Domingo, Outubro 27

REPORTAGEM || Partiu já fora de horas, só quando Ventura chegou, fez-se quase sem incidentes e sem surpresas nos discursos

Molha-parvos. 

Diz-se que é “molha-parvos” uma chuva miudinha e persistente. Às duas da tarde, uma hora antes da contra-manifestação do Chega, de apoio às polícias, talvez esta chuva afastasse participantes, que se concentravam já na Praça do Município, mas em tão pequeno número, meia centena se tanto, que eram mais até os polícias — também de si poucos. 

Ao raiar do sol chegariam mais e mais, e chegariam, num carro de alta cilindrada, com os vidros fumados e de motorista privado, três deputados do partido: Pedro Pinto, Rui Paulo Sousa e Cristina Rodrigues. São recebidos como verdadeiras pop stars, cumprimentam os manifestantes quase um por um, distribuem beijinhos e calorosos abraços, tiram selfies ainda. A grande estrela pop viria um pouco mais tarde, e não, não é ainda André Ventura: é a jovem Rita Matias, que agradece, sorridente, aos manifestantes pela participação — que, quase às três horas, é na casa do meio milhar —, e toda a cerimónia é captada por diversos videógrafos do partido. A ver num tik-tok perto de si. 

Enquanto não vem o homem da tarde e de quem já todos falam, e anseiam, um funcionário do partido elevará a voz: “VOLUNTÁRIOS! Só os de colete, VOLUNTÁRIOS!, juntem-se, juntem-se aqui…” E juntam-se perto de 50.  Todos eles homens, quase nenhum jovem. É hora do briefing: o trajeto, “vamos pela Rua de São Paulo”, o comportamento, “isto é para se ouvirem mas sem provocação”, e o que se entoar: “Polícia, amigo, o Chega está contigo” ou, usando ainda das rimas, “Bandido, ladrão, o teu lugar é na prisão”. O briefing terminou, mas agora numa espécie de escolha de equipa de futebol na aula de educação física do liceu, o funcionário do Chega tem que decidir quem é que irá à frente. “Eu nasci em Moçambique, eu vou, de pretos e monhés sei eu bem”, atira de chofre um homem de colete. O pedido é acedido entre risos. 

Entre os que estão presentes na Praça do Município, agitam-se bandeiras do país, à qual se sobrepõe a do Chega, branca. Às vezes, de longe, com genica de punho, parecem bandeiras da Palestina. 

Passam já quase 20 minutos da hora do início da manifestação, e de se partir com destino à Assembleia, e ainda nem sinal de Ventura. Os deputados aproveitam para beber café. Lá, na esplanada, uma mulher, jovial mas não jovem, em videochamada, vai mostrando a envolvente e diz ao telefone: “Estava à espera de mais gente por acaso. Os pretos? Acham que estão nos Restauradores…” Logo do lado, três jovens, raros — não pelo seu discurso mas pela sua juventude —, revolvem no “problema da imigração”. Qual é? “Ó irmão, se tu e a tua chavala ganham mil paus cada um, como é que tu vais arranjar uma casa, diz lá?! E estes gajos [imigrantes] vêm para cá, só têm é filhos, e recebem esses mil paus do Estado, irmão. Assim um gajo não consegue!” 

São 15h20 e pede-se aos manifestantes que se aproximem da estrada principal. O motivo é a chegada de André Ventura, claro, que é recebido apoteoticamente, messianicamente, gritam-lhe o apelido, “VENTURA! VENTURA! VENTURA!”, mas é curta a apoteose, porque Ventura precisa de falar às televisões para chegar a massas que não aquela. Assim que terminam os diretos da televisão, arrancam os manifestantes, Ventura aos comandos.

Até aqui não se ouvira uma palavra só às polícias, mas logo nos primeiros metros percorridos — e nos primeiros metros torna a chuva —, canta-se “VIVA A POLÍCIA!” e “NEM MAIS UM POLÍCIA MORTO”, cânticos intercalados com “VENTURA, VAI EM FRENTE, TENS AQUI A TUA GENTE”. Os turistas observam espantados, os comerciantes, maioritariamente indostânicos, desconfiam, e o líder segue em frente e a gente atrás. A primeira tentativa de entoar o hino nacional acontece já na Rua de São Paulo. À frente escuta-se bem, atrás, junto ao carro-vassoura da PSP é que nem tanto. Quem lá vem atrás é Maria José. Tem 79 anos. Segura a bandeira. “A nacional, a do meu país, não é a do Chega!” Maria José não é do Chega, “nem sei em quem votava se votasse hoje”, nem uma nacionalista. “Eu estou aqui pelos polícias. Não é? Por amor de Deus: se nós não os apoiamos, aos polícias, quem é que os vai apoiar? Os bandidos?!” Está sozinha. “O filho está no trabalho e o neto foi ao ginásio, têm uma vida muito ocupada, de maneira que eu vim sozinha. Só que já fui vista na televisão, na internet. Vergonha? De maneira nenhuma, de maneira nenhuma!, só estou a apoiar a polícia. Estou preocupada, sinto o país demasiado inseguro, há demasiado vandalismo. Andam à solta, é preciso meter mão nisto”, explica-se. 

