Domingo, Outubro 27

REPORTAGEM || A marcha foi ordeira, o protesto pacífico – mas as palavras foram de combate, contra a violência policial e contra o racismo. Os gritos pela morte de Odair Moniz ouviram-se do Marquês de Pombal aos Restauradores, em Lisboa. Sempre pedindo justiça

Há música. Há até dança. E há, sobretudo, um grito de revolta. “Racismo mata”, dizem os cartazes – e entoam muitas vozes ao longo da tarde. Pedem justiça. “Justiça por Odair”.

“JUS-TI-ÇA!  JUS-TI-ÇA!  JUS-TI-ÇA!”

Odair Moniz é a principal causa pela qual estão ali, a descer a Avenida da Liberdade neste sábado à tarde. O seu nome está nas tarjas, nas vozes, é como uma missa de espírito-presente pelo cabo-verdiano morto a tiro por um agente da PSP. Uma missa não apenas de luto, mas também de luta.

O protesto é pacífico mas com palavras duras, e enche a avenida principal enquanto a polícia assiste das laterais. No final – o partido Chega marcou uma manifestação para a mesma hora na cidade -, a PSP irá “agradecer a todos os cidadãos que integraram estas manifestações, pelo seu elevado comportamento cívico e respeitador das orientações dos polícias de serviço”.

Mas se a polícia se manteve à distância, nas mãos de Leonor Cabrita ela está bem presente. Com um cartaz onde se lê “polícia institucionalmente racista”, Leonor avança pelo protesto enquanto proclama que “o problema é institucional”. “Porque se não fosse institucional, este tipo de crimes e de violência policial no geral seriam punidos e teriam consequências, e não são. Pelo contrário”. Foi por isso que se juntou ao protesto. Por isso e porque “os últimos dias são só um reflexo da forma como as coisas funcionam em Portugal”.

“Os últimos dias representam um sistema que é, na verdade, uma herança colonial, que na verdade nunca terminou, politicamente e estruturalmente nunca terminou, e acho que os últimos dias são consequência disso. Acho que as pessoas têm muita raiva e têm todo o direito de a ter, e a única coisa que eu posso fazer, enquanto pessoa privilegiada que sou, é apoiar essa luta”, afirma a jovem que diz não ter “a resposta milagrosa, mas que é preciso uma mudança estrutural na forma como as coisas funcionam, acho que é preciso haver consequências para atos racistas e xenófobos e de violência no geral, seja de que forma for”.

Para Leonor, o “papel da polícia não é, em momento nenhum, espancar nem agredir as pessoas, independentemente do que elas tenham feito, não tem, de todo, que agredir nem fazer justiça pelas próprias mãos, isso não é o papel da polícia”.

O cartaz de Leonor Foto: CNN Portugal

Hortêncio Garcia segue mais à frente. Acompanhado pelos irmãos, segue de cara tapada, que desoculta para falar connosco e garantir que ali não estão “nem a favor nem contra a polícia”. “Nós estamos a favor da justiça. O polícia teve medo, pelo que foi contado, não é? O polícia teve medo e deu um tiro. Mas não, nós não estamos nem a favor, nem contra a polícia. A gente só pretende que as pessoas façam bem o seu trabalho”. 

Trabalho esse que, nas palavras de Hortêncio, foi “errado” no caso de Odair e é por isso que está na manifestação – “para dar justiça à pessoa que se foi” e porque, reforça, “um polícia tem de ter treino e não precisa de matar”. 

“Dava um tiro numa perna ou algo assim. Não era preciso matar. É uma vida. É um pai. Ninguém deve tirar a vida de ninguém. Mas eu e os meus irmãos que estamos aqui, estamos aqui que é para dar apoio à família também, primeiramente, uma força e para dizer que uma vida é única, a gente só vive uma vez. E há certas coisas que a gente não pode confundir. Confundiram um cidadão com ele ser um bandido, disseram que ele tinha algo que era uma arma, que essa arma a gente ainda não descobriu qual foi, que é uma arma inexistente, e que temos que começar a ver a vida de uma outra maneira”.

