Sábado, Outubro 19

ENTREVISTA || Jorge Moreira da Silva diz que os cidadãos estão a mudar e a exigir cada vez mais mudanças na sustentabilidade que os líderes não podem ignorar. O responsável acredita que “ainda vamos a tempo” de cumprir as metas 2030 mas temos de acelerar. “O que nos falta, basicamente, é uma noção de urgência”, diz. “A economia só será sustentável se for verde”

Jorge Moreira da Silva é subsecretário-geral da ONU e é diretor executivo da UNOPS, agência operacional das Nações Unidas para apoio a parceiros na implementação de projetos de ajuda humanitária. De visita a Lisboa, participou esta sexta-feira na CNN Portugal Summit sobre Economia Verde, onde conversou sobre transição justa e solidária. 

A entrevista pode ser vista na íntegra no vídeo no topo desta página, tendo sido a transcrição que se segue sido ligeiramente editada para efeitos de dimensão e clareza.   

CNN Portugal – Num mundo permanentemente em crise – com guerras, conflitos, crises de refugiados… – como é que se consegue fazer prevalecer uma agenda ambiental e de sustentabilidade, que assim passa a secundária?
Jorge Moreira da Silva – Não há alternativa. Isto é, a alternativa não está entre crescer ou proteger o ambiente, não está entre promover o bem-estar social ou desenvolver a economia. Nós temos de encontrar uma forma de compatibilizar as três dimensões – e tal é perfeitamente possível. Ora, o problema que temos hoje, à escala global, não é um problema de trajetória, é um problema de velocidade e é um problema de solidariedade.

Aquilo que mais me preocupa, neste momento, não é a dimensão tecnológica, não é a capacidade de investigação científica de criar formas disruptivas de descarbonizar, não é o engenho humano, não é a ciência, não é o conhecimento, não é sequer a sensibilização da opinião pública, dos empresários, do setor financeiro – nós neste momento temos tudo isso. O que nos falta, basicamente, é uma noção de urgência. A velocidade tem de ser muito maior. Mesmo que a direção possa estar já mais ajustada – e está -, a velocidade é altamente insuficiente.

E depois há um problema de solidariedade, que também não existe. E vou dar dois ou três números para que se perceba o tamanho do problema.

Nós, em 2015, à escala internacional com o Acordo de Paris, fixamos o objetivo de limitar o aumento da temperatura a 1,5°C face ao período pré-industrial. Nós já estamos além de 1,2°C neste momento. E se olharmos para o somatório das metas todas dos países, as metas que levámos para Paris e que ainda hoje são válidas, nós estamos numa trajetória de aumento da temperatura de 2,5 a 2,9 graus. Portanto, Paris não está a cumprir Paris.

Temos um segundo problema que é os políticos, os chefes de Estado e de Governo, à escala global, anunciam neutralidade carbónica para 2050, quando já não estarão no exercício de funções, mas não estão a fazer aquilo que têm que fazer até 2030. E os números não enganam. Aquilo que os cientistas nos disseram é que para termos 1,5 graus no final do século e neutralidade carbónica em 2050, teríamos de reduzir as emissões em 43% até 2030 – nós vamos ter mais 11% em 2030; teríamos de reduzir as emissões em 9% ao ano – nós estamos a aumentar as emissões 1% ao ano. Portanto, apesar de toda esta conversa, da narrativa, da sensibilização, do alinhamento, não estamos com a velocidade necessária.

