Sábado, Outubro 26

Responsabilidade e libertinagem são palavras tão distantes como as duas manifestações que vão parar Lisboa este sábado. Ambos os lados politizam agora a revolta e a insurgência contra as forças de de segurança

“Liberdade implica responsabilidade, se não é apenas libertinagem” e, depois, o outro “problema que existe é confundir-se ordem com comunhão de interesses, estabilidade e com segurança”. As frases são da autoria do politólogo e professor catedrático da Universidade Lusófona, José Filipe Pinto, e visam explicar o clima inflamatório que existe atualmente na sociedade portuguesa, nomeadamente em Lisboa. São também um modelo de simplista de se perceber a transformação dos agentes políticos. “A extrema-direita lida muito bem com a palavra ordem e muito mal com a palavra liberdade. A extrema-esquerda e a esquerda radical lidam muito bem com a palavra liberdade e têm muita dificuldade com a palavra ordem”, começa por explicar.

José Filipe Pinto é perentório em afirmar que o político se transformou e deixou de ser um elemento propagador de acalmia. Ao invés, passou a ser, em certas ocasiões, um instigador de ânimos que parece estar entre os inimigos do Estado de Direito. O especialista em Política e análise do discurso destaca o Chega e o Bloco de Esquerda como principais responsáveis, mas lembra que, “se a extrema-esquerda e a esquerda liberal, a esquerda radical, têm dificuldade em lidar com isso, com a palavra ordem, do outro lado do espetro, faz-se um apogeu da palavra ordem, mas a palavra não é apenas num sinónimo de segurança, é de imposição de modelo que acaba por ser um convite a regimes mais pró-ditatoriais, mais absolutistas”.

“O problema é que liberdade sem responsabilidade é a libertinagem e a extrema-esquerda e a esquerda radical nunca assumem isso. Mas, a extrema-direita, em nome de uma pertença ordem, acaba por impor um modelo único, uma visão única. Não é por acaso que esse líder parlamentar não fala na Segurança, fala na ordem, porque a extrema-direita prefere a palavra ordem à palavra segurança. E é por isso que também falam muitas vezes nas forças da autoridade. Não existem forças da autoridade. A autoridade não existe no próprio, é reconhecida pelo outro. Portanto, há forças de segurança e também não há forças de ordem”, explica José Filipe Pinto.

Odair Moniz morreu com o bala paga pelo Estado na Cova da Moura e a isso seguiram-se noites de tumultos em vários bairros de Lisboa. Em paralelo, o líder parlamentar do Chega, Pedro Pinto, disse, na RTP3, que “se [os polícias] disparassem para matar, o país estava mais na ordem”; a coordenadora-geral do Bloco de Esquerda, Mariana Mortágua foi ao Parlamento afirmar que “nestes bairros esquecidos, o Estado só entra de shotgun e capuz, revista sem antes perguntar o nome, arromba antes de tocar à campainha e dispara sem que seja necessário” e, na rede social X, o dirigente e assessor parlamentar do Chega Ricardo Reis sugeriu que a morte de Odair representa “menos um criminoso… menos um eleitor do Bloco”.

O sociólogo Paulo Machado garante que “concorda em absoluto” com a ideia que há hoje um clima muito mais inflamado do que no passado: “Penso que realmente estamos num novo patamar”. O especialista destaca que esta “nova realidade é uma nova situação político-partidária de posições extremadas”: “O sistema não está a funcionar numa lógica de regulação, antes pelo contrário, está exatamente a desregular e a criar condições para uma tensão”, explica, lembrando que isto, perante a situação atual, “é o pior que pode acontecer” e “é péssimo” do ponto de vista político”. Ainda assim, faz uma diferenciação clara entre os dois extremos políticos, justificando que “algumas das afirmações que foram feitas por parte do Chega são crime e outras, da parte do BE, são apenas disparates; apesar de tudo, o disparate, o erro ou a omissão têm uma gravidade que já não é pequena, mas o incitamento à violência tem uma potencialidade maior, porque está previsto no Código Penal”.

Paulo Machado defende que este tipo de discurso “não é benéfico” para nenhuma das partes: não o é para as minorias, forças de segurança, partidos envolvidos. Nem sequer para os eleitores. O sociólogo refere ainda que as declarações de Pedro Pinto foram “uma provocação política que demonstra falta de cultura cívica” e enaltece que, “para além da liberdade de expressão e da liberdade de opinião há um valor mais elevado que é o valor da tranquilidade social”: “A minha liberdade de expressão não pode corresponder a um incitamento à violência. Isso já não é liberdade de expressão, isso aliás é crime”, explica.