Nu sta junto, nu sta forte

A par com a justiça, pede-se mudança em quem dita as regras e as faz cumprir. E para Gisela Casimiro, “cidadã lusoguinense, mulher negra, ativista, escritora, artista”, essa mudança é urgente para que são já “várias situações de violação dos nossos direitos humanos” e a “revolta é contra um sistema, porque a polícia faz parte desse sistema, foi instituída por esse sistema”.

“Estamos juntos, estamos fortes. Nu sta junto, nu sta forte e justiça para o Odeair, justiça para Cláudia Simões, justiça para Dani Joy, justiça para todas as pessoas que são vítimas do sistema e da violência policial racista”, afirma, lembrando que esta é apenas “mais uma vez” que saem à rua para lutar por isso.

E quanto à manifestação do Chega, diz não reconhecer “o direito de manifestação a partidos que não são democráticos e não deveriam existir em primeiro lugar”.

“É um dia em que estamos mais uma vez a sair para a rua, porque uma pessoa foi morta pelas forças policiais. Isto continua a acontecer, são várias situações de violação dos nossos direitos humanos, porque as pessoas negras são seres humanos e constantemente é permitido que aconteça às pessoas negras coisas que não são permitidas a acontecer a mais ninguém na raça humana. É por isso que eu estou aqui, porque são sempre pessoas como eu, pessoas racializadas, pessoas negras, pessoas indígenas, pessoas ciganas, pessoas brasileiras, pessoas do Nepal, do Bangladesh, que continuam constantemente a serem mortas neste país, a serem agredidas, como aconteceu com a Cláudia Simões”. 

Cláudia Simões, cozinheira de profissão, envolveu-se, a 19 de janeiro de 2020, numa discussão entre passageiros e o motorista de um autocarro da Vimeca, pelo facto de a sua filha, à data, com 8 anos, se ter esquecido do passe. Chegados ao destino, o motorista decidiu chamar a polícia. Após alguns momentos de tensão, o agente Carlos Canha decidiu imobilizar Cláudia Simões, junto à paragem do autocarro, depois de esta se recusar em ser identificada. Cláudia Simões alegou que foi agredida junto à paragem do autocarro e junto à esquadra e comprovou que teve de ser transportada para o Hospital Amadora-Sintra. Viria a ser condenada a oito meses de pena suspensa por um crime de ofenda à integridade física e qualificada; o agente Carlos Canha foi condenado a três anos de pena suspensa por dois crimes de ofensa à integridade física qualificada e um crime de sequestro.

“Portugal precisa de se tornar antirracista”

No meio da manifestação, uma faixa chama a atenção. “Portugal antiracista”. Pedro Luqueia de Santarém está no centro e é quem toma a palavra para dizer o porquê de ali estarem – “porque não pode continuar a haver estes incidentes nas zonas urbanas sensíveis” – e para explicar o porquê do mote da faixa que tem nas mãos e é o nome da associação Frente Anti Racista.

“Portugal precisa de se tornar antirracista. Isto quer dizer o quê? As instituições, as palavras ditas pelos governos, o dia-a-dia, aquela questão que vem da colónia livre, que já foi muito antes, de 1974, e que ficou arraigado não na lei da constituição, mas na nossa cabeça, tem que ser banido, tem que ser corrigido. E só pode ser resolvido se mexermos nas instituições, nas escolas, e nós, o povo feliz, assumirmos que somos todos iguais”, afirma. 

A marcha segue, e Luqueia de Santarém também, enquanto defende que situações como as que aconteceram no bairro da Cova da Moura “deviam acabar”. “Os bairros onde nós vivemos, nessa terra toda igual em Portugal. Esta manifestação é para de facto demonstrar a este país que nós temos que dar a pé. Temos que alterar estas políticas para que não haja discriminação entre bairros, entre pessoas, no mesmo país”.

O passo acelera. Ainda há muita Avenida por percorrer. A meio do percurso apenas um agente da PSP apeado se encontra na frente da manifestação. Tem sido assim desde o início. Acompanha a manifestação de olho atento, descendo de costas para os carros da PSP que ali segue.

