Domingo, Outubro 20

Como mostra a imagem de capa, Kamala Harris optou pela blusa com laço na Convenção Nacional Democrata em Chicago, Illinois, a 22 de agosto. É uma peça de vestuário que tem usado na campanha presidencial, mas também ao longo da sua carreira

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“Não se perde as qualidades femininas só porque se é primeira-ministra”. A frase é de Margaret Thatcher, numa entrevista de 1985 com a médica e personalidade televisiva Miriam Stoppard. “Costumo usar laços. São bastante suaves… e bem bonitos”.

Como a primeira mulher a assumir o cargo de primeiro-ministro no Reino Unido. Thatcher poderia ser desculpada por se apresentar em linha com os seus pares masculinos, procurando chamar a mínima atenção possível para o seu género. Contudo, a Dama de Ferro, como ficou conhecida, compreendeu que a política é uma dança cuidadosa entre dois tipos de poder: o suave e o duro. E que as roupas eram ferramentas que podiam atenuar (mesmo que apenas visualmente) os lados mais abrasivos de um mandato de 11 anos definido por conflitos com sindicatos, lutas internas de poder e a guerra das Malvinas.

É assim que a blusa com laço – ou pussy-bow, no original inglês – entra em cena.

A antiga primeira-ministra britânica Margaret Thatcher era uma adepta da blusa com laço (Tim Graham/Getty Images)

Apesar de o termo ter sido popularizado no século XX – “a moda chama-los de ‘pussy-cat bows’ [algo que pode ser traduzido como laços de gatinho] porque fica mais feminino em decotes altos”, lia-se num artigo de 1955 do Newburgh News -, a ideia de juntar laços a blusas, camisas ou corpetes é muito mais antiga. Às vezes, esta tendência é chamada de gravata Lavallière, em homenagem à duquesa Luísa de La Vallière – amante “oficial” do rei Luís XIV. Segundo relatos sobre a história das gravatas, a duquesa ficou tão encantada com a gravata do rei que acabou a fazer uma para si própria [mais parecida com um laço].

A duquesa nunca poderia imaginar que, três séculos depois, uma geração de mulheres utilizaria, nas suas vidas profissionais, a sua experiência de alfaiataria de várias maneiras, para impor respeito e transmitir mensagens importantes – às vezes, cheias de nuances.

O poder da gola de laço

Hoje, a peça é uma das favoritas da vice-presidente Kamala Harris, que tem usado blusas com laço ao longo da sua campanha presidencial: desde a Convenção Nacional Democrata em agosto, passando pelo debate televisivo com Donald Trump ou a sua conversa com a conhecida apresentadora Oprah Winfrey já em setembro. Mais recentemente, usou esta peça durante a entrevista com Bill Whitaker para o programa “60 Minutos”, onde falou sobre política externa, economia e sobre a arma que possui – as linhas direitas do seu elegante fato cor de ameixa foram suavizadas pela blusa com laço na mesma cor.

Apesar de a gola de laço se ter tornado uma espécie de uniforme para Harris, foi em meados do século [passado] que esta peça se tornou um elemento básico do guarda-roupa de uma nova geração de mulheres trabalhadoras.

A vice-presidente Kamala Harris vestiu uma blusa com laço ameixa para a entrevista com Bill Whitaker do “60 Minutos” (CBS)

Entre as décadas de 1950 e 1970, a proporção de mulheres casadas entre os 35 e os 44 anos a ingressar a força de trabalho dos Estados Unidos da América aumentou dos 25% para os 46%. O que deveriam vestir tornou-se, em simultâneo, um motivo de ansiedade e, para algumas, era visto como uma lacuna no mercado. No seu extremamente popular livro “The Women’s Dress for Sucess” [Como as mulheres se podem vestir para o sucesso, em tradução livre], publicado em 1977, John T. Malloy recomendou as blusas com laço como um uniforme inegociável para todas as mulheres ambiciosas. Estas peças deveriam ser utilizadas com fatos que incluíssem saias, dizia o autor, visto que as calças não eram algo apropriado para o escritório.

Uma série de mulheres recém-empregadas nas décadas de 1970 e 1980 concordou, tornando a blusa com laço uma presença súbita e sempre presente no escritório, bem como um símbolo de profissionalismo e de uma segunda onda de feminismo. Contudo, o empoderamento feminino foi deixado, em grande parte, na porta de entrada. As mulheres estavam no local de trabalho, sim, mas não eram consideradas iguais. Os homens tinham, frequentemente, expectativas rígidas sobre como as suas colegas mulheres se deveriam vestir, como tinha demonstrado Malloy. Em 1973, o presidente Richard Nixon repreendeu a repórter Helen Thomas por usar calças, dizendo que preferia vestidos.