Depois temos um terceiro grande problema, que é o financiamento. Para descarbonizarmos, para protegermos as pessoas e o planeta e atingir a neutralidade e um grau e meio, teríamos de gastar por ano 6 “trillion” dólares – portanto, na nossa [métrica], seis biliões de dólares [o equivalente a 5,52 biliões de euros, ou 5,42 milhões de milhões de euros]. Neste momento, o financiamento está na ordem de 1.2 [biliões], portanto, uma sexta parte do que seria necessário. E aquilo que eu convoco as pessoas que nos estão a ouvir na CNN é porem-se no lugar do primeiro-ministro, do Presidente, do ministro das Finanças ou do ministro da Indústria e da Energia de Moçambique. Coloquem-se no papel desse Chefe de Estado ou de Governo ou desse ministro e digam-lhe que é a altura de ser verde, de descarbonizar. Um país que apanhou com os ciclones todos, com o Idai, com áreas devastadas por inundações, por seca, fenómenos climáticos extremos. Dizer a esse país que tem emissões per capita de uma tonelada per capita por ano, quando os Estados Unidos são 15, dizer a esse país que é a altura de ser verde, quando se sabe que nesse país existe pobreza, que não há eletricidade.

Temos 750 milhões de pessoas no mundo que não têm eletricidade. Temos dois mil milhões de pessoas que cozinham com lixo e com lenha. Temos 700 milhões de pessoas que se deitam todos os dias sem ter tido uma refeição decente. E vamos dizer a essas pessoas que está na altura de sermos verdes… Isto não vai funcionar sem solidariedade e sem ajuda internacional. E é aqui que eu estou, é aqui que eu perco o sono.” Jorge Moreira da Silva

Nós neste momento, nesta altura do esverdeamento da economia, temos 750 milhões de pessoas no mundo que não têm eletricidade. Nem é nem branca, nem verde, nem amarela, nem cinzenta: não têm eletricidade. Temos dois mil milhões de pessoas no mundo que cozinham com lixo e com lenha, porque não têm outra forma sustentável de uso de combustíveis, ou fósseis ou outros, ou limpos, para cozinhar. Temos 700 milhões de pessoas que se deitam todos os dias sem ter tido uma refeição decente. E, portanto, vamos dizer a essas pessoas que está na altura de sermos verdes… É evidente que está na altura de sermos verdes, mas isto não vai funcionar sem solidariedade e sem ajuda internacional. E é aqui que eu estou, é aqui que eu perco o sono. Porque eu noto que a tecnologia está a avançar, que a descarbonização é possível, é proveitosa, gera dinheiro, gera negócio, gera postos de trabalho, gera riqueza, mas não vai funcionar para todos.

Porquê?
Temos uma falha de mercado a nível internacional, estes países têm que sair da pobreza, são ainda por cima países que para sair da pobreza vão ter que crescer. Se crescerem da mesma forma que nós crescemos – na economia do fogo, na economia do carvão e do petróleo -, nós não vamos chegar a um grau e meio, podemos dizer adeus [a esse objetivo]. Eu espero que as pessoas em casa percebam, o cidadão consumidor, o cidadão contribuinte, o cidadão eleitor, que quando se fala de ajuda pública ao desenvolvimento, que é uma rubrica muito pequenina do Orçamento de Estado – Ninguém fala disso, uma rubrica muito pequenina do Orçamento de Estado, são menos de 500 milhões de euros, Portugal tem 0,19% do seu PIB atribuído à ajuda pública ao desenvolvimento quando devia ser 0,7% – quando nós falamos dessa coisa pequenina que é a ajuda pública ao desenvolvimento, convém as pessoas terem noção que o nosso futuro é em Lisboa, no Porto, em Terras de Bouro, o nosso futuro está dependente disso. Porquê? Porque se nós não ajudarmos os outros na descarbonização, não vai dar.

A nível global, isto só funciona se houver um salto enorme na generosidade do Norte em relação ao Sul. Jorge Moreira da Silva

No planeta não há correlação entre o sítio onde as emissões são emitidas e o sítio onde os efeitos se fazem sentir. É a grande injustiça neste momento. Os países mais pobres são aqueles que apanham com as consequências maiores da mudança climática, apesar de emitirem muito pouco. O problema é mesmo esse: nós temos falhas de mercado, porque há gente que vai ficar para trás dentro de cada país, incluindo em Portugal. E é função dos governos, nesta revolução energética, usando o Orçamento do Estado e política pública para apoiar as pessoas que vão ficar para trás, porque há gente que vai ficar para trás, há empresas que vão ficar para trás e o mercado não vai resolver isso sozinho, o “carbon pricing”, a internalização das externalidades ambientais não vai resolver isso, é função dos governos, apoiar as pessoas e as empresas que vão ficar para trás. E a nível global, isto só funciona se houver um salto enorme na generosidade do Norte em relação ao Sul.

