Terça-feira, Janeiro 7

A Biblioteca Municipal José Soares, na Nazaré, é um farol de conhecimento e integração, que entrelaça mar e cultura, reunindo a história local e acolhendo vozes de diversas proveniências.

— O edifício é tão iluminado e moderno que custa a crer que tenha 19 anos…

— Pois é. Fui eu quem fez os primeiros desenhos, juntamente com os colegas que estavam na câmara e com o presidente, que tinha, de facto, uma visão muito ampla do conceito de biblioteca. Para ele, uma biblioteca não era só um espaço com livros; era um auditório, uma sala de espetáculos, uma galeria de arte, exposição… E isto há 19 anos. Eu realmente tinha essa visão de que a biblioteca era um pequeno centro de cultura. É preciso ver que, na altura, não havia grandes espaços para a cultura. Daí surgiu todo este espaço maravilhoso —, recorda Madalena Amorim, uma bibliotecária​.

E o que é que distingue esta biblioteca das outras? A responsável continua: “Desde logo, o espaço muito grande relativamente à população. Na realidade, esta biblioteca, pelas directrizes da Direção-Geral do Livro, deve ser bastante mais pequena, uma vez que estamos num concelho com 15 mil habitantes e apenas três freguesias, é relativamente pequena. Mas a visão do presidente foi outra: trazer a população para dentro de um espaço que é, afinal, um espaço de cultura e não apenas um espaço de biblioteca, onde há conferências e exposições em toda a parte do edifício. , além de espaços para crianças e diversas disciplinas que fazemos nas diferentes áreas da cultura.”

A Nazaré tem uma história profundamente ligada ao mar que a Biblioteca Municipal José Soares vai reunir no fundo local, quer através de bibliografias, quer de publicações periódicas. E há uma novidade: “Estamos a digitalizar todo o fundo que temos de fotografias, postais e documentos, de modo a poder fornecer toda essa informação devidamente tratada, catalogada e disponível para o mundo inteiro”, esclarece Madalena.

À biblioteca da Nazaré procura-se atrair todo o público
João da Silva

E a minha visita aconteceu durante outra estreia absoluta.

— Fale-me um pouco da residência literária que está a acontecer.

— É a primeira de muitas. Especificamente é trazer um escritor, um autor, alguém ligado ao mundo dos livros de alguma forma, que viva conhecimento durante alguns dias. A abordagem dependerá do tipo de atividade e do público para quem se destina a residência. No caso do escritor José Fanha, que estreia nas residências literárias, temos percorrido as várias escolas do concelho, desde o 1.º ciclo até ao ensino secundário, com sessões direcionadas para os alunos, em que o José Fanha conta histórias. Os miúdos são adorados. Dizem que os miúdos só têm interesse nos telemóveis? Experimente tirar-lhes os telemóveis e pôr o José Fanha à frente. Ninguém sai dali. Ele agarra facilmente o público, conta histórias da sua própria vida, tudo na sua vida é um episódio, uma história, um poema, um romance.

O escritor José Fanha, protagonista da residência literária, confirma: “Tenho falou com os meninos sobre livros, leitura, histórias da vida, porque os livros são também as histórias da nossa vida. Eu uso a minha vida também quase como uma história e acho que é muito importante nós darmos conta das nossas angústias, de como as ultrapassámos, de como é que vivemos esta vida E mostrar isso aos meninos. Alguns deles também têm histórias dramáticas e problemáticas, e há que mostrar-lhes que é possível vencer isso. . As respostas têm sido inesperadamente maravilhosas, porque me parece que aqui em Nazaré os meninos estão mais atentos e interessam-se muito mais do que nas escolas das grandes E eu saio de lá feliz da vida e quando nós saímos felizes, os meninos também saem felizes, não. é?”

Pormenor da decoração da bilioteca da Nazaré
João da Silva

Na minha mão, tenho um livro com 590 páginas. Chama-se Dicionário da Identidade Nazarena e é o resultado do trabalho de uma vida de José Soares. Eis a sugestão de Madalena Amorim para a Road Trip Literária.

