Sábado, Outubro 12

É difícil de acreditar, mas a hipótese da maior falésia de Portugal Continental causar um tsunami com “riscos importantes para a sociedade” está escrita no processo de uma das maiores pedreiras da Arrábida na Direção-Geral de Energia e Geologia

Criado há 48 anos, o Parque Natural da Arrábida tem onze pedreiras licenciadas, quase todas ainda em exploração. Os ambientalistas dizem que não faz sentido, mas as empresas argumentam que chegaram antes da criação do parque (as licenças são mais antigas) e apresentam argumentos económicos, bem como ambientais.

Joaquim Cascalheira, da Associação Nacional da Indústria Extractiva e Transformadora, admite que o sector não é bem visto por muitas pessoas, mas explica que as pedras que saem da Arrábida são fundamentais não apenas na fabricação de cimento (na cimenteira da Secil, no Outão, também dentro do Parque Natural), mas igualmente (e se calhar ainda mais) para a produção de agregados como areia ou brita, bem como os grandes blocos de pedra essenciais para grandes obras privadas e públicas. 

Segundo diz, as grandes obras públicas previstas para os próximos anos estão dependentes das pedreiras de Sesimbra e sem a Arrábida, que por um acaso da natureza tem um grande maciço de calcário, seria preciso fazer viagens muito mais longas – mais caras e com mais emissões de dióxido de carbono. 

Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista ZERO, admite que não seria de um dia para o outro, pois tem “consciência da importância económica que está em jogo”, mas pede “um plano para que dentro de uma ou duas décadas acabem estas pedreiras numa zona de parque natural”. 

Expo, novo aeroporto… tudo depende deste calcário

José Carlos Kullberg, professor de Geologia na Universidade Nova de Lisboa, esteve na equipa que preparou a candidatura falhada da Arrábida a património mundial em 2014 e sublinha que geologicamente estamos num “museu a céu aberto”, único, por aquilo que revela da separação dos continentes, algo que não se encontra em qualquer outra parte do Atlântico. 

O maior perito em Geologia da Arrábida tem, porém, uma posição que considera pragmática: a pedra que sai daqui é fundamental para as obras e se não saísse daqui teria de sair de outro lado, com custos mais elevados pois estamos perante materiais extremamente pesados. 

Kullberg recorda que a zona da Expo 98 foi em grande parte construída com base nas pedras vindas de Sesimbra e que o futuro aeroporto também vai precisar de nivelar uma enorme extensão de terreno com material vindo do Parque Natural da Arrábida, numa afirmação confirmada pela associação de pedreiras e que preocupa quem acha que as cicatrizes na zona já hoje estão demasiado grandes.

Como as licenças atribuídas antes da criação do parque natural são por área, sem data de validade, é completamente incerto quando é que a Arrábida deixará de ter pedreiras, mas certamente vai demorar pelo menos décadas. 

Nos arrabaldes do céu

Das quatro zonas de exploração de pedreiras do Parque Natural da Arrábida (divididas por 11 licenças), há uma que se destaca quando se olha para uma imagem de satélite: uma enorme pedreira que parece demasiado próxima do mar. 

A imagem aérea não permite, porém, ter uma real ideia da dimensão daquilo que se vê no local: a cem ou menos metros daquela que está registada como a pedreira da Mata Redonda existe uma falésia com 280 metros de altura. 

Não muito longe fica outra falésia ainda mais alta que chega aos 380 metros no topo da Serra do Risco que é não apenas a arriba costeira mais alta de Portugal Continental, mas também a maior arriba de calcário da Europa.

Não fosse o barulho da pedreira e, como disse o frade que no século XVI fundou o Convento da Arrábida, podíamos pensar que estávamos “nos arrabaldes” do céu – o mar bem ao fundo e barcos que parecem sempre minúsculos de tão alto que nos encontramos. 

