Quinta-feira, Outubro 24

O cantor romântico de temas como “Dois Amores” ou “Taras e Manias” estava doente com cancro

A cabeça cheia de caracois, o microfone a passar de uma mão para a outra, a voz potente a cantar “Eu Tenho Dois Amores” ou “Ninguém Ninguém”. É assim que iremos lembrar Marco Paulo, o cantor que vendeu milhares discos nos anos de 1980 e se tornou uma das maiores vedetas da canção ligeira em Portugal. 

O cantor, de 79 anos, estava doente há já algum tempo. Foi diagnosticado pela primeira vez em 1996 com um cancro no abdómen. Em 2020, descobriu um cancro na mama, em 2022, no pulmão, e, no fim de 2023, no fígado. Depois de um ciclo de quimioterapia, o tratamento foi interrompido e recentemente multiplicaram-se as notícias sobre o seu estado de saúde. Em entrevista à TV7 Dias, Marco Paulo admitia que tinha já muitas metástases.

Numa entrevista ao Observador, há cinco anos, a  propósito do fim da carreira, dizia: “Às vezes estou sozinho e começo a pensar: como é que vou conseguir despedir-me de uma coisa que me deu tantas oportunidades, tantos momentos de alegria, eu que não sou nada, sou um cantor que as pessoas fazem o favor de gostar de ouvir cantar? Como é que um dia me vou despedir de pessoas a quem dei tanta alegria e que me deram tanta alegria a mim? Não é fácil.” Na verdade, não chegou a despedir-se. Apesar da doença, continuou a cantar e a fazer o seu programa de televisão até quase ao fim.

“Desde que tenho noção do que é cantar, eu cantei sempre”, dizia. Alentejano, nasceu como João Simão da Silva nasceu a 21 de janeiro de 1945 em Mourão. “Era o menino de toda a gente, uma criança muito alegre e bem disposta, não tinha riqueza, não tinha brinquedos, não tinha nada, a não ser as alentejanas que cantavam, andar de descalço e ir para o campo com elas”, recordou o cantor numa entrevista ao podcast “Posto Emissor” do Blitz. “Levantava-me muito cedo para ir com o meu irmão mais velho para a escola, apesar de ainda não andar na escola, porque eu sabia que tinha sempre o pequeno-almoço, um copo de leite e um pão com manteiga.”

Saiu do Alentejo com cinco anos. Devido à profissão do pai, que era funcionário das finanças, morou em várias zonas do país. Num casamento, em Alenquer, subiu a uma cadeira e cantou, em espanhol, a “Campanera”, do Joselito, e a partir daí começou a atuar em festas e nas coletividades na região. “Eu era a grande estrela de Alenquer”. Foi viver para o Lavradio, no concelho de Barreiro, com 16 anos. “A primeira coisa que perguntei ao senhor dos transportes que nos trouxe para o Barreiro, foi se havia ali algum sítio onde pudesse cantar.”

Contou sempre com o apoio da mãe, mas o pai preferia que ele tivesse outra profissão, pois temia que ele tivsse uma vida difícil. Em 1963, começou a ter aulas de canto com Corina Freire. Foi aí que acabou por ser descoberto, durante um ensaio, pela cantora Cidália Meireles, que tinha um programa de televisão de grande sucesso, o “Tu Cá, Tu Lá”. A partir daí, começou a participar em festivais e em espetáculos.

Ficou em terceiro no Festival da Canção da Figueira da Foz com “Vida, Alma e coração”. Depois disso, Mário Martins, da Valentim de Carvalho, convidou-o para gravar um disco. O seu primeiro disco, já como Marco Paulo, foi editado no ano de 1966: um EP com os temas “Não Sei”, “Estive Enamorado”, “O Mal às Vezes é Um Bem” e “Vê”. Era, como disse em algumas entrevistas, “um rapaz com voz potente e com boa figura”, “para aquela época, era como artista de cinema, de novela”.

Marco Paulo num programa da TVI em 2017

Em 1967 participou no Festival RTP da Canção com o tema “Sou Tão Feliz” de António Sousa Freitas e Nóbrega e Sousa.  Tornou-se profissional e foi para a Madeira cantar com Madalena Iglésias. Gravou com Simone de Oliveira o tema “Tu e Só Tu”, uma versão em português de “Somethin’ Stupid”. Interrompeu a carreira durante 18 meses quando foi chamado para a tropa, tendo ido para a Guiné-Bissau onde foi escriturário. Nas férias, vinha a Lisboa e gravava os discos que iam sendo lançados. Continuou a participar em festivais, gravou com o Quarteto 1111, entre outros projetos.