— É um marco importante daquilo que é a história da Nazaré. O senhor José Soares morreu no ano passado com 101 anos. Manteve uma lucidez inacreditável até o último dia. Ele investigou e trabalhou profundamente a história local em busca da preservação daquilo que é a identidade nazarena. E é isso que aqui está neste livro, que vamos lançar agora e depois tentar explorar algumas destas expressões que são muito típicas da Nazaré e que têm a ver não só com o falar, mas com atitudes que as pessoas têm e que, na Nazaré, têm sempre uma designação muito engraçada. Para isso, vamos preparar algumas coisas num âmbito mais tradicional para que os mais velhos que conheçam estas expressões e ainda falem desta forma as possam dizer aos mais novos e continuar a preservar aquilo que é o falar e as tradições da Nazaré —, explica Madalena Amorim​.

No final da nota introdutória é expressa a intenção da obra: “Não é muito realçar que o presente trabalho pretenda, quase exclusivamente, dar a conhecer o modo de falar dos nazarenos, em diferentes épocas do seu percurso na construção de uma identidade.”

Alguns exemplos:

“aboazinha (sf). Borboleta. De ‘aboar’ (voar).”

“barba-ruíva (sf). Carapau azul, espécie de fraco valor econômico e qualidade culinária. A norma manda ler o ditongo ‘ui’ regressivamente. Aqui, lê-se com acentuação forte no ‘i’.”

“fôlgo (sm). Fôlego. Trata-se de um vocabulário que definitivamente substituiu a forma esdrúxula, com a queda do ‘e’ mudo medial. A prova-lo é o plural que, nitidamente, se diz sempre ‘folgos’ e nunca a forma, tornado afectado, respirações (…)”

“ralh’s (sm). Ralhos. Briga de rua entre mulheres. ‘…as causas deste género de confronto em público eram diversas: um namoro que acabousse, uma zanga que havia entre miúdos, alcoviteirice, inveja, atos de bruxedo, etc, resultar num ralho, cujas figuras principais eram mulheres Nem toda a gente possuía habilidade para ralhar, mas como os ralhos eram aceites como meio de se resolverem problemas entre famílias, as raparigas novas eram encorajadas a aprender a aprender a. arte de ralhar, e a mulher que comenta ralhar bem era admirada porque punha no jogo esperteza, vigor, desembaraço, entre outras qualidades que ainda hoje continuam a ser muito apreciadas pelo povo nazareno (…) tiravam-se os dentes da boca-. se os brincos a alguém conhecido. Braços fervilhantes moviam-se no ar. chão. Mordiam-se mãos. O passado foi invocado, julgado, ofendido e puxavam-se cabelos. O povo olhou – ninguém se metia! Esperava o ralho sujo, esmagador, final. Acabada a frente, as bocas eram limpas da espuma de baba branca.”

Modo de falar nazareno, um património em risco, imortalizado por José Soares num magnífico e singular dicionário.

— A comunidade nazarena tem, segundo as estatísticas, um nível de escolaridade ao nível de um 9.º ano, o que não é muito alto. E é uma comunidade que foi mudando também ao longo dos anos e, neste momento, segundo as estatísticas, 25% da população residente é estrangeira e que todos os anos aumenta, pois é muito bem acolhida. Hoje de manhã, estive numa escola com o José Fanha e metade da turma do 1.º ciclo eram miúdos não nascidos em Portugal. Isto é muito interessante e é um enriquecimento que se dá aos miúdos de cá e à própria comunidade. Quem vem de fora é muito bem recebido aqui. E as pessoas vão ficando —​, revela a bibliotecária.

Um contexto que levou à transformação da comunidade e também do espólio da biblioteca, o que é continuamente procurado por leitores estrangeiros, que também traz comentários para o seu enriquecimento. “Há uma coisa muito interessante nesta biblioteca, que é característica das bibliotecas que estão em locais de grande turismo. As pessoas estão cá durante um mês ou dois e compram livros. Depois, antes de irem embora, vêm entregá-los à biblioteca. Cerca de de 30% do fundo documental que nós temos são em língua estrangeira. Quanto mais vão crescendo as comunidades estrangeiras, mais vão acolhendo também outras comunidades que vêm de fora.”

Exemplos de integração e convivência harmoniosa que devemos reter e replicar.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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