Para chegar ao topo da Serra do Risco é preciso andar uma hora a pé e poucos se atrevem. Francisco Rasteiro, presidente do Núcleo de Espeleologia da Costa Azul, conhece de cor o caminho por entre o mato e foi numa das muitas caminhadas que faz na zona que há quatro ou cinco anos descobriu algo novo: um contentor com cabos de eletricidade a sair da enorme pedreira vizinha, em direção à arriba. 

Após um primeiro contacto com Francisco Rasteiro, seguimos os cabos que se escondem pelo meio do mato e se dividem por centenas de metros. Encontrámos sensores de deslocamento e de vibrações, bem como marcos de movimento presos a várias rochas em várias zonas da arriba. 

Percebemos que podia ser alguma investigação e contactámos José Carlos Kullberg que confirmou que era ele o principal responsável pelo estudo, mas que não existia qualquer risco. 

Pedreira em “situação crítica”

A TVI/CNN Portugal pediu acesso ao processo da pedreira arquivado na Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) e encontrou um cenário complexo. 

Após uma derrocada mortal numa pedreira em Borba, no Alentejo, em 2019 o Governo deu ordens para procurar as pedreiras com problemas e classificou 191 pedreiras do país como estando em “situação crítica”. 

Como se confirma em Diário da República, a pedreira da Mata Redonda foi uma das que recebeu esta classificação, com a exigência de um grau de intervenção “elevado”, mas a informação passou despercebida, inclusive ao presidente da Câmara Municipal de Sesimbra que perante os contactos da TVI/CNN Portugal explicou que desconhecia completamente a situação. 

Não seria, aliás, fácil de saber: apesar de publicada em Diário da República, a lista de pedreiras em situação crítica colocou esta pedreira na região Centro, ou seja, fora da região a que realmente pertence (Lisboa e Vale do Tejo), sem qualquer referência ao concelho. 

Risco de tsunami na Arrábida? 

Mais fora do comum são os argumentos que levaram o Governo a colocar a pedreira da Mata Redonda nesta lista de alegado perigo. 

O documento a que o Exclusivo da TVI teve acesso na DGEG justifica a classificação com uma “suscetibilidade a movimentos de massa significativos na arriba com eventuais riscos para a sociedade”, havendo a “necessidade de realização de análise da perigosidade e do risco de blocos/massas de grande dimensão na arriba Oeste da Serra do Risco, a sul da pedreira”.

O mesmo documento explica a afirmação anterior com uma informação da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa, em anexo, que avança mais detalhes: “Trata-se de taludes artificiais na pedreira, cuja morfologia específica de elevado declive e de altitude, juntamente com a morfologia dos taludes naturais verticais, os torna suscetíveis a movimentos de massas significativos, com perigosidade significativa, que podem transformar-se em eventos com riscos importantes para a sociedade, em termos de vidas humanas e de impactes económicos significativos”. 

Sem casas por perto e poucas pessoas ou barcos a passar perto da arriba, o perigo descrito é difícil de compreender até se ler outra parte da informação de contexto. 

“Um ambiente geológico possibilita a ocorrência de uma situação que se considera problemática pela sua perigosidade. Taludes subverticais em rochas, a que se associam falhas tectónicas de grande dimensão, que permitem a definição de grandes blocos de massa significativa e cuja queda livre, em direção ao mar, faz antever o cenário de formação de potenciais ondas de grandes dimensões (tipo ‘tsunamis’) cuja propagação é importante estudar”, refere a informação sobre as arribas da Serra do Risco e a pedreira vizinha. 

Estudo de 120 mil euros avalia riscos

O documento anterior é assinado por José Carlos Kullberg que além de maior especialista em Geologia da Arrábida é presidente da Sociedade Geológica de Portugal. 

À investigação da TVI, o professor explicou, mais tarde, que detetou o eventual risco e impacto da pedreira sobre uma arriba tão grande e tão próxima quando em 2014 preparou a parte geológica da candidatura da Arrábida a património mundial, organizada pelos municípios e pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). 

