A Biblioteca Municipal José Soares, na Nazaré, é um farol de conhecimento e integração, que entrelaça mar e cultura, reunindo a história local e acolhendo vozes de diversas proveniências.
— O edifício é tão iluminado e moderno que custa a crer que tenha 19 anos…
— Pois é. Fui eu quem fez os primeiros desenhos, juntamente com os colegas que estavam na câmara e com o presidente, que tinha, de facto, uma visão muito ampla do conceito de biblioteca. Para ele, uma biblioteca não era só um espaço com livros; era um auditório, uma sala de espetáculos, uma galeria de arte, exposição… E isto há 19 anos. Eu realmente tinha essa visão de que a biblioteca era um pequeno centro de cultura. É preciso ver que, na altura, não havia grandes espaços para a cultura. Daí surgiu todo este espaço maravilhoso —, recorda Madalena Amorim, uma bibliotecária.
E o que é que distingue esta biblioteca das outras? A responsável continua: “Desde logo, o espaço muito grande relativamente à população. Na realidade, esta biblioteca, pelas directrizes da Direção-Geral do Livro, deve ser bastante mais pequena, uma vez que estamos num concelho com 15 mil habitantes e apenas três freguesias, é relativamente pequena. Mas a visão do presidente foi outra: trazer a população para dentro de um espaço que é, afinal, um espaço de cultura e não apenas um espaço de biblioteca, onde há conferências e exposições em toda a parte do edifício. , além de espaços para crianças e diversas disciplinas que fazemos nas diferentes áreas da cultura.”
A Nazaré tem uma história profundamente ligada ao mar que a Biblioteca Municipal José Soares vai reunir no fundo local, quer através de bibliografias, quer de publicações periódicas. E há uma novidade: “Estamos a digitalizar todo o fundo que temos de fotografias, postais e documentos, de modo a poder fornecer toda essa informação devidamente tratada, catalogada e disponível para o mundo inteiro”, esclarece Madalena.
E a minha visita aconteceu durante outra estreia absoluta.
— Fale-me um pouco da residência literária que está a acontecer.
— É a primeira de muitas. Especificamente é trazer um escritor, um autor, alguém ligado ao mundo dos livros de alguma forma, que viva conhecimento durante alguns dias. A abordagem dependerá do tipo de atividade e do público para quem se destina a residência. No caso do escritor José Fanha, que estreia nas residências literárias, temos percorrido as várias escolas do concelho, desde o 1.º ciclo até ao ensino secundário, com sessões direcionadas para os alunos, em que o José Fanha conta histórias. Os miúdos são adorados. Dizem que os miúdos só têm interesse nos telemóveis? Experimente tirar-lhes os telemóveis e pôr o José Fanha à frente. Ninguém sai dali. Ele agarra facilmente o público, conta histórias da sua própria vida, tudo na sua vida é um episódio, uma história, um poema, um romance.
O escritor José Fanha, protagonista da residência literária, confirma: “Tenho falou com os meninos sobre livros, leitura, histórias da vida, porque os livros são também as histórias da nossa vida. Eu uso a minha vida também quase como uma história e acho que é muito importante nós darmos conta das nossas angústias, de como as ultrapassámos, de como é que vivemos esta vida E mostrar isso aos meninos. Alguns deles também têm histórias dramáticas e problemáticas, e há que mostrar-lhes que é possível vencer isso. . As respostas têm sido inesperadamente maravilhosas, porque me parece que aqui em Nazaré os meninos estão mais atentos e interessam-se muito mais do que nas escolas das grandes E eu saio de lá feliz da vida e quando nós saímos felizes, os meninos também saem felizes, não. é?”
Na minha mão, tenho um livro com 590 páginas. Chama-se Dicionário da Identidade Nazarena e é o resultado do trabalho de uma vida de José Soares. Eis a sugestão de Madalena Amorim para a Road Trip Literária.