A 25 de Abril de 1974, Marco Paulo estava no Canadá a cantar para as comunidades emigrantes. No regresso, estranhou o país. “Achei isto tudo muito esquisito. Chegar ao aeroporto e ver tanta tropa, tanta gente, tanta euforia. Era o 25 de Abril, era a liberdade, mas como não estava metido na política, nem de uns, nem de outros, não me apercebi de mais nada”, recordou ao Público. 

Ganhou o primeiro disco de ouro com o tema “Canção Proibida/ Ninguém, Ninguém”, 15 anos depois de ter iniciado a carreira. Depois, o single “Eu Tenho Dois Amores”, editado em 1980, tornou-se no seu maior êxito com 195 mil discos vendidos. “Odeio o célebre ‘Dois Amores’”, admitiu ao Público. E explicou: “Primeiro porque cansava-me muito, tinha de puxar muito pela voz na parte final. Depois, achava-a muito repetitiva. E por fim a letra. Aquele ‘tenho dois amores e não sei de qual deles gosto mais’ não era coisa que me agradasse. Soava um bocado a bigamia.” No entanto, não se arrependia de ter gravado. “Eu não tenho de agradar a mim. Tenho de agradar às pessoas. A partir do momento em que um disco vai para o mercado, já não é meu.”

Começou assim a fase de maior sucesso de Marco Paulo, com “Mais e Mais Amor” (1981), “Anita”, “Morena Morenita” (1984), “Joana” (1988 – e tornou-se o primeiro português a ter uma tripla platina), “Sempre Que Brilha O Sol” (1988), “Taras e Manias” (1991), entre tantos outros temas.

“As pessoas ficavam um bocado admiradas, perguntavam-se “porquê o sucesso”, eu respondia “é a minha voz”. Não sou louro, de olhos azuis e não sou muito alto, mas a minha voz possivelmente dá as emoções que as pessoas querem ouvir. Por isso é que sorriem, choram. Representar é a minha maneira de entregar às pessoas aquilo que canto”, explicou ao Observador.

Nesse período de grande popularidade, tanto era idolatrado pelos fãs como desprezado pelas elites culturais. “Saía um disco meu e era platina. Depois lia [na imprensa] ‘tem uma grande voz, canta muito bem, só que as canções…’ Mas o grande público fazia delas grandes sucessos. Quem é que estava enganado? Eu não era. O público não era de certeza absoluta. Só podia ser quem tinha a facilidade de dizer mal do trabalho de uma pessoa”, disse ao Público, admitindo que isso o magoava um pouco. “Estava a tentar fazer o meu trabalho com dignidade, o melhor que conseguia. É a minha profissão e é com isso que ganho o meu pão e que governo a minha casa.”

Marco Paulo no especial de Natal da TVI em 2012

Apesar do sucesso, de encher salas de espetáculos e a pôr toda a gente a cantar as suas canções românticas, manteve sempre “os pés no chão” e dizia que continua a sentir-se do povo. “Grandes produções? Não tenho. Tenho o que é necessário para a forma como devo apresentar-me ao meu público. Foi ele que me pôs lá em cima e eu tenho de lhe dar o melhor. Mas não são grandes produções, porque eu sei o país em que vivo”, disse ao jornal Público. “O meu pai dizia-me para pensar no dia de amanhã e foi o que fiz. Trabalhar, trabalhar e trabalhar para que um dia, se deixasse de cantar, não precisasse de servir-me dos meus amigos. E para demonstrar ao meu pai que consegui organizar a minha vida.”

Em 2016 realizou a Tour 50 Anos, pela comemoração dos seus 50 anos de carreira (1966–2016), com concertos nas salas mais emblemáticas do país, como os coliseus de Lisboa e do Porto. Nesse ano, venceu o Prémio Mérito e Excelência nos Globos de Ouro da SIC. Entretanto, para além dos discos, tornou-se também apresentador de televisão. Fez dois programas na RTP: “Eu Tenho Dois Amores” (1994) e “Música no Coração” (1995). Desde 2021, fazia “Alô Marco Paulo”, na SIC. 

O seu último disco, “Por Ti”, foi lançado em 2021. É das poucas figuras nacionais a ter direito a ter uma minissérie baseada na sua vida (estreou em janeiro de 2023, na SIC).

“Nasci para ser livre, nasci para ser um pássaro que voa e deixem-me voar, voar”, dizia ao “Blitz”. Ao Observador, Marco Paulo admitiu que ainda ficava nervoso antes de entrar em palco porque sentia que era uma enorme responsabilidade: “Praticamente, no palco alimento-me: bebo, como e respiro o palco. Tenho o maior respeito pelo palco. O palco é a minha vida e tenho de corresponder, dentro das minhas possibilidades. Tenho de escolher um reportório e fazer um concerto em que as pessoas se sintam mais felizes, porque eu já estou feliz”. 

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