Não é fácil convencer países onde há mais pobreza a terem políticas mais sustentáveis, quando países mais ricos não a têm eles próprios. O que falta? Dinheiro? Solidariedade? Ou solidariedade e dinheiro são neste caso a mesma coisa?
Bom, não falta dinheiro…

Não?
… Eu vou dar um número que poderá surpreender. O nosso problema não é falta de dinheiro. nós temos 466 “trillions” de dólares – portanto, 466 biliões de dólares – disponíveis no mercado financeiro, nos fundos de pensões, no mercado de capitais. E precisamos de quanto? Em contas fáceis, de quanto precisamos para chegar a um grau e meio no final do século e neutralidade carbónica em 2050 e 45% de redução em 2030? Nós precisamos, para cumprir os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que estão neste pin [aponta para um pin na lapela do casado que representa os ODS], precisamos de quatro “trillion” a mais para apoiar os países em desenvolvimento. Dentro destes quatro “trillion”, 2,4 são para alterações climáticas e 1,7 “trillion” são para energia limpa. Portanto, as contas são fáceis de fazer: para acabar com a pobreza e esta tragédia de insustentabilidade a nível global, são quatro biliões. Ora, dos 466 “trillion” que estão disponíveis, nós precisamos de mobilizar menos de 1% para o desenvolvimento sustentável. 1%! Bastaria 1%! O que significa que o problema não está na disponibilidade de financiamento.

Está onde?
Em três coisas:

Está nas políticas públicas, porque não há investimento se não houver políticas públicas que possam dar aos investidores a garantia de que esse investimento é reprodutivo, é previsível, é estável – e eu tenho dito a chefes de Estado e de Governo dos países em desenvolvimento, “cuidado, porque se não se reformarem, não vão conseguir atrair o investimento”.

Há uma segunda dimensão que é trazer o setor privado para isto. O setor público não vai ser suficiente. Outro número: a ajuda pública ao desenvolvimento, neste momento, quanto é que é? 233 mil milhões. Nós precisamos de quatro milhões de milhões. Portanto, a parte pública é uma ínfima parte daquilo que é necessário. Vamos ter de aumentar a parte pública, os governos vão ter que financiar mais os países mas vamos ter que trazer investimento privado, sob pena disto não funcionar.

A tragédia não é a disponibilidade de financiamento, é o não alinhamento do financiamento com aqueles que mais precisam. 66% do potencial solar no mundo está em África. Quanto dinheiro vai para a África para energia? Apenas 1 a 2% de todo o investimento anual em energia. É uma estupidez!” Jorge Moreira da Silva

A tragédia não é a disponibilidade de financiamento, é o não alinhamento do financiamento com aqueles que mais precisam. Volto ao tema de África. 66% do potencial solar no mundo está em África, em especial na África subsaariana. Quanto dinheiro vai para a África para energia? Apenas 1 a 2% de todo o investimento anual em energia. Continente que representa 60% do potencial solar do mundo! É uma estupidez! Além de ser uma grande injustiça, é uma enorme estupidez.

O meu ponto é este: tem que haver uma intenção clara dos primeiros ministros de olharem para o apoio aos países em desenvolvimento com uma intenção deliberada, não é uma rubrica no Orçamento de Estado que se visita na última hora. Não, tem que haver uma intenção deliberada, um compromisso para coisas que já só vão ter benefício prático depois dos primeiros ministros e dos chefes de Estado saírem de funções.

Há aqui uma dimensão de solidariedade intergeracional e aquilo que me preocupa é a dimensão da economia política. Como é que nós conseguimos acabar com a conversa do aqui e do agora? O aqui e o agora não vai funcionar. Nós precisamos do aqui e do ali. Se a lógica for apenas o do dia-a-dia e da próxima eleição e não da próxima geração, não vai funcionar.

