Quinta-feira, Janeiro 9

Cheguei à Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço pelo jardim situada nas traseiras, onde se encontra o Campus Internacional de Escultura Contemporânea, que reúne obras de renomados escultores de várias partes do mundo, bem como as instalações do Centro de Estudos Ibéricos. Em destaque, há uma estrutura que alberga o rosto do filósofo e ensaísta a observar o jardim.

A biblioteca alberga o Fundo Eduardo Lourenço e Annie, disponível para consulta na Sala Ícaro, destinada à leitura de adultos, que reúne cerca de 8500 obras doadas pelo pensador — todos os volumes estão devidamente identificados como pertencendo a Eduardo Lourenço ou à sua esposa, Annie Salomão. Os livros estão repletos de anotações, comentários, notas, recortes e papéis que nos revelam o contexto, as reflexões e as interações de Eduardo Lourenço com os textos que leu, incluindo as suas ideias, interpretações e o impacto que essas leituras tiveram sobre si.

Sobre a doação, Eduardo Lourenço disse: “Sei que é como dar-me uma outra vida, uma memória futura, e que estes livros serão lidos por outros mais jovens e que viverão. São os meus livros, os livros dos meus amores, dos meus estudos, das minhas paixões literárias (…) Através desta doação está alguma coisa mais de mim.”

A coordenadora da biblioteca, Marta Costa, explica que o acervo “não é apenas um repositório de obras, mas um testemunho da importância que a leitura e o conhecimento tiveram na vida de Eduardo Lourenço. É um espaço que celebra não só as suas ideias, mas também o amor pela literatura que partilhava com Annie”.

Marta acrescenta um detalhe curioso: “Ele tinha uma ligação profunda com os seus livros e quando tinha saudades, vinha à biblioteca para estar próximo deles.”

O espólio de Eduardo Lourenço está na Guarda
João da Silva

A sua sugestão de leitura para a Road Trip Literária é, naturalmente, uma obra de Eduardo Lourenço. “Depois de refletir um pouco, é incontornável sugerir O Labirinto da Saudade. De entre todas as obras de Eduardo Lourenço, esta é uma referência, um marco na cultura e na sociedade portuguesa que fez o país descobrir o seu maior filósofo e ensaísta”, justifica Marta Costa.

Algumas frases de O Labirinto da Saudade:

“O encontro com os outros é o verdadeiro encontro connosco.”

“A alma de uma época está em todos os seus poetas e filósofos e em nenhum.”

“A santa esclarece com que os Poetas falam nas trevas das coisas mais escuras.”

“Empiricamente, o povo português é um povo trabalhador e foi durante séculos um povo literalmente morto de trabalho. Mas uma classe historicamente privilegiada é herdeira de uma tradição guerreira de não-trabalho e parasitária dessa atroz e imensa morte de trabalho dos outros. Não trabalhar foi sempre, em Portugal, sinal de nobreza (…)”

Além de O Labirinto da Saudadee de forma a contextualizar a importância do apadrinhamento por parte de Eduardo Lourenço da biblioteca da sua cidade, a doação dos seus livros, bem como a sua ligação à Guarda e ao Centro de Estudos Ibéricos, um coordenadora também sugere o livro vida Partilhadaobra que dá a conhecer textos inéditos do professor e temas mais ligados à cidade da Guarda, às suas origens e à ideia do Centro de Estudos Ibéricos (CEI), de que foi mentor e diretor honorífico.

Alexandra Isidro, coordenadora do CEI, ajuda-nos a perceber o contexto. “A biblioteca já existia desde o século XIX, mas havia outros edifícios por trás da Sé Catedral. A partir de certa altura, começou a incluir a Biblioteca Fixa da Gulbenkian, e também tínhamos a Biblioteca Itinerante, cuja carrinha esteve em utilização até ao ano passado, já com outro formato, pintado de outra maneira, mas era a vermelhinha da Gulbenkian Entretanto, em 2001, mais ou menos no início deste século, começou-se a pensar que havia necessidade de se fazer uma outra biblioteca.”

