Quinta-feira, Outubro 17

Advogado do antigo líder do BES garante que não quer ter “vergonha” do seu país, mas admite proceder da mesma forma que Firdavis Timergaliyev

Desde que o julgamento do caso BES começou que a defesa de Ricardo Salgado tem feito várias alegorias com a Rússia. A mais recente aconteceu logo depois de o principal rosto do processo que levou à derrocada do banco ter saído do tribunal no curto espaço de apenas uma hora. Nessa terça-feira, aos jornalistas, o advogado do ex-banqueiro, Francisco Proença de Carvalho, sublinhou que a presença do antigo dono do banco no julgamento – diagnosticado com a doença de Alzheimer – era “uma vergonha mundial” que “talvez na Rússia fosse uma coisa apreciada”.

Dias antes, a defesa de Salgado tinha também entregado no tribunal um requerimento a pedir que a intervenção do banqueiro no julgamento fosse considerada nula, porque a juíza encarregada do processo teria recusado realizar uma perícia médica ao arguido. Esse facto, sublinhava o mesmo documento, colocava Portugal “na exata situação” de um outro processo que culminou na condenação do Estado russo pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). 

Esse processo, segundo a defesa de Ricardo Salgado, era o n.º 40631/02. E a sua história, que começa com um russo acusado de incendiar o apartamento onde vivia a mãe, é totalmente diferente daquela que levou o antigo líder do BES a responder por mais de 60 crimes. Contudo, há um ponto em que os caminhos do chefe do clã Espírito Santo e os de um habitante na região de Sverdlovskiy se cruzam: em ambos os casos não terá existido uma perícia médica antes do início do julgamento.

O caso de Firdavis Favizovich Timergaliyev começa na noite de 11 de maio de 2001. Foi nessa data que o russo foi detido pela polícia na localidade de Dinas mesmo na cena do crime. A suspeita é que tinha ele sido o responsável por atear um fogo que consumiu o apartamento da mãe, matando-a e deixando outra pessoa com graves lesões.

Nas várias esquadras por onde passou, segundo o próprio se queixou, foi agredido múltiplas vezes nas pernas, no peito e na cabeça por polícias da região. Durante o interrogatório, negou envolvimento no incêndio e afirmou ter sido atacado por três estranhos, que o agrediram e atearam fogo ao apartamento. Depois, foi colocado numa cela na unidade de detenção n.º1 de Ecaterimburgo.

O julgamento contra Firdavis Timergaliyev começou em maio de 2001 no tribunal regional de Sverdlovskiy. Dias antes o arguido tinha requerido à sua defesa e aos investigadores do caso para que lhe fosse feita uma perícia médica, já que tinha avisado que sofria de surdez e seria impossível para ele enfrentar um julgamento sem perceber absolutamente nada do que se passava.

Tanto a sua defesa como o investigador não concretizaram esse pedido. Mas Timergaliyev foi insistente. Em novembro desse ano, voltou a fazer um pedido – desta vez ao juiz – para que lhe fosse garantido o aparelho auditivo durante o julgamento, mas não recebeu qualquer resposta. A 5 de dezembro de 2001, o tribunal, numa única audiência, considerou o homem culpado de homicídio agravado, de causar danos corporais e de destruição intencional de propriedade alheia. Foi condenado a 18 anos de prisão numa colónia de alta segurança.

Timergaliyev era “meio surdo” e não foi representado por ninguém

Julgamento ocorreu no mesmo tribunal que condenou este ano o jornalista norte-americano Evan Gershkovich por acusações de espionagem/ AP 

É aqui que começa um embróglio jurídico que só terminou vários anos depois com a condenação da Rússia. Em abril de 2002, o russo recorreu da decisão para o Supremo Tribunal, alegando falhas processuais durante o julgamento. Entre elas estavam a ineficácia dos dois advogados que o representaram e a recusa do tribunal em fornecer-lhe um aparelho auditivo. 

Além disso, afirmou ter sido maltratado no dia da sua detenção e alegou que o investigador retirou do processo um certificado médico de 21 de maio de 2001 e uma radiografia que alegadamente provavam os danos que sofreu enquanto esteve preso preventivamente. Pediu também ao Supremo Tribunal que informasse a Ordem dos Advogados de Moscovo e organizações de direitos humanos sobre a data da audiência de recurso.

Nesse recurso, solicitou ainda representação legal, indicando que não tinha formação jurídica e que era “meio surdo”, munindo-se também de um certificado médico que comprovava que Firdavis Timergaliyev sofria de “perda auditiva neurossensorial bilateral crónica”. 

O Supremo Tribunal da Federação Russa realizou a audiência de recurso no dia 27 de maio de 2022, mas manteve a sentença de 5 de dezembro de 2001. O requerente estava presente, mas não foi representado por um advogado. O acórdão não mencionou a questão de lhe fornecer um aparelho auditivo. Em relação ao seu direito de defesa, o tribunal afirmou que o requerente foi representado durante a investigação e o julgamento, não havendo motivos para acreditar que os advogados não o defenderam adequadamente.

Foi aí que o russo recorreu para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos que, na sentença de 14 de outubro de 2008, acabou por condenar a Rússia por violar o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. No entendimento do TEDH, os tribunais russos “não consideraram tomar medidas para garantir que o queixoso pudesse acompanhar os procedimentos”. E “prosseguiu com a audiência sem solicitar uma opinião médica para verificar se a deficiência auditiva lhe permitia ouvir os procedimentos”, “nem considerou a possibilidade de providenciar um aparelho auditivo”.

A defesa de Ricardo Salgado coloca peso nesta decisão tomada pelo andorrano Josep Casadevall. No requerimento apresentado antes do início do julgamento do caso BES, os advogados Adriano Squillace e Francisco Proença de Carvalho indicam que “a persistência em não realizar a perícia médica ao arguido, nos termos requeridos na Contestação, coloca Portugal na exata situação em que os Tribunais russos colocaram a Rússia perante o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos no processo n.º 40631/02, no qual esse Tribunal referiu que a Rússia violou o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem precisamente por não ter realizado uma perícia médica a um arguido antes de o submeter a julgamento e prosseguir o processo contra ele sem realizar uma perícia médica”. 

Já após o primeiro dia de julgamento, a defesa do líder do BES voltou à possibilidade de colocar um processo contra Portugal de forma semelhante àquela que Firdavis Timergaliyev avançou no início do século. “Como sabe, em termos formais as queixas para os tribunais europeus de direitos humanos são feitas no fim do processo. Se as coisas continuarem assim nós não temos alternativa. Eu não queria, não quero ter vergonha do meu país. Eu gostaria de evitar, e acho que ainda vamos a tempo de evitar”, afirmou Francisco Proença de Carvalho.

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