Eu tenho uma grande esperança, porque os números batem todos certo. Temos uma duplicação do investimento em energia limpa na última década. Segundo dados que a Agência Internacional de Energia publicou ontem, até 2030 as energias renováveis representarão 50% da eletricidade a nível mundial. Temos níveis de progressão do solar, do eólico, da mobilidade elétrica que são assinaláveis. Mas para isto funcionar, os números não enganam, precisamos de quatro vezes mais energias renováveis até 2030, precisamos de 2 a 3 vezes mais eficiência energética, 18 vezes mais mobilidade elétrica. E, se fizermos isto, qual é a boa notícia? O PIB vai aumentar. O PIB vai aumentar 0,4% ao ano se fizermos isto. Portanto, é mesmo possível.

Há pouco parecia mais pessimista.
É verdade que eu trouxe uma dimensão no início da conversa que não é pessimista, é realista. Mas ao mesmo tempo temos hoje noção que isto é não só urgente, mas é também possível e é proveitoso. Gera negócio e gera emprego.

Convém as pessoas terem noção que os Orçamentos de Estado são instrumentos morais, são escolhas morais.” Jorge Moreira da Silva

Já falou duas vezes de Portugal e do Orçamento de Estado. Está a fazer uma crítica específica ao nosso governo?
Não. Não estou, até porque não posso, estou fora dessas funções nacionais e nem sequer estou a acompanhar muito a situação política nacional. Estou apenas a dizer que esta é a altura em que se fala de orçamentos a nível nacional e convém as pessoas terem noção que os orçamentos são instrumentos morais, são escolhas morais. Os orçamentos têm que comportar um sentido de propósito. E o sentido de propósito não pode ser o do aqui e do agora. Tem que ser um sentido de propósito do aqui e do ali, e do agora e do depois, de amanhã.

Temos também de olhar para temas da fiscalidade. A nível global, de uma forma que não seja preguiçosa. Há muitos anos que digo isto: olharmos para a fiscalidade, fiscalidade que é essencial para a justiça climática, para a transição. Os países têm instrumentos para promover a igualdade e a equidade em torno do financiamento e da política fiscal. Ora, nós falamos de fiscalidade de uma forma preguiçosa, que é a mesma forma quando nos pomos em cima de uma balança para saber se o peso aumentou. O que interessa não é o peso, é a massa muscular e a massa gorda. Massa gorda são impostos sobre o trabalho, sobre a riqueza. O que é que é a massa muscular? É o ambiente. A massa muscular é aquilo que nos permite entregar um dividendo ambiental, social e económico em simultâneo. Demasiados impostos sobre o trabalho e sobre a riqueza são gordura.

Quando fiz a Fiscalidade Verde em Portugal, em 2014, [disse que] temos que tributar mais aquilo que é massa gorda, que é a poluição, para tributar menos aquilo que é massa muscular, que é o trabalho e a riqueza. Ora, esta lógica, num quadro de neutralidade fiscal, faz parte da transição justa, da justiça climática, e receio que se percam muitas oportunidades, quando se fala de Orçamento do Estado, para escrutinar esta dimensão de desenvolvimento sustentável dos países.

A limitação do aumento da temperatura a 1,5°C não é um objetivo, é um limite físico.” Jorge Moreira da Silva

Vamos olhar para três blocos: Europa, Estados Unidos e China, e o que é que cada um está a fazer. A Europa está num processo de necessidade de industrialização, com uma agenda política marcada pelo “Green Deal”. A Europa está na trajetória certa mas também tem um problema de velocidade?
Bom, aquela ideia que muitas vezes é criada de que a Europa vai à frente e que faz mais do que os outros, e que não podemos fazer demasiado porque depois penalizamos a economia, isso já não bate certo com a realidade. Cuidado, porque às vezes os números revelam evidências que não batem certo com as narrativas. A China, o que está previsto é que terá mais energias renováveis na produção de eletricidade em 2030 do que toda a produção de eletricidade nos Estados Unidos…