E explica também o motivo de vir mais atrás na manifestação: “Eu pedalada tenho. Não quero nem tenho idade é para as confusões. Assim, venho mais atrás e se vejo que há confusão, fujo. Percebe? Apareceram aí uns mafiosos [na Rua de São Paulo], a polícia atacou logo…” Maria José, certa, segura, tem, contudo, um lamento: falta gente. E jovens à manif. “Os jovens de hoje não vêm. Você olha e só vê cabeças brancas. Os jovens não estão para se chatear com isto. Os velhos é que estão preocupados. E isto é uma minoria, é muito pouca gente, mas ao menos a nossa polícia já fica a saber que estamos com eles.”

Já quase em Santos, um homem nos seus 60 irrita-se perante o que diz ser o eclodir da “guerra civil entre nós e os outros”. Que guerra? Quem é o “nós” e quem são os “outros”? Para ele, os tumultos desta semana são nada mais que “um aproveitamento generalizado das minorias étnicas”. “E isto já me preocupa há muito tempo, há, sei lá, uns oito anos. Passou-se na América, passou-se em França. Estas pessoas estão em ascensão!” Mas quem, que pessoas? “Facções.” Mas que facções de pessoas? “Das cicatrizes do passado, do colonialismo”. Fala, concretamente, de “africanos”, ou como se deve dizer, pessoas afrodescendentes ou pessoas racializadas — e portuguesas. 

Qual é, afinal, o objetivo das pessoas que se manifestam em protestos anti-racistas? Perguntamos. “O que é que eu prevejo: uma guerra civil generalizada, na Europa, entre várias facções. Não é? Infelizmente é o que eu prevejo. Porque o racismo existe muito é do outro lado. Foram escravizados, acho mal terem sido, e é difícil reparar, e os primeiros imigrantes provenientes das ex-colónias até eram pessoas que estavam mais habituadas e que não pensavam tanto nisso. Estes, os netos, pensam demasiado nas coisas e o racismo está à flor da pele.” O homem diz já ter sentido, “no autocarro”, racismo. Como? “Nem é no que dizem. Eu ando nos autocarros e sinto o olhar. Sabe? Dou o lugar a alguma mulher africana, eu a ser educado, a ter a cortesia, e as pessoas nem um obrigado. Não está no dicionário delas dizer obrigado a um homem branco”, lamenta-se. Mas como se chama este homem, que se diz vítima de racismo e cuja previsão é a de uma grande guerra civil entre brancos e negros — e que é também um defensor da teoria nacionalista branca da “Grande Substituição”? Não responde. Ri-se. E atira um “you must be joking”. Deixamo-lo. E logo se lhe houve um “PORTUGAL É NOSSO!” 

Um jovem, já quase na Assembleia, irrompe da lateral e atira, grita, sem peias nem teias: “É vosso é o caralho!” Tem um nome, Gabriel Gorjão, de 28 anos, um luso-brasileiro a viver há 15 em Portugal. Vive a dois passos, ouviu os cânticos do Chega e resolveu intervir. A intervenção quase lhe valeu um “aperto” de um polícia. Quase. 

“Acho isto [manifestação] tão ridículo, isto nem devia ser legal, depois das coisas que o Chega fez e disse. Existia uma manifestação com um propósito anti-racista e apareceu este grupo de pessoas, nem manifestantes são!, um grupo de pessoas protegido pela polícia — nunca vi tanta proteção! —, e gritei, sim, gritei num ato democrático, que o meu país não é deles. Porque não é deles! O país não é dos cobardes, que provocam, que pediram medalhas para um polícia que matou um homem negro sem motivo, que ignoram a brutalidade da polícia, que ignoram o racismo na polícia, que preferem passar paninhos quentes”, lamenta Gabriel. Incomoda-o Ventura. “A solução [para episódios de revolta, vandalismo e violência] é simples, bem simples: é cada um assumir a responsabilidade dos seus actos. Odair foi mais uma vítima de brutalidade policial, de uso desproporcional da força. Se a justiça levasse o caso a sério, sempre, agora e no passado, isto [protestos] não acontecia. Só que se depois tens alguém como o André Ventura, a utilizar as suas plataformas para incentivar ao ódio, claro que vais ter ainda mais revolta.”

Ventura já discursa bem junto à escadaria da Assembleia. Usa repetidas vezes o termo “bandidagem”, provocativo, para se referir a quem provocou desacatos. Mas Ventura não quer apenas falar destes. Ventura que atacar os manifestantes anti-racistas que à mesma hora se manifestam na cidade de Lisboa. O discurso é de massas e de cartilha populista: nós contra eles. Resulta. A multidão reage eufórica a tiradas como esta: “Eles disseram que não seríamos capazes de aqui estar hoje. Que não éramos capazes de mostrar que há outro país. Estamos aqui para demonstrar que há um país que respeita a polícia, a autoridade. E que, independente dos que estão do outro lado, somos muitos mais.” O líder do Chega insiste na fórmula da divisão e da hostilidade (e de fazer medições de multidões, a lembrar outros líderes populistas internacionais) e recolhe novamente entusiasmo. “A um quilómetro ou dois daqui, os poucos que lá estão devem dizer que a autoridade está contra eles. Uma parte destes homens e mulheres, eles nunca gostaram da polícia, nunca gostaram de um Estado com regras e com lei. A toda a bandidagem deste país nós deixamos uma mensagem: o vosso país acabou, o vosso país morreu, agora há um novo pais a emergir em Portugal!”

Já não se sente chuva molha-parvos. Ventura garante: “Hoje estava tudo contra nós, mas até o tempo melhorou, porque Deus está sempre do nosso lado.” Toca o hino.

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