Agente desce a Avenida em frente à manifestação Foto: CNN Portugal

A sua solidão não passa despercebida e apesar dos gritos “Violência Policial, Herança Colonial” há quem aborde o agente para um aperto de mão ou um “não se preocupe que somos pacíficos”. 

E é essa mensagem que Telmo “Tequila” Galeano reforça à chegada aos Restauradores – “estamos a manifestar-nos de uma forma pacifista e cívica porque as pessoas estão à espera que isto seja uma divisão racial, pretos contra brancos e não há” -, acompanhado por amigos e cumprimentando quem passa. 

Para o rapper, músico e ativista, a divisão racial “é uma narrativa do outro lado, da extrema-direita e de por aí fora”. “Por isso é que marcaram uma manifestação no mesmo dia, para ver se podiam criar o choque e criar o sensacionalismo.  Aqui não há nada disso. Isso foi um ato provocativo. Eles tentaram fazer esse papel porque sabiam realmente que nós íamos finalizar esta manifestação na Assembleia. Só que nós percebemos a jogada e então a extrema-direita caiu. Desculpem mas os meus meninos ficaram na merda”.

A dureza nas palavras não se fica para com o partido de André Ventura, também as tem para o polícia que disparou contra Odair. Garante que “as pessoas estavam em paz e se não houvesse a morte, continuávamos em paz”. 

“Queremos justiça. Ou seja, nós já sabemos que não houve arma branca, sabemos que o carro não era roubado e sabemos automaticamente que ele nem sequer enfrentou a autoridade. Já sabemos também que era uma autoridade prematura. Estava cá há um ano. Borrou-se todo, ficou com medo, disparou. Acabou. Nós sabemos que há erros. Incompetência. Mas nós só queremos uma única coisa. Ninguém quer fazer justiça pelas próprias mãos. Porque isto seria lei marcial. Nós queremos a justiça. Que o Estado faça a justiça Queremos o bófia em cana. O bófia tem de cumprir cana. É isto que a malta quer. O mais rápido possível. É só isto que a malta quer”, diz, enquanto os amigos repetem o que acabou de dizer ao mesmo tempo que filmam a manifestação.

Também Emília Alves, sentada na parte de trás da estátua da praça dos Restauradores – questiona a atuação da polícia que “matou e foi de férias”. Tem 60 anos e diz-nos que participa em manifestações quando são “justas, pacíficas e pela justiça”. Conta-nos: “Fiz muitas manifestações porque eu sou ama e pelas amas fiz para conseguirmos um contrato. Durante 20 anos manifestámo-nos, agora já conseguimos. E esse é o outro objetivo, o nosso objetivo é conseguir a justiça”. E agora a justiça é outra.

“Não se mata para se ir de férias. Numa Constituição onde se diz que a justiça é para todos, que somos democráticos, então se eu mato eu vou de férias? É só por ser polícia ou é algo mais? Acho injusto que se tira à vida uma pessoa e ainda se diz eu tinha uns dias de férias e está de férias. Não foi suspenso, não foi preso, que normalmente o que acontece é prisão preventiva até se provar o contrário. Ele mata, diz que mata e vai de férias”, afirma a ama que veio sozinha à manifestação e se afastou para garantir à filha que estava tudo bem.

“Se eu ficar em casa, eu não fico bem com a minha consciência”, conclui. Como é que eu exijo uma coisa, mas eu não luto por ela? Então é uma luta para se fazer justiça, para que o Odair não morra em vão. Não morra só porque é para morrer, mas sim que ele tenha justiça”.

Justiça. A palavra mais repetida nesta tarde cinzenta e fria de Lisboa, também faz parte do vocabulário de hoje de Emília, que tem esperança de que “um dia, mesmo que que já tenha morrido, os bisnetos venham a conseguir isso”.

Pausa. Os gritos cessam para os discursos. As centenas de pessoas que participaram na manifestação ecoam as palavras que se ouvem no sistema de som montado na carrinha de caixa aberta. Na estátua dos Restauradores, há quem chore quando olha para a fotografia de Odair Moniz ali colocada, como se num altar.

“Sem justiça não há paz”, lê-se e repete-se até a voz doer. Uma vez mais.

A praça dos Restauradores transformada em altar FOTO: CNN Portugal
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