Segunda-feira, Outubro 28

País mais poluidor do planeta controla 80 a 90 por cento das matérias-primas indispensáveis às baterias dos carros elétricos, turbinas eólicas e painéis solares

“A dependência de matérias-primas críticas poderá em breve substituir a presente dependência do petróleo”. Este sério aviso está escrito no relatório final da Comissão Europeia relativo ao «Estudo das matérias-primas críticas para a União Europeia», publicado em 2023. A nova dependência levanta questões da maior gravidade. Para começar, põe em causa o modelo – e, sobretudo, o ritmo de aplicação – das políticas de transição energética. No limite, no futuro próximo, ameaça a segurança do abastecimento energético à Europa para satisfazer as necessidades correntes das famílias e das empresas, com destaque para as industriais. 

O assunto ainda não é discutido em Portugal, que continua a ser pioneiro na implementação das políticas comunitárias de transição energética sem qualquer ponderação daqueles riscos. João Bernardo, que foi diretor-geral de Energia e Geologia entre 2018 e 2023, lança o debate em entrevista à CNN Portugal. “Esta transição energética está a ser demasiado brusca, porque as renováveis dependem de um conjunto de materiais críticos – indispensáveis à construção de baterias, carros elétricos, torres eólicas e painéis solares – controlados por países que têm praticamente o monopólio do seu processamento”, alerta o agora presidente do Centro de Biomassa para a Energia (CBE). 

O lítio é a matéria-prima mais popular, devido à massificação dos telemóveis. No entanto, eletrodomésticos, veículos elétricos e tecnologias para a digitalização, dependem de dezenas de outros minérios, em muitos casos raros ou concentrados em áreas geográficas politicamente instáveis. Passa-se o mesmo com as centrais eólicas e solares, já hoje predominantes na produção de eletricidade em Portugal. A OCDE prevê que a procura global por esses materiais críticos mais do que duplique, dos 79 mil milhões de toneladas, em 2023, para 167 mil milhões de toneladas em 2060. “A competição por matérias-primas tornar-se-á feroz na próxima década”, antecipa o relatório da Comissão Europeia. 

“Já é evidente um descompasso entre a oferta e a procura por vários minerais, com níveis particularmente altos observados para o lítio”, descreve o relatório “Geopolítica da Transição Energética”, da Agência Internacional para as Energias Renováveis (IRENA). Esta organização declara-se preocupada com o impacto que este desequilíbrio poderá vir a ter no cumprimento das metas de transição energética.  

A Agência Internacional de Energia (AIE) antecipa problemas de curto prazo no fornecimento de níquel e de terras raras como o neodímio e o disprósio. O próprio lítio, no médio prazo, será insuficiente para as encomendas. “Um enorme aumento na procura de matérias-primas críticas – na maioria dos casos bem acima do ritmo histórico – levanta questões sobre se essa demanda pode ser satisfeita de forma segura”, previne a AIE. Para além disso, adverte os decisores políticos para “as consequências ambientais e sociais associadas à produção mineral”. As populações do mundo desenvolvido reagem mal à exploração mineira ao pé da porta.  

O Conselho Europeu aprovou em 18 de março o Regulamento Europeu das Matérias-Primas Críticas, com o propósito assumido de controlar, até 2030, a origem de 10% e o processamento de 40%. Este ato legislativo constitui a primeira tentativa concreta de mitigar os riscos de interrupção das cadeias de abastecimento. Provavelmente, chegou tarde demais. “Dado que países como a China, os Estados Unidos e mesmo a Rússia já se posicionaram estrategicamente nesta corrida há algum tempo, tanto no continente Africano, como na América do Sul ou na Ásia Central, parece-me muito difícil alcançar essas metas”, adverte João Bernardo. 

Partido Comunista Chinês tem o telecomando da Europa na mão 

De acordo com os dados da IRENA, a China tem uma quota de processamento, a nível mundial, de 100% de grafite; superior a 85% nas terras raras; mais de 70% do cobalto; e cerca de 60% do lítio e do manganésio. Todos estes materiais, juntamente com o níquel, são indispensáveis ao fabrico dos motores dos carros e autocarros elétricos. Problemas nas cadeias de fornecimento destas matérias-primas chinesas colocariam em risco o modelo de transportes públicos que está a ser implementado em Portugal e na Europa. 

Um sistema elétrico dependente da primeira geração de energias renováveis é o segundo elo fraco dos países europeus face ao gigante asiático. A China processa também 100% de algumas terras raras, como o disprósio. Para além de fazer falta aos motores dos veículos elétricos, esta matéria-prima é vital para as turbinas eólicas de alta eficiência, assim como nas barras de controlo dos reatores nucleares. Já o manganês é crucial na produção de aço de alta resistência, imprescindível ao funcionamento de turbinas eólicas e ao fabrico das infraestruturas dos parques solares. 