Até ao acidente em Borba, os alertas que foi fazendo não tiveram efeito, mas a sensibilidade dos organismos públicos aumentou nesse momento, o que o levou a escrever a referida informação sobre a pedreira e a arriba, que encaminhou para o ICNF que juntamente com a DGEG acabaria por obrigar a empresa dona da pedreira a pagar um estudo sobre a “estabilidade do talude rochoso litoral sob influência antrópica”, ou seja, humana (a exploração da pedreira). 

José Carlos Kullberg, tal como outro perito ouvido pela TVI, admite que a pedreira nunca devia ter chegado tão perto da arriba, e refere que na parte da arriba (com 280 metros de altura) mais próxima da exploração é muito provável que a pedreira tenha acelerado a queda de pequenos e médios blocos.

Sobre a Serra do Risco e o eventual risco de tsunami a relação ainda está a ser avaliada, sendo preciso mais tempo para ter certezas, inclusive sobre o referido tsunami, sublinhando que toda a zona é geologicamente sensível, pelo que a queda de uma grande massa da Serra do Risco também pode acontecer por causas naturais. 

O eventual risco de tsunami é colocado, segundo explica, como uma possibilidade que tanto pode acontecer nos próximos dias, como daqui a umas décadas, séculos… ou nunca. 

Se acontecer, irá em direção à costa alentejana e em especial ao importante porto de Sines que fica em frente. 

O estudo imposto pelo Estado à pedreira, que lhe custa 120 mil euros, para que esta no fundo comprove a segurança da exploração, tem tido vários atrasos e está há cinco anos em curso. 

O principal responsável pela investigação é José Carlos Kullberg após a assinatura em 2019 de um contrato entre a empresa dona da pedreira e a Universidade Nova de Lisboa que, como a TVI consultou, inclui várias cláusulas de confidencialidade.  

Presidente da APA é dono de pedreiras

Mas a investigação do Exclusivo da TVI às pedreiras da Arrábida não encontrou apenas uma pedreira classificada pelo Estado em situação crítica, sem quase ninguém ter dado conta. 

A consulta aos processos das pedreiras que existem no Parque Natural encontrou cinco no nome da família direta de Nuno Lacasta, que durante 12 anos e até ao início de 2024 liderou a Agência Portuguesa do Ambiente (APA). 

A documentação arquivada na Direção-Geral de Energia e Geologia (DGEG) tem inclusive os contratos de exploração assinados entre a família de Nuno Lacasta e empresas de exploração de pedra, sobretudo a Secil e a Cimpor, as duas maiores empresas nacionais de cimento. 

Além de uma renda, a família do ex-líder da APA recebe um montante que depende do volume de pedra extraído do parque natural. 

Contactado, Nuno Lacasta começou por dizer que a família já não teria nada a ver com o sector. Este seria um negócio antigo da família do lado da mãe, apenas, mas confrontado com os documentos encontrados na DGEG o ex-presidente da APA acabou por confirmar que sim, a família seria proprietária de duas ou três pedreiras. 

Após as contas da TVI aos documentos encontrados na DGEG, o próprio confirmaria que são mesmo cinco licenças de pedreiras.

No primeiro contacto, há quase dois meses, Nuno Lacasta não conseguiu igualmente ser claro sobre se também ele seria proprietário das pedreiras. A mãe tinha falecido mais de um ano antes deste sair da APA, mas o próprio dizia desconhecer como tinham ficado as partilhas. 

A declaração de património que Nuno Lacasta devia ter entregue logo após sair da APA, no início de 2024, nunca chegou à Entidade da Transparência.

Após muita insistência, ao fim de quase dois meses, à beira da emissão da reportagem, o ex-presidente da Agência Portuguesa do Ambiente confirmou que herdou cerca de 15% das cinco pedreiras. O restante pertence ao irmão e ao pai.

Perante as dúvidas dos ambientalista que dizem que a APA favoreceu o sector das pedreiras enquanto Nuno Lacasta esteve no cargo, este nega e garante que por causa dos negócios da família, quando chegou à liderança da instituição, pediu escusa em relação a este sector e nunca interferiu em qualquer assunto relacionado com pedreiras dentro ou fora do Parque Natural da Arrábida.

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