A China já não é o “mau da fita”.
Não, o que eu estou a dizer é que nós estamos numa competição global pelo desenvolvimento sustentável. Qualquer lógica que seja “não podemos fazer demais, porque arriscamos a ter prejuízos económicos” é uma lógica de vistas curtas. A economia só será sustentável se for verde. E, portanto, a escolha que temos que fazer é se queremos liderar ou se queremos seguir. E acho que aqueles que têm vantagem do pioneiro não podem desperdiçar essa vantagem e essa responsabilidade. E cuidado, nós vamos ter uma COP daqui a duas semanas, em Baku, no Azerbaijão, e uma outra COP em Belém do Pará, no Brasil, daqui a um ano. E o que é suposto é que os países, a União Europeia e todos os países, levem novas metas, incluindo Portugal. Novas metas que nos coloquem na trajetória de 1,5°C e não de 2,5°C. Não há alternativa. Os 1,5°C não é um objetivo, é um limite físico. Não é uma escolha que uns burocratas decidiram numa COP das alterações climáticas, que era um número que fazia sentido. Não, é mesmo um limite físico. Se nós não limitarmos o aumento da temperatura a 1,5°C, a disrupção dos sistemas, dos ecossistemas e de todos os limites físicos colocam-nos numa situação de absoluta insustentabilidade.

Mas mesmo que atinjamos 1,5°C, já há uma fatura que vamos pagar pelo mal que foi feito. Isto é uma verdade muito inconveniente, lamento partilhar isto: mesmo que amanhã fizéssemos tudo bem, zero emissões, as consequências das últimas décadas vão gerar 38 “trillion dollars”, até 2050, anuais, de prejuízos na economia e na sociedade relacionados com a mudança climática. O que significa que a adaptação não pode ser vista como um tema menor. A mitigação é o tema que ocupa normalmente ocupa estas conversas, reduzir as emissões. Mas é preciso termos políticas públicas para proteger as pessoas na costa, no interior, encontrar formas de nos adaptarmos a uma mudança climática que já é inexorável e incontornável.

E depois há escolhas difíceis. As pessoas em Lisboa estão disponíveis para pagar mais para que quem vive em Terras de Bouro possa ter uma vida melhor e proteger os ecossistemas? É que é esta conversa que nós temos que fazer. Porque não é justo pedir às pessoas que estão em Terras de Bouro, no Parque Nacional do Gerez, ou que estão no Douro Internacional ou no Montesinho, que não construam, não façam, não edifiquem, porque temos que conservar e proteger os ecossistemas, e depois nós, confortavelmente, em Lisboa ou em Nova Iorque ou em Londres, fazemos a nossa vida, e aqui-del-rei quando há alterações climáticas e há incêndios, porque aquelas pessoas não trataram da floresta.

Há aqui escolhas que não são inócuas do ponto de vista político. E eu acho que nós não estamos preparados para esta conversa. Aquilo que mais me confrange ou mais me inquieta é sentir que vivemos num ambiente de discussão política sobre alterações climáticas que anda muito pela rama, pela superfície, mas não entramos na escolha difícil que é preciso fazer.

Nós temos que tirar pessoas de algumas zonas do litoral. Estamos preparados para fazer isso? Estamos preparados para dizer que há zonas do país onde não se pode construir, que é preciso retirar de lá as pessoas para proteger aqueles ecossistemas?