Esta peça de vestuário foi visto no desfile da Prada na Semana da Moda de Milão em setembro (Ik Aldama/picture alliance/Sipa USA)

Feminilidade num mundo de homens

Ao assemelhar-se a uma gravata tradicional, a longa cauda da blusa com laço, conhecida como La Vallière, assinalou a assimilação sem assumir a equivalência. “Costumávamos usar fatos com saia e casaco, com uma camisa de botões e uma gola de laço”, conta Meg Whitman, uma das primeiras mulheres com cargos executivos na Proctor and Gamble, no documento de 2013 da PBS “Makers: Women Who Make America” [“Fazedoras: Mulheres que Fazem a América”, em tradução livre]. E acrescentou: “Essa era a nossa interpretação da gravata do homem. Foi a nossa tentativa de sermos femininas, mas num mundo de homens”.

Mesmo hoje, depois de décadas de melhorias nos direitos que procuram igualdade entre géneros no local de trabalho, a gola de laço continua a ser uma opção de vestuário segura para as mulheres poderosas. “É uma forma de dizer ‘Sou profissional’, mas numa versão suavizada”, diz Nina McLemore, a criadora de vestuário feminino a trabalhar a partir de Nova Iorque à CNN numa videochamada pela plataforma Zoom. “Se for demasiado ‘masculina’, é vista como uma ameaça”, acrescenta McLemore, que já vestiu políticas como Hilary Clinton e Elizabeth Warren, a deputada democrata Maxine Waters ou a juíza do Supremo Tribunal dos EUA Elena Kagan. “Não é possível libertar-nos de um milhão de anos (de condicionamento) apenas num século”.

Subversão no vestuário

A gola de laço também tem sido interpretada como uma forma de assumir uma posição fora do mundo do trabalho. Em 2016, houve quem especulasse que Melania Trump tinha usado uma destas peças, em rosa-choque, da Gucci, como uma resposta ao infame orgulho do seu marido em “grab them by the pussy” [agarrá-las pela vagina], que tinha vindo a público apenas alguns dias antes.

Kate Moss optou por uma blusa branca com laço, num padrão com bolas, na hora de testemunhar contra o ex-namorado Johnny Depp, no julgamento por difamação em 2022. Já em 2018, Sara Danius – a primeira mulher a liderar a Academia Sueca, responsável pela atribuição do Prémio Nobel – vestiu uma blusa de seda com laço para a conferência de imprensa após a sua polémica demissão, pela forma como a academia lidou com uma investigação sobre má conduta sexual. O marido de uma membro da academia foi acusado de abusos sexuais em sério, com episódios ao longo de 20 anos. Mulheres por toda a Suécia protestaram contra a decisão, argumentando que era injusto punir Danius pelos crimes de um homem, usando camisas semelhantes num ato de solidariedade.

Melania Trump usou uma blusa rosa da Gucci com uma gola de laço no debate presidencial na Washington University em St. Louis, Missouri, a 9 de outubro de 2016 (Rick Wilking/Pool/AFP/Getty Images)
Pessoas juntas na praça Stortorget em Estocolmo, demonstrando apoio a Sara Danius ao usar camisas com laço improvisadas, com recurso a lenços e gravatas (Jonas Ekstromer/AFP/Getty Images)

“A blusa dela, que era uma imagem de marca, tornou-se viral… Essa peça de vestuário tornou-se um símbolo feminista”, conta Jenny Sundén, professora de estudos de género na Södertörn University na Suécia, à CNN num telefonema. “As pessoas até foram para a rua, levando esta manifestação com camisas com golas de laço ao exterior do edifício da Bolsa de Valores de Estocolmo, onde a Academia se reunia”.

Apesar dos contextos diferentes, pode-se argumentar que Trump, Moss e Danius usaram a feminilidade intrínseca da gola de laço para lembrar ao mundo sobre as diferenças entre elas e os homens a que estavam associadas. As suas roupas mostraram que eram mulheres – sérias, mas calorosas; responsáveis, mas acessíveis – em que se pode confiar.

Uma peça de roupa “carregada”

Ainda assim, a blusa com laço continua a dividir opiniões. É um símbolo da libertação feminina ou um lembrete da pressão que as mulheres enfrentam para exercer a sua feminilidade em espaços onde era suposto serem tratadas como iguais? 

“Só porque as mulheres a usam como parte do seu guarda-roupa profissional ou uniforme, isso por si só não transforma esse ato num ato feminista”, diz Sundén, que considera que esta é uma peça de roupa “carregada”. Não convencida pelos seus supostos feitos feministas, Sundén vinca que a blusa é, ao mesmo tempo, inocente e sedutora, porque “acentua, mas também esconde, o corpo de quem a veste”.

“Acho que, no que diz respeito aos símbolos feministas, é uma escolha estranha”, junta. É também, insiste, uma peça de roupa tonta. “É uma peça de roupa ridícula, absurda até num certo sentido. Mas também é muito divertida”.

McLemore concorda. “Penso que nos faz sorrir”, diz. “Estava a pensar nas mulheres que conheci que eram muito bem sucedidas no mundo corporativo, que eram presidente executivas das 500 maiores empresas do mundo. E todas tinham uma característica em comum: o sentido de humor”.

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