A China é, de longe, o país mais poluidor do mundo, com 31,58% das emissões de dióxido de carbono do planeta. Os dados do Atlas Global do Carbono mostram que o gigante asiático se destaca no ranking dos países responsáveis pela concentração de CO2 na atmosfera. Os outros quatro são Estados Unidos (14,01%), Índia (7,84%), Rússia (4,58%) e Japão (2,92%). Nos últimos três anos, a China abriu cerca de quarenta centrais a carvão, aumentando a potência instalada em 91 gigawatts (GW), em 2022; outros 107 GW, em 2023; e mais 10 GW nos primeiros seis meses deste ano.  

As novas centrais a carvão chinesas equivalem a nove vezes a potência instalada em todo o sistema elétrico português. “A China continua a utilizar as energias fósseis para manter preços baratos para a sua economia e garantir a segurança de abastecimento do seu sistema energético”, salienta João Bernardo. O antigo diretor-geral de Energia chama também a atenção para o investimento do maior país asiático na investigação e desenvolvimento de tecnologias alternativas e descarbonizadas. “O governo chinês está a tentar dominar as energias renováveis do ponto de vista tecnológico e da inovação, atraindo conhecimento, para quando tiver de fazer mesmo a mudança já estar a liderar este mercado”, comenta. A empresa estatal China Three Gorges, que é a maior acionista da portuguesa EDP, acaba de anunciar um investimento de 11 mil milhões de dólares no deserto do interior do país, combinando as tecnologias eólica, solar e… o carvão.  

O governo chinês ignora por completo os protestos de organizações ambientalistas, como a Greenpeace, e justifica a sua política nos fóruns internacionais com o argumento de que as energias fósseis são mais fiáveis do que as renováveis, por oferecerem ao sistema elétrico potência firme, sempre que ela é necessária, independentemente das condições meteorológicas. Pela mesma razão, anunciou este verão a decisão de construir onze novos reatores nucleares, num investimento de 28 mil milhões de euros.  

O risco da morte anunciada do gás natural 

Os Estados Unidos, segundo maior emissor de CO2 do mundo, seguem igual política de investimento em tecnologias alternativas, mas sem descontinuar abruptamente as fontes tradicionais, como a energia nuclear e as centrais termoelétricas movidas a combustíveis fósseis. O governo federal americano reservou 342 mil milhões de euros de subsídios e descontos fiscais para financiar a deslocalização de empresas de energias verdes da Europa para o seu território. “Isto está a roubar competências e postos de trabalho na Europa e a criá-los do lado de lá”, lamenta João Bernardo. Se a União Europeia não responder com “mecanismos mais assertivos para apoiar as empresas, fixando cá o trabalho e a riqueza, vamos perder a batalha da competitividade à escala mundial”, antecipa o presidente do CBE. 

Em Portugal, os planos de transição energética passam pelo encerramento do gás natural, para produção elétrica e no uso doméstico e industrial. “Se isso acontecer, será um erro grave. Eu sempre defendi, enquanto fui diretor-geral, a importância de mantermos dois vetores de energia: um vetor gás e um vetor eletricidade. Duas redes e duas infraestruturas, para não ficarmos dependentes de um único vetor energético”, argumenta João Bernardo.  

Para o presidente do CBE, o fim da rede de gás natural seria acrescentar uma segunda vulnerabilidade estrutural à economia, por cima da dependência de matérias-primas raras. “Temos de ter muito cuidado antes de cancelar algumas energias, mesmo fósseis, para não nos lançarmos numa aventura que não sabemos onde vai terminar”, recomenda João Bernardo. “O gás natural é crítico para a segurança de abastecimento e um veículo para a introdução dos gases renováveis, como o hidrogénio e o biometano”, justifica este especialista. 

Para além de aconselhar prudência no encerramento de fontes energéticas, João Bernardo elege as áreas de investimento que lhe parecem críticas para a União Europeia. A primeira delas passa pelo aproveitamento dos processos de dessalinização. “A água potável vai ser um recurso cada vez mais crítico, esse investimento vai ter de acontecer”, antecipa. A água da dessalinização é essencial para a agricultura, mas também pode ser aproveitada para a produção de hidrogénio. “Nesta tecnologia não ficaremos tão dependentes de matérias críticas como estamos nas renováveis eólica e solar, porque a água é um bem mais democrático e a tecnologia dos eletrolisadores é dominada pela Europa”, argumenta. 

O hidrogénio deverá depois ser aproveitado para a produção de combustíveis sintéticos. O presidente do CBE considera este investimento estratégico por duas razões: o aproveitamento da rede existente de postos de combustível e a defesa da indústria automóvel europeia da feroz concorrência dos carros elétricos produzidos na China.  

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