Segunda-feira, Outubro 28

Os jornais americanos têm uma tradição que os portugueses encaram com estranheza: declaram, num editorial, o seu apoio a candidatos a cargos públicos.

Contrariamente à tradição portuguesa, os editoriais da imprensa americana não são escritos pelo director da publicação. Um Conselho Editorial escreve os editoriais e gere as páginas de opinião, numa redacção separada.

Presidentes, senadores, governadores são alvo de uma avaliação política. O The Wall Street Journal, por exemplo, apoia candidatos republicanos e a sua redacção é jornalisticamente impoluta. A do The Washington Post, também, e tradicionalmente, o jornal apoia candidatos democratas. Até há uns dias.

Numa decisão chocante que o conduziu a um verdadeiro Largo do Pelourinho o dono do jornal Jezz Bezos (sim, esse, o também dono da Amazon), decidiu que o jornal não publicaria um editorial, já escrito, de apoio a Kamala Harris.
                                                                           
O novo “publisher” do Post, William Lewis, que Bezos importou da Fleet Street, em Londres, escreveu uma justificação mentirosa – que não deve custar muito a quem já trabalhou para os tablóides de Rupert Murdoch e cuja selecção deixou perplexa a capital americana – alegando, a 11 dias das presidenciais deste ano, que o jornal voltaria à tradição de não apoiar candidatos, dias depois de ter publicado editoriais de apoio a candidatos ao Senado e à Câmara dos Representantes.

Lewis escreveu que o Post apoiou candidatos antes de 1952, quando o jornal se colocou ao lado do republicano Ike Eisenhower, devido, sublinhou “às circunstâncias especiais daquele ano” que não mencionou mas creio estarem relacionadas com o facto de o adversário de Eisenhower, nas primárias, William Howard Taft, ser um convicto isolacionista.

Mas essa não foi a razão por que o Post decidiu não publicar o editorial de apoio a Kamala Harris. O próprio Post revelou que o editorial foi proibido por Bezos, que não apresentou qualquer justificação. Tanto quanto se sabe, foi ‘Eu sou o dono e eu digo que não’.

Bezos está a ser acusado de se ”encolher” perante Donald Trump. Um dos editores do jornal demitiu-se, um cronista de há 25 anos também. Os lendários Bob Woodward e Carl Bernstein criticaram a decisão, assim como 18 cronistas de opinião do jornal. Milhares de pessoas cancelaram as assinaturas.

Mas Bezos não está incomodado. O The Washington Post não é seu negócio. O seu negócio é a gigantesca Amazon e a empresa espacial Blue Origin, entre outras.

Em 2023, o Post registou prejuízos 77 milhões de dólares. A Amazon lucrou 30 mil milhões de dólares, dos quais 9,5 mil milhões têm origem na Amazon Web Services (AWS). Em 2018 Jeff Bezos processou Donald Trump, acusando-o de interferência política no concurso para o fornecimento de serviços de “cloud” ao Pentágono. Em 2022, com Trump fora da Casa Branca, o contrato, de quase 10 mil milhões de dólares acabou por ser repartido entre a Amazon WS, Google, Oracle e Microsoft. 

Mas, agora, Trump pode voltar. E Bezos tem vários negócios que dependem de contratos com o governo federal. Para além do Pentágono, um contrato de 600 milhões com a CIA e outro da sua Blue Origin de 3,4 mil milhões de dólares para construir uma nave lunar para a NASA.

No dia em que o editorial de apoio a Kamala Harris foi proibido, executivos da Bkue Origin reuniram-se com Trump, suscitando acusações de que Bezos está a tentar proteger os seus negócios da retaliação certa do republicano que há anos o insulta e ataca, por causa do The Washington Post.

E há uma outra razão importante. Elon Musk, da Tesla, Twitter (agora X) e outros projectos incluindo a empresa espacial SpaceX… é o novo “bestie” de Donald Trump.

Presentemente, três empresas americanas produzem veículos espaciais: Boeing (que tenciona vender este ramo), SpaceX e Blue Origin. Jeff Bezos nunca será amigo de Trump, mas parece a posicionar-se para, pelo menos, assegurar que Trump não prejudica os seus negócios e manter a viabilidade dos contratos federais das suas empresas.

O The Washinton Post, que adoptou o mote “A Democracia Morre no Escuro” em 2017, um mês depois da investidura de Donald Trump apagou uma luz:  não todas, mas uma luz importante, apagada para sujeitar a interesses empresariais o que devia ser uma tomada de posição por uma candidata decente, dedicada ao serviço público e honrada… e contra um homem vil, boçal e um perigo para a democracia.

De um projecto de vaidade de um homem rico, Post passou, pelo menos em parte, a ser um instrumento dos interesses empresariais do seu dono.

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