E como é que surge o Centro de Estudos Ibéricos? “Em 1999, a cidade comemorou os 800 anos da atribuição do foral pelo rei Dom Sancho; houve, portanto, um programa comemorativo importante e, no dia 27 de novembro de 1999, convidamos o professor Eduardo Lourenço para vir fazer uma oração de sapiência, um elogio à Guarda por ocasião dessa comemoração foi então o Presidente Jorge Sampaio, e houve uma cerimónia oficial O professor Eduardo Lourenço iniciou o seu discurso, que está no. livro Vida Partilhadae que, num belíssimo texto intitulado ‘Oito Séculos de Altiva Solidão’, se refere aos oito séculos da Guarda, elogiando a sua cidade e analisando o que ela representa. De repente, começou a falar de improviso”, recorda a coordenadora.

Eis o que disse:

“E aqui suspendi o texto porque parecia que estava cometendo uma heresia, ou que as minhas palavras eram tomadas escandalosamente. Não é o caso. Eu acredito que esta cidade está mais vocacionada que nenhuma outra, e este espaço, para ser o lugar de um diálogo, necessário mais do que nunca, com aqueles que foram nossos adversários durante séculos.

Eu penso que nesta cidade se pudesse imaginar qualquer coisa como um Instituto da Civilização Ibérica, onde os nossos laços comuns que só Oliveira Martins foi capaz de apreender, foram repensados ​​para que nós soubéssemos eficazes quem somos e onde estamos, não tão isolados como imaginamos, mas sempre sob o olhar dos outros, para sabermos quem é o outro, com quem devemos dialogar e assim nos defender de uma maneira diferente da que foi a nossa durante séculos.

Essa é a vocação que eu desejo para a Guarda. Que ela seja hoje a sentinela dum futuro comum para uma Ibéria que é um dos polos desta Europa onde todos nós queremos estar e, onde quisermos ou não, já estamos.”

O discurso não caiu em saco roto e foi concretizado um ano depois com a assinatura de um protocolo entre a Câmara Municipal da Guarda, a Universidade de Coimbra e a Universidade de Salamanca. Pouco depois, o Instituto Politécnico da Guarda juntou-se ao Centro de Estudos Ibéricos, que reúne um corpo científico de professores de diversas áreas do conhecimento das supramencionadas instituições de ensino.

O professor Eduardo Lourenço foi, desde o início, o diretor honorífico do CEI. “Ao longo dos anos, temos trabalhado em três pilares estruturantes, Conhecimento, Cultura e Cooperação, realizamos iniciativas que promovem maior cooperação transfronteiriça, ações formativas direcionadas às pessoas desses territórios raianos, atividades no âmbito da fotografia, da literatura, da geografia, da saúde , do direito, enfim, em várias áreas, da cultura e do conhecimento”, elucida Alexandra Isidro.

Biblioteca da Guarda
João da Silva

Além do trabalho em articulação com o CEI, a biblioteca organiza inúmeras atividades, nomeadamente dirigidas ao público escolar, que são as que apresentam maior adesão. “As atividades para famílias têm muita procura, especialmente aos sábados, em que realizamos oficinas, espetáculos, sessões de contos e de ioga. Normalmente, desativar inscrições prévias e esgotar-se rapidamente, gerando listas de espera. Ainda que as crianças e famílias sejam mais presentes nas atividades, são os jovens que mais procuram a biblioteca para trabalhar e pesquisar. Quanto aos idosos, como têm mais limitações, é a biblioteca que vai até eles através da biblioteca itinerante e de projetos direcionados”, enumera Marta Costa.

E conclui: “Gostava de acrescentar que as bibliotecas são muito mais do que locais com prateleiras cheias de livros; são lugares de encontros, de troca de ideias e de formação de cidadãos críticos. Além disso, funcionam como núcleos de inclusão social, acolhendo todos , independentemente da idade, classe social ou condição. São espaços democráticos onde o acesso à informação é garantido, proporcionando a cada um de nós a mesma oportunidade de aprender, crescer e se desenvolver.”

Despedi-me da biblioteca, atravessando o mesmo jardim por onde havia entrado um par de horas antes. Cruzei o olhar com Eduardo Lourenço, reflexivo e abrangente, guardião dos seus livros a cerca de trinta metros na Sala Ícaro, apreciando o caminho da sua ideia de uma “Vida Partilhada – Todos nós Ibéricos”.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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