRocket/Getty Images)

Por exemplo, ainda não é claro se Hong Kong vai utilizar o reconhecimento facial em direto, que analisa constantemente o ambiente, ou se a tecnologia só vai ser aplicada a imagens anteriores quando ocorrerem determinados crimes ou quando for concedida autorização legal.

Witzleb também levanta a questão de saber quem teria o poder de autorizar a utilização do reconhecimento facial e que situações o poderiam justificar. Seria utilizado por exemplo para perseguir crimes e localizar suspeitos ou para outras medidas de segurança pública, como a identificação de pessoas desaparecidas?

E, acrescenta Witzleb, será que a polícia vai utilizar a tecnologia através das suas bases de dados de imagens existentes ou utilizá-la de forma mais alargada com imagens na posse de outras autoridades públicas ou mesmo com imagens de qualquer pessoa disponíveis ao público?

“É importante conceber diretrizes para esses sistemas que reconheçam devidamente os potenciais benefícios que têm, mas que também admitam que não são infalíveis e que têm o potencial de interferir com os direitos (das pessoas) de forma grave”, aponta Witzleb.

Independentemente da forma como o reconhecimento facial possa ser utilizado, tanto Hoffman como Witzleb afirmam que a presença dessa tecnologia e o aumento do número de câmaras de segurança podem fazer com que os habitantes de Hong Kong se sintam menos livres sob o olhar sempre atento da polícia.

“Quando sentimos que estamos a ser monitorizados, isso afeta também o nosso comportamento e os nossos sentimentos de liberdade”, diz Hoffman. “Penso que existe um elemento de coerção estatal que não tem de estar relacionado com a eficácia da própria tecnologia.”

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