Sexta-feira, Novembro 29

Como pode um acordo que está em negociação há já 25 anos não ser, hoje, obsoleto? No entanto, apesar de ser – basta ter em vista o agravamento da emergência climática, a perda de biodiversidade e o aumento das desigualdades sociais –, o risco de que seja ratificado até ao final do ano é enorme.

Trata-se do acordo de liberalização comercial entre a UE e o Mercosul (o bloco composto pela Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e, recentemente, a Bolívia) que visa eliminar ou reduzir mais de 90% das tarifas que vigoram atualmente nas trocas comerciais entre os dois blocos. Esta redução irá propiciar um forte aumento das exportações, beneficiando sobretudo o setor de automóveis e bens industriais da UE e o do agronegócio (principalmente carne de bovino), minerais e outros bens primários do Mercosul. O acordo seria o maior até dados em termos de população abrangida – cerca de 800 milhões de pessoas – e representaria um produto interno bruto combinado de 16 bilhões de euros, cerca de um quinto da economia mundial.

A Comissão Europeia e os países do Mercosul pretendem finalizar o acordo até ao final deste ano e Portugal fez parte dos 11 países que enviaram um pedido à presidente da Comissão, Ursula Von der Leyen, para uma rápida conclusão das negociações. Mas será que o primeiro-ministro, Luís Montenegro, e o ministro da Agricultura, José Manuel Fernandes, auscultaram os produtores de gado portugueses? Será que os consumidores portugueses estão suficientemente informados sobre a (in)segurança alimentar dos produtos que poderão vir a consumir?

A sociedade civil e vários grupos de interesse – o mais impactante dos quais foi o dos agricultores franceses no início deste ano – têm alertado incansavelmente para as múltiplas consequências nefastas que o acordo pode gerar a nível ambiental, social e económico. Caso seja implementado, o acordo irá aumentar a concorrência desleal entre os agricultores europeus e sul-americanos, ameaçando os trabalhadores agrícolas com despejar sociais, intensificadoras como monoculturas, a pecuária industrial e os modelos extrativos na América do Sul. Além disso, agravará a desflorestação, o uso de pesticidas, a divulgação dos direitos humanos (em comunidades indígenas, etc.) e as desigualdades sociais.

Face às recorrentes notícias sobre o possível anúncio da conclusão das negociações na cimeira do Mercosul, a decorrer de 2 a 4 de Dezembro, mais de 400 organizações da sociedade civil (OSC), entre as quais a TROCA, lançaram um apelo aos responsáveis ​​políticos de ambos os lados do Atlântico para que rejeitem tal acordo.

Entretanto, os agricultores e belgas voltaram, em Novembro, a ocupar as ruas de Bruxelas com os seus tractores, protestando, mais uma vez, contra o aumento das quantidades de produtos do Mercosul. Recebendo que produtos mais baratos, não sujeitos aos mesmos requisitos, inundem o mercado europeu, tornando ainda mais crítica a situação do setor agrícola. No outro lado da cadeia de valor, a Organização Europeia dos Consumidores divulgou um comunicado anunciando para o facto de o acordo não garantir a segurança dos interesses dos consumidores, nomeadamente se considerar que a UE acabou de suspender a carne de bovino brasileira pela presença de hormônios que a UE proibiu há décadas na produção animal.

Numa tentativa de contornar a oposição ao acordo, a Comissão Europeia anunciou a eventual criação de um fundo destinado a compensar os agricultores da UE pelos impactos negativos do acordo UE-Mercosul – proposta que reforça a indignação e motivou fortes críticas dos agricultores, pois estes recusam -se aceitar “subornos” e ser tratado como “variáveis ​​de ajuste para serem comprados ou vendidos”.

A colossal pressão para a conclusão do acordo já teve consequências, alegadamente, sobre o Regulamento Anti-Desflorestação da UE, cujos dados de implementação foram adiados por um ano (o que poderá ter sido condição para a conclusão do acordo, visto este regulamento ter sido fortemente criticado pelo bloco Mercosul). Além deste retrocesso, está também em cima da mesa a separação da parte comercial do Acordo do seu quadro mais vasto de cooperação política. Com isto, deixaria de ser necessária a unanimidade por parte dos Estados-membros no Conselho da UE, bem como a ratificação a nível nacional. Estaríamos, pois, perante mais um ataque à democracia, na linha do secretismo em que decorreram as negociações. Para além da França, recentemente, a Polónia, a Itália e a Bélgica também manifestaram preocupação na relação ao acordo UE-Mercosul.

A ratificação do acordo entraria em contradição com as ambições do Pacto Ecológico e as mais recentes recomendações feitas pelo Diálogo Estratégico sobre o Futuro da Agricultura da UE. E se os líderes da UE hesitaram em negociar um acordo com o ex-presidente brasileiro Bolsonaro, porque parecem agora menos céticos em relação aos igualmente perigosos Milei, que ameaça retirar a Argentina do Acordo de Paris?

Tornam-se, pois, cínicos os discursos da Comissão e dos governos europeus sobre a importância da descarbonização e da transição energética, já que muitos dos produtos que vamos importar estão associados a uma pegada brutal de emissões de carbono, redução de biodiversidade e destruição de carbono ecossistemas. Caso a UE continue a colocar os interesses económicos das grandes empresas acima da saúde e do bem-estar das pessoas e do planeta, estará, pois, a hipotecar o nosso futuro.

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