— É um marco importante daquilo que é a história da Nazaré. O senhor José Soares morreu no ano passado com 101 anos. Manteve uma lucidez inacreditável até o último dia. Ele investigou e trabalhou profundamente a história local em busca da preservação daquilo que é a identidade nazarena. E é isso que aqui está neste livro, que vamos lançar agora e depois tentar explorar algumas destas expressões que são muito típicas da Nazaré e que têm a ver não só com o falar, mas com atitudes que as pessoas têm e que, na Nazaré, têm sempre uma designação muito engraçada. Para isso, vamos preparar algumas coisas num âmbito mais tradicional para que os mais velhos que conheçam estas expressões e ainda falem desta forma as possam dizer aos mais novos e continuar a preservar aquilo que é o falar e as tradições da Nazaré —, explica Madalena Amorim.
No final da nota introdutória é expressa a intenção da obra: “Não é muito realçar que o presente trabalho pretenda, quase exclusivamente, dar a conhecer o modo de falar dos nazarenos, em diferentes épocas do seu percurso na construção de uma identidade.”
Alguns exemplos:
“aboazinha (sf). Borboleta. De ‘aboar’ (voar).”
“barba-ruíva (sf). Carapau azul, espécie de fraco valor econômico e qualidade culinária. A norma manda ler o ditongo ‘ui’ regressivamente. Aqui, lê-se com acentuação forte no ‘i’.”
“fôlgo (sm). Fôlego. Trata-se de um vocabulário que definitivamente substituiu a forma esdrúxula, com a queda do ‘e’ mudo medial. A prova-lo é o plural que, nitidamente, se diz sempre ‘folgos’ e nunca a forma, tornado afectado, respirações (…)”
“ralh’s (sm). Ralhos. Briga de rua entre mulheres. ‘…as causas deste género de confronto em público eram diversas: um namoro que acabousse, uma zanga que havia entre miúdos, alcoviteirice, inveja, atos de bruxedo, etc, resultar num ralho, cujas figuras principais eram mulheres Nem toda a gente possuía habilidade para ralhar, mas como os ralhos eram aceites como meio de se resolverem problemas entre famílias, as raparigas novas eram encorajadas a aprender a aprender a. arte de ralhar, e a mulher que comenta ralhar bem era admirada porque punha no jogo esperteza, vigor, desembaraço, entre outras qualidades que ainda hoje continuam a ser muito apreciadas pelo povo nazareno (…) tiravam-se os dentes da boca-. se os brincos a alguém conhecido. Braços fervilhantes moviam-se no ar. chão. Mordiam-se mãos. O passado foi invocado, julgado, ofendido e puxavam-se cabelos. O povo olhou – ninguém se metia! Esperava o ralho sujo, esmagador, final. Acabada a frente, as bocas eram limpas da espuma de baba branca.”
Modo de falar nazareno, um património em risco, imortalizado por José Soares num magnífico e singular dicionário.
— A comunidade nazarena tem, segundo as estatísticas, um nível de escolaridade ao nível de um 9.º ano, o que não é muito alto. E é uma comunidade que foi mudando também ao longo dos anos e, neste momento, segundo as estatísticas, 25% da população residente é estrangeira e que todos os anos aumenta, pois é muito bem acolhida. Hoje de manhã, estive numa escola com o José Fanha e metade da turma do 1.º ciclo eram miúdos não nascidos em Portugal. Isto é muito interessante e é um enriquecimento que se dá aos miúdos de cá e à própria comunidade. Quem vem de fora é muito bem recebido aqui. E as pessoas vão ficando —, revela a bibliotecária.
Um contexto que levou à transformação da comunidade e também do espólio da biblioteca, o que é continuamente procurado por leitores estrangeiros, que também traz comentários para o seu enriquecimento. “Há uma coisa muito interessante nesta biblioteca, que é característica das bibliotecas que estão em locais de grande turismo. As pessoas estão cá durante um mês ou dois e compram livros. Depois, antes de irem embora, vêm entregá-los à biblioteca. Cerca de de 30% do fundo documental que nós temos são em língua estrangeira. Quanto mais vão crescendo as comunidades estrangeiras, mais vão acolhendo também outras comunidades que vêm de fora.”
Exemplos de integração e convivência harmoniosa que devemos reter e replicar.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990