José Filipe Pinto lembra que um país ter um líder parlamentar com este tipo de retórica “é muito perigoso e revela uma posição completamente antissistema”, mas argumenta que “esperar que um discurso comedido do Chega era um perfeito um contrassenso”. O politólogo explana que o Chega “teria sempre um discurso de responsabilização do sistema” em que se tentaria colocar ao lado dos agentes de segurança, mas alerta que o partido de André Ventura “o faz de forma interesseira”. “Mais do que defender a existência de um Estado de Direito, o que pretendem é encontrar descontentes e esta era a postura expectável”, explica o professor.

Quanto à tese defendida também pelo líder parlamentar do Chega sobre “não haver racismo estrutural em Portugal”, Paulo Machado diz que “discorda em absoluto”. O sociólogo fundamenta que a literatura científica é clara: “Somos um país em que o racismo é um dado estrutural”, contudo, ressalva que este fenómeno em Portugal é descrito como “um racismo latente e de certo modo moderado”. “Com isto não estou a dizer que seja bom, apenas que não é tão mau como o que leva as pessoas ao conflito físico e a confrontos”, refere, antevendo que “estes conflitos que temos observado se vão extinguir naturalmente nos próximos dias”.

Todavia, o posicionamento do BE também não foi surpreendente para José Filipe Pinto, que afirma que, neste caso, “este populismo socioeconómico é sempre defensor das minorias, da proteção dos desfavorecidos, dos desprotegidos, daqueles que não se consideram bem integrados na sociedade”. O partido liderado por Mariana Mortágua tem “um discurso em que se coloca ao lado sempre da vítima e a considera as forças de segurança sempre agressor, independentemente dos inquéritos ainda estarem em curso”, explica, assegurando que esta “é uma questão de princípio, uma postura ideológica”.

“Nestes bairros esquecidos, o Estado só entra de shotgun e capuz” | Bloco de Esquerda

Quem “verdadeiramente fugiu a tudo isto foi o PCP”, destaca o politólogo, lembrando que os comunistas têm uma base eleitoral muito semelhante à do BE, mas “teve a atitude responsável e disse que era importante que fosse restabelecido imediatamente aquilo que define um Estado de Direito”. “Não se colocou ao lado nem das forças de segurança nem da vítima, lamentou a vítima e apelou a que a calma fosse restabelecida e que as organizações funcionassem”, argumenta José Filipe Pinto.

Paulo Machado considera que esta alteração de comportamentos e do discurso dos agentes políticos não é uma mudança do “sistema político”, mas sim dos “aparelhos partidários”: “É uma transformação a que ainda estamos a assistir e não conhecemos bem, mas que tem ocorrido em todos os partidos”. Mas porquê? O sociólogo diz que a culpa é da “grande necessidade de captação do eleitorado”, o que motivou adaptações no trabalho de militância e a “algumas situações de radicalização de posições” que, antigamente, estava circunscrita aos congressos dos partidos passou a estar em praça pública.

“A radicalização estava contida dentro dos próprios partidos, mas hoje está a assumir contornos de exposição pública”, explica, referindo ainda que “esta transformação aconteceu a partir do momento em que a extrema-direita deixa de ter uma bancada com dois deputados e passa a ter 50”.

O sociólogo destaca, aliás, que este é o caminho das “democracias maduras” e está a “acontecer pelo mundo fora”. “As democracias maduras têm esta característica que é a ideia de que tudo é razoavelmente aceitável e que a liberdade de expressão prevalece sobre tudo o resto, o que não é verdade”, insta Paulo Machado, explicando que “a liberdade de expressão é apenas um dos aspetos da nossa liberdade, aliás, em termos constitucionais, está respaldada em valores que são bastante mais altos como a tranquilidade, a paz e a preservação da lei”.

Este sábado, o centro de Lisboa vai ser palco de duas manifestações: uma da associação Vida Justa – que pede justiça para Odair Moniz – e outra promovida pelo Chega – de apoio às forças de segurança. Paulo Machado escusa-se a prognósticos para o resultado dos protestos e apenas diz: “Gostava que acabasse bem, mas estou bastante preocupado. Acho que todos nós devemos estar preocupados”. Uma coisa é certa para o sociólogo: este discurso inflamatório e, por vezes, incendiário “não faz bem a ninguém, a rigorosamente ninguém. “É até ofensivo para os polícias, para todos nós, para uma sociedade que de facto não encara a questão como um o conflito étnico. Essa não é uma característica nossa.  E a verdade é que estes casos são muito raros”, culmina Paulo Machado.

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