Sábado, Outubro 5

Ronaldo já não é Ronaldo, não. É só uma superestrela

O abraço toca-e-foge entre os capitães Ronaldo e Mbappé no início do Portugal-França é o único momento que vale a pena recordar deste jogo. E não é pelo desempenho de Cristiano Ronaldo em campo. Sobre esse assunto, há textos como este para ler, mas vale a pena falar sobre esta guerra civil entre anti-Ronaldos e pró-Ronaldos que vivemos a cada dois anos desde há 20 anos. De um lado os críticos, do outro pessoas sensatas e clarividentes que compreendem o que está em causa: não é o futebol, é o espetáculo. 

Talvez tenha existido um tempo em que só o futebol importava. Também era o tempo em que as transmissões televisivas começavam no hino e terminavam no apito final. A Internet não existia. Não estava escrito que, no final de cada partida, um ou vários jogadores tinham de falar – dar a cara na vitória e na derrota. Esses tempos acabaram e ainda bem. Ainda bem que vemos os jogadores bem perto a cantarem o hino. Ainda bem que vimos aquela menina a tocar em Cristiano Ronaldo como que a confirmar que era real. Ainda bem que vimos aquele sorriso do Ronaldo para a câmara antes de entrar no estádio de Volksparkstadion. Ainda bem que, no final, vimos aquele abraço entre Cristiano e Pepe. Ainda bem que alguém percebeu que a tática de Roberto Martínez é só uma parte da história. Ainda bem que alguém percebeu que não é apenas o jogo que importa. É a emoção. É aqui, finalmente, que Ronaldo entra. Uma superestrela.   

Pelo menos desde a sua transferência para o Manchester United em 2003 que Cristiano Ronaldo nos dá razões para lhe atribuirmos o lugar de protagonista em todas as produções. Golos às mãos-cheias, recordes, títulos nacionais em Inglaterra, Espanha, Itália, Champions, o pontapé de bicicleta à Juventus que deu golo, aquele cabeceamento que continua a parecer obra da Inteligência Artificial, a vitória no Europeu de 2016 e, mais vale sermos honestos, o corpo de defesas que é a família Aveiro, os carros, os seguranças, os casos judiciais, os filhos que decidiu ter sozinho, Georgina Rodríguez e ser aquele homem que chora sempre que tem de chorar. 

Parêntesis para a questão das lágrimas. 

Uma massa ruidosa de anti-Ronaldos, e jornalistas, surpreenderam-se com as lágrimas de um capitão que falhou um penálti como se fosse a primeira vez que vissem tal coisa, mas os factos são os factos. Se há pessoa que chora é Cristiano Ronaldo: 

– Chorou em 2004 quando Portugal perdeu com a Grécia na final do Euro, em Portugal

– Chorou quando se lesionou no jogo com a França, em 2016, e, como tudo correu bem, no final estava sorridente e disse isto numa entrevista rápida. “Tenho os olhos brilhantes porque já chorei muito hoje”. 

– Chorou depois do jogo que ditou a eliminação de Portugal no Mundial do Catar, em 2022.

– Chorou no jogo contra a Eslovénia neste Europeu. 

– (Quase) chorou esta sexta-feira nesse longo abraço a Pepe. 

As estatísticas do futebol têm passado ao lado deste indicador, mas entre o primeiro registo de choro em público, em 2004, e último, a 5 de julho de 2024, Ronaldo venceu seis bolas de ouro. Um matemático poderia dizê-lo com mais propriedade, mas o rendimento não parece ter sido comprometido pela exibição de sentimentos.

Fecha parêntesis. 

Aceite-se: existe o carisma, existe o rizz e depois existe Ronaldo – a tempestade perfeita entre o  bom atleta (é o que dizem os recordes), o trabalhador incansável (é o que diz quem o conhece) e o irritantemente confiante (“assobiam-me porque sou rico, bonito e um grande jogador” ou “na minha cabeça sou sempre o melhor”) que calha sobressair numa indústria viciada em fãs. Caros pró-Ronaldo, caros anti-Ronaldo, fomos nós que o criámos. 

Criámos o CR7, o GOAT (greatest of all times) do futebol, fizemos deste madeirense a pessoa com mais seguidores do mundo no Instagram – 633 milhões. Quase 4 milhões de utilizadores desta rede social tiraram um nanosegundo do seu tempo para fazer like no seu último post (de incentivo à seleção), ainda assim menos de metade daqueles tiraram um nanosegundo para fazer like no post de parabéns ao filho mais velho.  

 

Futebol não é instagram. Mas é espetáculo. E essa será a melhor resposta para quem pergunta “por que razão Ronaldo é titular?” ou “por que razão Roberto Martínez não o deixa no banco?”. Evitar, quem sabe, o remake do episódio do Portugal-Suíça do Mundial de 2022 com todas as câmaras apontadas ao banco de Portugal. Num evento televisivo transmitido à escala global, em que milhares se aglomeram à porta de hotéis, centros de estágios e aeroportos para ter um vislumbre de Ronaldo, quantos espectadores se perderiam se Ronaldo não jogasse? Quantos neerlandeses, alemães, espanhóis ou ingleses veriam o Portugal-França com o mesmo entusiasmo sem ele? Teríamos passado? Respostas: seria menos interessante, porém não sabemos se estaríamos a fazer as contas para o jogo com a Espanha nas meias-finais. A bem do show, Ronaldo sempre, diriam os pragmáticos.

E, no entanto, algo novo aconteceu neste jogo. Ronaldo, 39 anos, foi mais invisível que nunca, e não é do futebol que se fala. Quase não chorou, não falhou penáltis, não se lesionou, não falou aos jornalistas em nome da seleção. Mais: foi a personagem secundária no drama de Pepe e repartiu protagonismo com o rapaz de 25 anos que aos 10 tinha os seus posters pendurados na parede. Onde os amantes de futebol veem uma saudação entre capitães, os amantes do espetáculo podem ver a “lenda do jogo” (é o que diz Mbappé) a fazer a passagem de testemunho. Ronaldo já não é Ronaldo, não. É só uma superestrela.  

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