Eu tentei demolir casas na Ria Formosa em 2014, 800 casas, consegui demolir 400, depois disso legalizou-se a ilegalidade e já não há mais demolições. Aquilo vai ser tudo destruído, por alguma razão se chama Ilhas Barreira. Convém irmos de norte a sul do país, falando de Portugal, e ver se estamos preparados para fazer conversas difíceis sobre incêndios, sobre proteção da costa, sobre ordenamento do território. Portanto, isto não vai lá com conversa de

É uma conversa política descomprometida?
Na escolha da política pública, fala-se de fiscalidade, taxa de carbono. Eu introduzi a taxa de carbono em 2014. A fiscalidade verde é violada desde 2014! Sistematicamente, em todos os Orçamentos do Estado desde 2015, a regra da Fiscalidade Verde está a ser violada. Porquê? Porque o artigo 50 da Fiscalidade Verde dizia que era obrigatório haver neutralidade fiscal e que todas as receitas geradas pelos impostos ambientais, nomeadamente a taxa de carbono, teriam que dar origem a uma redução da fiscalidade sobre o trabalho e sobre as empresas e benefícios fiscais para a eficiência energética. Funcionou quando? Um ano. Teria que funcionar todos os anos. Temos mais de mil milhões de euros da taxa de carbono, nos últimos anos, que não foram devolvidos aos cidadãos com a redução de IRS. Ora, aquilo que eu quero dizer – e estou a falar apenas num caso de um país, posso falar a nível mundial porque o mesmo acontece – é que não vamos chegar a transições justas e a um grau e meio se depois, nas políticas públicas do dia a dia, no ordenamento de território, na agricultura, na energia, isto não funcionar.

Nós achamos que Portugal é um país fantástico em energias renováveis. É. Mas somos um mau exemplo da eficiência energética. Muito mau exemplo. Nós podemos ser campeões na eficiência energética, nas energias renováveis, mas deitamos pela janela fora energia e água, com as perdas de água e a perda de energia na eficiência. A agricultura não está a fazer aquilo que tem que fazer para reduzir as emissões.

Os Objetvos de Desenvolvimento Sustentável, definidos em 2015, eram 17, com 169 metas. Menos de 20% estão implementadas e provavelmente não serão cumpridas as metas de 2030. Isso é uma derrota da ONU, nomeadamente do secretário-geral António Guterres? Onde vai buscar o seu otimismo perante isto?
Nós ainda vamos a tempo de cumprir. Nós estamos com menos de 20% das metas em fase de cumprimento, mas se houver vontade política dos Estados – porque as Nações Unidas são “as” Nações Unidas, no fim do dia, o que é necessário é que aquilo que se assina em Nova Iorque seja depois traduzido em coisas práticas nos vários países, e isso onde é que se faz? Nos Parlamentos e nos Conselhos de Ministros.

Aquilo que tem que ser escrutinado não são os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. O que tem que ser escrutinado é a inação daqueles que têm que tomar decisões para os fazer cumprir. Há um cansaço generalizado dos cidadãos em relação a este incumprimento, ou como dizia uma antiga Presidenta da Assembleia da República, um inconseguimento.

Bastava acabar com os subsídios aos combustíveis fósseis para termos mais do que era necessário para financiar o desenvolvimento sustentável e as alterações climáticas. Mas é este tipo de conversa que vai começar a fazer-se na rua. E eu acho que os políticos ainda não perceberam isso. Os cidadãos, consumidores, contribuintes e eleitores estão cada vez mais interessados, em especial os mais jovens, em perceber como é que isto se está a conseguir em termos práticos no nosso país, na nossa cidade, na nossa empresa.

 

Os eleitores não são eternos e os consumidores não são eternos. Cuidado, cuidado para os partidos e para as empresas, não se fiem na eternidade dos vossos eleitores e dos vossos consumidores. Isto está a mudar muito depressa e convém que as lideranças sejam lideranças servidoras, como dizia Nelson Mandela, lideranças cujo sucesso se deve medir não pela sua própria carreira ou pela vitória dos seus partidos ou das suas ideologias, mas pelo impacto prático que se gera na vida das pessoas. E é isso que neste momento está em jogo e nós vamos a tempo, nós vamos perfeitamente a tempo, mas este é o momento de fazer uma escolha, que é, como diz o Secretário-Geral, é o “breakdown” ou o “breakthrough” [é a avaria ou o avanço]. Temos uma escolha a fazer. E é em 2024, em 2025, não é em 2030. É agora, porque a janela está a fechar-se e depois de 2030 já será tarde demais para atingir 1,5 graus.

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